28 de mai. de 2021

Há várias pessoas em Deus

  O que é a Santíssima Trindade? - A12.com

A Santíssima Trindade é composta de ter pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Mas, como ensina São Tomás de Aquino, alguns duvidam desta formulação. No livro Suma Teológica, questão 30, o santo discute o tema, primeiro explicitando os problemas e, depois, mostrando como podem ser solucionados. Aqui eu alterei a ordem e "traduzi" para uma linguagem mais moderna:

Afirmação

A Igreja professa haver em Deus várias pessoas pois considera que a palavra pessoa significa, em Deus, relação, como realidade subsistente na divina natureza. Ora, há várias relações reais em Deus, onde se segue a existência de várias realidades subsistentes na divina natureza, e isto é o mesmo que existirem nela várias pessoas.

Problemas

Parece que não se devem admitir várias pessoas em Deus por que:

Primeira objeção: pessoa é uma substância individual de natureza racional. Ora, se em Deus há várias pessoas, segue-se que há várias substâncias, o que é herético.

Resposta: Na definição da pessoa não se introduz a substância como significando essência, mas como o que é manifesto por se lhe acrescentar algo de individual. E para exprimir a substância, com tal significado, os gregos têm o nome de hipóstase; por isso, como nós dizemos três pessoas, dizem eles três hipóstases. Nós, porém, não nos acostumamos a dizer três substâncias para se não entenderem três essências, por causa da confusão que resultaria.

Segunda objeção: a pluralidade das funções não gera distinção de pessoas, nem em Deus nem em nós. Ora, em Deus não há outra pluralidade além da das funções, logo, não se pode dizer que há em Deus várias pessoas. 

Resposta: As propriedades absolutas em Deus, como a bondade e sabedoria, mutuamente se não opõem e por isso nem realmente se distinguem. Embora, pois, lhes convenha o existir, não são por isso três realidades diferentes, por onde seriam várias pessoas. Mas, nas coisas criadas, as propriedades de uma pessoa, como a altura e a bondade, não subsistem fora da pessoa, embora realmente entre si se distingam. Em Deus, porém, as propriedades subsistem, e realmente se não distinguem umas das outras, como antes se disse. Donde, a pluralidade de tais propriedades basta para justificar a existência das pessoas divinas. 

Terceira objeção. Boécio, falando de Deus diz que é verdadeiramente uno o que não é susceptível de separação. Logo, não há várias pessoas em Deus. 

Resposta: A suma unidade e simplicidade de Deus excluem toda a pluralidade das atribuições absolutas; não porém a da funções. Porque estas se predicam de uma coisa dependentemente de outra, e assim não importam composição na coisa a que se atribuem, como ensina Boécio no mesmo livro.

Quarta objeção. Onde quer que haja número, aí haverá todo e parte. Ora, se em Deus há um certo número de pessoas, será preciso nele introduzir o todo e a parte, o que contraria a divina simplicidade. Mas, em contrário, Santo Atanásio diz: Uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. Logo, Paí, Filho e Espírito Santo são várias pessoas.

Resposta: Há duas tipos de número: o abstrato, como dois, três, quatro; e o existente nas coisas numeradas, como dois homens e dois cavalos. Se, pois, considerarmos o número abstratamente, nada impede existir em Deus todo e parte; mas isto só se dá na acepção do nosso intelecto, pois só neste existe o número absoluto, separado das coisas numeradas. Se, porém, considerarmos o número como representando objetos existente, então, no mundo das criaturas, um é parte de dois, e dois, de três; e um homem, parte de uma dupla, e uma dupla parte de um trio. Mas em Deus não é assim porque tanto é o Pai quanto toda a Trindade, como a seguir se demonstrará.

-- São Tomás de Aquina, Suma Teológica, Questão 30. 

25 de mai. de 2021

Pecado pessoal e pecado social

O pecado, no sentido próprio e verdadeiro, é sempre um ato da pessoa, porque é um ato de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade. Este homem pode ser condicionado, pressionado, impelido por numerosos e poderosos fatores externos, como também pode estar sujeito a tendências, taras e hábitos relacionados com a sua condição pessoal. Em não poucos casos, tais fatores externos e internos podem atenuar, em maior ou menor grau, a sua liberdade e, consequentemente, a sua responsabilidade e culpabilidade. No entanto, é uma verdade de fé, também confirmada pela nossa experiência e pela nossa razão, que a pessoa humana é livre. E não se pode ignorar esta verdade, para descarregar em realidades externas — as estruturas, os sistemas, os outros - o pecado de cada um. Além do mais, isso seria eliminar a dignidade e a liberdade de pessoa, que se revelam — se bem que negativa e desastrosamente — também nessa responsabilidade do pecado cometido. Por isso, em todos e em cada um dos homens, não há nada tão pessoal e intransferível como o mérito da virtude ou a responsabilidade da culpa.

Como ato da pessoa, o pecado tem as suas primeiras e mais importantes consequências no próprio pecador; ou seja, na relação dele com Deus, que é o próprio fundamento da vida humana; e também no seu espírito, enfraquecendo-lhe a vontade e obscurecendo-lhe a inteligência.

A Queda dos Condenados, por Dirk Bouts
Chegados a este ponto, devemos perguntar-nos: a que realidade se referiam os que, na preparação do Sínodo e no decorrer dos trabalhos sinodais, mencionaram não poucas vezes o pecado social? A realidade que está subjacente a tal expressão e conceito faz com estes tenham, na verdade, diversos significados.

Falar de pecado social quer dizer, primeiro que tudo, reconhecer que, em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um se repercute, de algum modo, sobre os outros. Está nisto uma outra faceta daquela solidariedade que, a nível religioso, se desenvolve no profundo e magnífico mistério da Comunhão dos Santos, graças à qual se pode dizer que "cada alma que se eleva, eleva o mundo" (Elisabeth Leseur: Journal et pensées de chaque jour). A esta lei da elevação corresponde, infelizmente, a lei da descida, de tal modo que se pode falar de uma comunhão no pecado, em razão da qual uma alma que se rebaixa pelo pecado arrasta consigo a Igreja, e, de certa maneira, o mundo inteiro. Por outras palavras não há nenhum pecado, mesmo o mais íntimo e secreto, o mais estritamente individual, que diga respeito exclusivamente àquele que o comete. Todo o pecado se repercute, com maior ou menor veemência, com maior ou menor dano, em toda a estrutura eclesial e em toda a família humana. Segundo esta primeira acepção, a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o caráter de pecado social.

Há certos pecados, no entanto, que constituem, pelo seu próprio objeto, uma agressão direta ao próximo e — mais exatamente, com base na linguagem evangélica — ao irmão. Estes são uma ofensa a Deus, porque ofendem o próximo. A tais pecados costuma dar-se a qualificação de sociais; e é esta a segunda acepção do termo. Neste sentido, é social o pecado contra o amor do próximo, que é tanto mais grave na Lei de Cristo, porquanto está em jogo o segundo mandamento, que é "semelhante ao primeiro" (cf. Mt 22, 39; Mc 12, 31; Lc 10, 27s) é igualmente social todo o pecado cometido contra a justiça, quer nas relações de pessoa a pessoa, quer nas da pessoa com a comunidade, quer, ainda, nas da comunidade com a pessoa. É social todo o pecado contra os direitos da pessoa humana, a começar pelo direito à vida, incluindo a do nascituro, ou contra a integridade física de alguém; todo o pecado contra a liberdade de outrem, especialmente contra a suprema liberdade de crer em Deus e de o adorar; todo o pecado contra a dignidade e a honra do próximo. É social todo o pecado contra o bem comum e contra as suas exigências, em toda a ampla esfera dos direitos e dos deveres dos cidadãos. Pode ser social tanto o pecado de comissão como o de omissão: da parte dos dirigentes políticos, económicos e sindicais, por exemplo, que, embora podendo, não se empenhem com sabedoria no melhoramento ou na transformação da sociedade, segundo as exigências e as possibilidades do momento histórico; como também da parte dos trabalhadores, que faltem aos seus deveres de presença e de colaboração, para que as empresas possam continuar a proporcionar o bem-estar a eles próprios, as suas famílias e à inteira sociedade.

A terceira acepção de pecado social diz respeito as relações entre as várias comunidades humanas. Estas relações nem sempre estão em sintonia com a desígnio de Deus, que quer no mundo justiça, liberdade e paz entre os indivíduos, os grupos, os povos. Assim, a luta de classes, seja quem for o seu responsável ou, por vezes, o sistematizador, é um mal social. Assim, a contraposição obstinada dos blocos de Nações e duma Nação contra a outra e de grupos contra outros grupos no seio da mesma Nação, é igualmente um mal social. Em ambos os casos, pode fazer-se a pergunta, se é possível atribuir a alguém a responsabilidade moral de tais males e, por conseguinte, o pecado. Ora, deve admitir-se que realidades e situações como as que acabam de ser indicadas, ao generalizarem-se e até mesmo ao agigantarem-se como fatos sociais, quase sempre se tornam anónimas, assim como são complexas e nem sempre identificáveis as suas causas. Por isso, ao falar-se aqui de pecado social, a expressão tem um significado claramente analógico. Em todo o caso, falar de pecados sociais, mesmo que seja em sentido analógico, não deve induzir ninguém a subestimar a responsabilidade individual das pessoas; mas tem em vista constituir um alerta para as consciências de todos, a fim de que cada um assuma as próprias responsabilidades, no sentido de serem séria e corajosamente modificadas essas realidades nefastas e essas situações intoleráveis.

Dito isto, de maneira clara e inequívoca, como premissa, é preciso acrescentar imediatamente que não é legítima nem aceitável uma acepção do pecado social, não obstante esteja muito em voga nos nossos dias nalguns ambientes, (Libertatis Nuntius, 14-15) a qual, ao opôr, não sem ambiguidade, pecado social a pecado pessoal, mais ou menos inconscientemente leva a diluir e quase a eliminar o pessoal, para admitir somente as culpas e responsabilidades sociais. Segundo esta concepção, que revela com facilidade a sua derivação de ideologias e sistemas não cristãos — hoje, talvez, já postos de parte por aqueles mesmos que a certa altura foram os seus autores oficiais — praticamente todos os pecados seriam sociais, no sentido de serem imputáveis não tanto à consciência moral duma pessoa, quanto a uma entidade vaga e colectividade anónima, que poderia ser a situação, o sistema, a sociedade, as estruturas, a instituição etc.

Pois bem: a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos coletivos de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de Nações inteiras e blocos de Nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gera ou favorece a iniquidade ou a desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, ou eliminar, ou pelo menos limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas.

Uma situação — e de igual modo uma instituição, uma estrutura, uma sociedade — não é sujeita de atos morais; por isso, não pode ser, em si mesma, boa ou má.

No fundo de cada situação de pecado, porém, encontram-se sempre pessoas pecadoras. Isto é tão verdadeiro que, se tal situação vier a ser mudada nos seus aspectos estruturais e institucionais pela força da lei, ou — como acontece com mais frequência, infelizmente — pela lei da força, a mudança revela-se, na realidade, incompleta, de pouca duração e, no fim de contas, vã e ineficaz — para não dizer mesmo contraproducente — se não se converterem as pessoas directa ou indirectamente responsáveis por essa mesma situação.

--  São João Paulo II, Recconciliatio et Paenitentia (seção 13),  2 de Dezembro de 1984.

22 de mai. de 2021

Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida

Encontramo-nos reunidos sob a abóbada desta Basílica, e toda a nossa consciência se acha compenetrada da recordação do Cenáculo hierosolimitano [NT: Cenáculo de Jerusalém], onde, precisamente no dia do Pentecostes "se encontravam todos" (At 2, 1) aqueles que constituíam a primeiríssima Igreja. Encontravam-se no mesmo local em que — cinquenta dias antes — na tarde do dia da Ressurreição Jesus tinha vindo ter com eles. "Veio Jesus... e colocou-se no meio deles e disse-lhes: "A paz seja convosco! E dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado" (Jo 20, 19-20). Naquele momento já não podiam ter dúvida, alguma; e "os discípulos — escreve o Evangelista — ficaram cheios de alegria, ao verem o Senhor" (Jo 20, 20), o Senhor ressuscitado. E então Jesus disse-lhes novamente: "A paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós" (Jo 20, 20). Em suma, disse palavras já conhecidas e, contudo, novas: novas pela novidade de todo o Mistério pascal e novas pela novidade do Senhor Ressuscitado, que as pronunciava: "eu envio a vós...".

E sobretudo eram novas por motivo daquilo que era afirmado por Cristo, imediatamente a seguir a elas. Efectivamente, "depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse-lhes: 'Recebei o Espírito Santo' " (Jo 20, 22).

Desta maneira, já nesse momento receberam o Espírito Santo. Já então se havia iniciado o Pentecostes; o Pentecostes que chegaria, cinquenta dias depois, à sua plena manifestação; e isto era necessário para que pudesse maturar neles e revelar-se para o exterior aquilo que havia acontecido, quando eles tinham ouvido; "Recebei o Espírito Santo..." — a fim de que a Igreja pudesse nascer. Nascer, no caso, quer dizer sair para o mundo e, por esse mesmo fato, tornar-se visível no meio dos homens.

E isto realizou-se com a potência própria daquela tarde pascal, a tarde daquele mesmo dia da Ressurreição (cf. Jo 20, 19); isso aconteceu com a potência da paixão e da morte do Senhor, o qual, aliás, já na véspera da mesma paixão, havia dito claramente: "... se eu não for, o Consolador (Paracletos) não virá a vós; mas se eu for, enviar-vo-lo-ei" (Jo 16, 7). Tinha partido, pois, através da Cruz, e voltou através da Ressurreição; mas voltou, não já para permanecer, mas sim para soprar sobre os Apóstolos e dizer-lhes: "Recebei! Recebei o Espírito Santo!".

Oh! Como é bom o Senhor! Ele deu-lhes o Espírito Santo, que é Senhor e dá a vida... e com o Pai e o Filho recebe a mesma glória e adoração... Ele, igual na Divindade! Sim, Jesus deu-lhes o Espírito Santo; disse, de fato, "recebei". Mas, mais ainda, não os entregou Ele, não os confiou a eles, aos Apóstolos, ao Espírito Santo? Poderá o homem "receber" o Deus vivo e possuí-1'O como algo "próprio"?

Então Cristo deu os Apóstolos, aqueles que eram o início do novo Povo de Deus e o fundamento da Sua Igreja, ao Espírito Santo, ao Espírito que o Pai haveria de mandar em Seu Nome (cf. Jo 14, 26), ao Espírito de Verdade (cf. Jo 14, 17; 15, 26; 16, 13), ao Espírito por meio do qual o amor de Deus foi derramado nos nossos corações (cf. Rom 5, 5); deu-os ao Espírito Santo a fim de que eles, por seu turno, O recebessem como Dom; Dom alcançado do Pai por obra do Messias, do Servo sofredor de Javé, do qual fala a profecia de Isaías.

E foi por isso que Ele "lhes mostrou as mãos e o lado" (Jo 20, 20), isto é, os sinais do sacrifício cruento, e em seguida acrescenta ainda: "Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos" (Jo 20, 23).

Com estas palavras Ele confirmou o Dom; é o Dom do Consolador, o Dom dado à Igreja para o homem, o qual traz em si a herança do pecado. Para cada um dos homens e para todos os homens.

Trata-se do Dom do Alto, dado à Igreja que é enviada a todo o mundo. No dia do Pentecostes, os Apóstolos — e juntamente com eles aquela que era a primeiríssima Igreja — saíram daquele cenáculo pascal; e imediatamente se encontraram no meio do mundo sujeito ao pecado e à morte; e encontraram-se aí com o testemunho da Ressurreição.

Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida

Ao evocarmos o primeiro Concilio Ecuménico Constantinopolitano, nós professamos hoje a mesma fé n'Aquele que é Senhor e dá a vida, que com o Pai e o Filho recebe a mesma glória e adoração; e identificando esta veneranda Basílica de São Pedro com o humilde Cenáculo hierosolimitano, nós recebemos o mesmo Dom! "Recebei o Espírito Santo" (Jo 20, 22). Sim, nós recebemos o mesmo Dom, ou seja, confiamo-nos a nós próprios e confiamos a Igreja ao mesmo Espírito Santo, ao Qual ela já foi confiada de uma vez para sempre, naquela tarde da Ressurreição e depois na manhã do Pentecostes. Ou melhor, nós permanecemos nessa entrega confiante ao Espírito Santo, que Cristo então operou, ao mostrar aos Apóstolos as mãos e o lado (cf. Jo 20, 20), os sinais da sua paixão, antes de lhes dizer: "Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós" (Jo 20, 21).

Nós permanecemos nessa entrega confiante ao Espírito Santo, que constituiu a Igreja e continuamente a constitui sobre os seus fundamentos. Nós permanecemos, assim, em tal entrega confiante ao Espírito Santo, mediante a qual somos a Igreja e mediante a qual somos enviados, de um modo análogo a como foram enviados do Cenáculo aqueles primeiros apóstolos e aquela primeiríssima Igreja hierosolimitana, quando sucedeu que, após algo semelhante a uma rajada de vento sobrevindo impetuosamente e depois da aparição das línguas de fogo sobre cada um deles, os mesmos saíram para o meio dá multidão numerosa, que tinha acorrido a Jerusalém para as festas e começaram a falar nas diversas línguas, "conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem" (At 2, 4); e foram ouvidos pelos homens que falavam outras línguas como aqueles que anunciavam "nas nossas línguas as maravilhas de Deus" (At 2, 11).

Permanecemos, pois, nesta entrega. confiante ao Espírito Santo; e passados quase dois mil anos, nada mais desejamos senão permanecer n'Ele, não separar-nos d'Ele de nenhum modo, não O "contristar" nunca (cf. Ef 4, 30).

— porque somente n'Ele está conosco Cristo;

— porque só com a Sua ajuda é que nós podemos dizer: "Jesus é Senhor" (cf. 1 Cor 12, 3);

— porque somente pelo poder da Sua graça é que nós podemos clamar: "Abbá, Pai" (Rom 8, 15);

— porque somente pelo Seu poder, pela potência do Espírito Santo que é Senhor e dá a vida, é que nós somos a mesma Igreja, esta Igreja em que "há... diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. E a cada um é concedida a manifestação do Espírito para que redunde em vantagem comum (1 Cor 12, 4-7).

Assim, pois, estamos no Espírito Santo e n'Ele desejamos permanecer:

— n'Ele, que é o Espírito que dá a vida e é uma nascente de água jorrante até à vida eterna (cf. Jo 4, 14; 7, 38-39);

— n'Ele, pelo Qual o Pai dá novamente a vida aos homens mortos pelo pecado, até que um dia ressuscite em Cristo os seus corpos mortais (cf. Rom 8, 10-11);

— n'Ele, no Espírito Santo, que habita na Igreja e nos corações dos fiéis (cf. 1 Cor 3, 16; 6, 19) e neles ora e dá testemunho da sua adopção filial (cf. Gal 4, 6; Rom 8, 15-16, 26);

— n'Ele, que dota a Igreja com diversos dons hierárquicos e carismáticos e com a ajuda destes a dirige e a enriquece de frutos (cf. Ef. 4, 11-12; 1 Cor. 12, 4; Gál. 5, 22);

— n'Ele, que com a força do Evangelho faz rejuvenescer a Igreja, a renova continuamente e a leva à perfeita união com o Seu Esposo (cf. Const. dogm. Lumen Gentium, n. 4).

Sim. Nós desejamos permanecer n'Ele, no Espírito Santo, no Paráclito assim, como a Ele — ao Espírito do Pai — nos confiou Cristo crucificado e ressuscitado. Confiou-nos a Ele dando-no-1'O a nós: aos Apóstolos e à Igreja, quando disse, no Cenáculo hierosolimitano: "Recebei o Espírito Santo" (Jo 20, 22).

E estas palavras começaram a ter atuação prática diante de todas as línguas e nações no dia do Pentecostes, no dia em que a Igreja nasceu no Cenáculo de Jerusalém e saiu para o mundo.

Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida

É esta fé dos Apóstolos e dos Padres da Igreja, que no ano de 381 o Concílio de Constantinopla ensinou solenemente a professar, que nós, aqui reunidos nesta Basílica Romana de São Pedro, em unidade espiritual com os nossos Irmãos que celebram a Liturgia jubilar na Catedral do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, desejamos professar, ensinando-a com a mesma pureza e potência no ano de 1981 como a professou e ensinou a professar aquele venerável Concílio há dezasseis séculos atrás.

Desejamos também pôr em prática à luz da mesma fé o ensino do II Concílio do Vaticano, daquele Concílio dos nossos tempos que tão generosamente manifestou a obra do Espírito Santo, que é Senhor e dá a vida, em toda a missão da Igreja. Desejamos, pois, actuar na vida esse Concílio, que se tornou a palavra de ordem e a tarefa das nossas gerações; e desejamos compreender ainda mais profundamente o ensino dos antigos Concílios, em particular o ensino daquele que se realizou há mil e seiscentos anos em Constantinopla.

Nesta luz — fixando o olhar no mistério do único Corpo, que é composto por diversos membros — nós, com renovado fervor, fazemos votos bem sentidos por que se realize aquela unidade a que, em Cristo, são chamados todos aqueles que — segundo as palavras de São Paulo foram "batizados num só Espírito para constituírem um só corpo" (1 Cor 12, 13); todos aqueles que foram "embebidos em um só Espírito" (1 Cor 12, 13). E desejamos isto com renovado fervor especialmente no dia de hoje, que nos recorda os tempos da Igreja indivisa. E por isso clamamos:

Ó Luz beatíssima / penetrai até ao mais íntimo nos corações dos vossos fiéis! (Sequência da solenidade de Pentecostes).

Nos nossos tempos nota-se que a face da terra se acha muitíssimo enriquecida, graças à criatividade e ao trabalho do homem, com as obras da ciência e da técnica, após terem sido tão profundamente explorados o interior da mesma terra e os espaços do universo cósmico; ao mesmo tempo, porém, a humanidade encontra-se perante ameaças até agora desconhecidas, que provêm da parte de forças que o próprio homem desencadeou.

E é hoje que nós, Pastores da Igreja, herdeiros daqueles que receberam o Espírito Santo no Cenáculo do Pentecostes, devemos sair, assim como eles saíram, conscientes da imensidade do Dom, que na Igreja é participado pela família humana: nós devemos sair... continuamente sair para o mundo e, encontrando-nos nas diversas partes da terra, devemos repetir ainda com maior fervor:

Que o Vosso Espírito desça

E renove a face da Terra! Que Ele desça!

Ao longo da história da humanidade e através do mundo visível, a Igreja não cessa de confessar:

Creio no Espírito!

Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida.

Neste Espírito nós permanecemos. Amém.

-- Homília na Solenidade de Pentecostes, Santo Papa João Paulo II, 7 de Junho de 1981

 

18 de mai. de 2021

O drama do homem

Como escreve o Apóstolo São João "se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós próprios e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele que é fiel e justo perdoar-nos-á os pecados" (1Jo 1,8s). Estas palavras inspiradas, escritas nos primórdios da Igreja, introduzem melhor do que qualquer outra expressão humana a reflexão sobre o pecado, que está intimamente relacionada com o discurso sobre a reconciliação. Elas apreendem o problema do pecado no seu horizonte antropológico, enquanto parte integrante da verdade acerca do homem, mas inserem-no imediatamente no horizonte divino, no qual o pecado é confrontado com a verdade do amor de Deus, justo, generoso e fiel, que se manifesta sobretudo pelo perdão e pela redenção. Por isso, o próprio São João escreve pouco depois que "se (o nosso coração) de alguma coisa nos acusa, Deus é maior do que o nosso coração" (1Jo 3,20).

Reconhecer o próprio pecado, ou melhor — indo mais ao fundo na consideração da própria personalidade — reconhecer-se pecador, capaz de pecar e de ser induzido ao pecado, é o princípio indispensável do retorno a Deus. É a experiência exemplar de Davi, que depois de "ter feito o mal aos olhos do Senhor", repreendido pelo profeta Natan, (2Sam 11-12) exclama: "Reconheço a minha culpa, o meu pecado está sempre diante de mim. Pequei contra Vós, só contra Vós; pratiquei aquilo que é mal aos vossos olhos" (Sl 50[51], 5). De resto, Jesus põe na boca e no coração do filho pródigo aquelas palavras significativas: "Pai, pequei contra o Céu e contra ti" (Lc 15,18-21).

Na realidade, reconciliar-se com Deus supõe e inclui o afastar-se com  determinação do pecado, no qual se caiu. Supõe e inclui, portanto, o fazer penitência no sentido mais pleno do termo: arrepender-se, manifestar o arrependimento, assumir a atitude concreta do arrependido, que é a de quem se coloca no caminho do regresso ao Pai. Isto é uma lei geral, que cada um deve seguir na situação particular em que se encontra. A exposição sobre o pecado e a conversão, de fato, não pode ser desenvolvida somente em termos abstratos.

A Torre de Babel, o homem se colocando acima de Deus.

Na condição concreta do homem pecador, em que não pode haver conversão sem reconhecimento do próprio pecado, o ministério de reconciliação da Igreja intervém, em qualquer hipótese, com uma finalidade claramente penitencial, isto é, para levar o homem ao "conhecimento de si", segundo a expressão de Santa Catarina de Sena, ao desapego do mal, ao restabelecimento da amizade com Deus, à reordenação interior e à nova conversão eclesial. Acrescente-se que, para além do âmbito da Igreja e dos fiéis, a mensagem e o ministério da penitência são dirigidos a todos os homens, uma vez que todos têm necessidade de conversão e de reconciliação (Rm 3,23-26).

Para exercitar adequadamente tal ministério penitencial, será também necessário avaliar, com os olhos iluminados (Ef 1,18) pela fé, as consequências do pecado, que são motivo de divisão e de ruptura, não só no interior de cada homem, mas também nos vários círculos em que ele vive: familiar, profissional e social, como tantas vezes se pode verificar pela experiência, em confirmação da página bíblica referente à cidade de Babel e à sua torre (Gn 11,1-9). Tendo a intenção de construir aquilo que devia ser, a um tempo, símbolo e foco de unidade, aqueles homens encontraram-se mais dispersos do que antes, confundidos na linguagem, divididos entre si e incapazes de consenso e de convergência.

Porque falhou o ambicioso projeto? Porque "se afadigaram em vão os construtores"? (Sl 127[126], 1) Porque os homens tinham colocado como sinal e garantia da desejada unidade unicamente uma obra das suas mãos, esquecidos da ação do Senhor. Calcularam apenas com a dimensão horizontal do trabalho e da vida social, descuidando da dimensão vertical, pela qual se teriam encontrado radicados em Deus, seu Criador e Senhor, e voltados na direção dele como fim último do seu caminho.

--  São João Paulo II, Recconciliatio et Paenitentia (seção 13),  2 de Dezembro de 1984.

15 de mai. de 2021

A Reconciliação vem de Deus

 Deus é fiel ao seu desígnio eterno mesmo quando o homem, induzido pelo Maligno (Sab 2,4) e arrastado pelo seu orgulho, abusa da liberdade que lhe foi dada para amar e procurar generosamente o bem, recusando a obediência ao seu Senhor e Pai; mesmo quando o homem, em vez de responder com amor ao amor de Deus, se opõe a Ele como a um seu rival, iludindo-se e presumindo das suas forças, com a consequente ruptura das relações com Aquele que o criou. Não obstante esta prevaricação do homem, Deus permanece fiel no amor. A narração do Jardim do Édem leva-nos, certamente, a meditar sobre as consequências funestas da rejeição do Pai, que se traduz na desordem interna do homem e na ruptura da harmonia entre o homem e a mulher e entre irmão e irmão (Gn 3,2). Também é significativa a parábola evangélica dos dois filhos que se afastam do pai, de maneira diversa, cavando um abismo entre si. A recusa do amor de Deus e dos seus dons de amor está sempre na raiz das divisões da humanidade (Lc 15,11-32, Parábola do Filho Pródigo).

 A Volta do Filho Pródigo, Rembrandt

Mas nós sabemos que Deus, rico em misericórdia (Ef 2,4) tal como o pai da parábola, não fecha o coração a nenhum dos seus filhos. Espera-os, procura-os, vai alcançá-los precisamente no ponto em que a recusa da comunhão os aprisiona no isolamento e na divisão e chama-os a reunirem-se à volta da sua mesa, na alegria da festa do perdão e da reconciliação.

Esta iniciativa de Deus concretiza-se e manifesta-se no ato redentor de Cristo, que se irradia no mundo mediante o ministério da Igreja.

De acordo com a nossa fé, de fato, o Verbo de Deus fez-se carne e veio habitar a terra dos homens, entrou na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a em si (Ef 1,10). Ele revelou-nos que Deus é amor e deu-nos o mandamento novo (Jo 13,34) do amor, comunicando-nos, ao mesmo tempo, a certeza de que o caminho do amor está aberto a todos os homens, de tal modo que não é vão o esforço para instaurar a fraternidade universal (Gaudium et Spes, 38). Vencendo, com a sua morte na Cruz, o mal e a força do pecado, pela sua obediência cheia de amor trouxe a salvação a todos e tornou-se para todos reconciliação. N'Ele, Deus reconciliou o homem consigo.

A Igreja, continuando o anúncio de reconciliação que Cristo apregoou nas aldeias da Galileia e de toda a Palestina (Mc 1,15), não cessa de convidar a humanidade inteira a converter-se e a acreditar na Boa Nova; ela fala em nome de Cristo, fazendo seu o apelo do Apóstolo Paulo, que já recordámos: "Nós somos ... embaixadores ao serviço de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Suplicamo-vos, pois, em nome de Cristo: Reconciliai-vos com Deus" (2Cor 5,20). 

Quem aceita este apelo entra na reconciliação e faz a experiência da verdade contida naquele outro anúncio de São Paulo, segundo o qual Cristo "é a nossa paz, ele que fez de dois povos um só, destruindo o muro de separação, isto é, de inimizade que constituía a barreira (...) estabelecendo a paz para reconciliar uns e outros com Deus" (Ef 2,14-16). Embora este texto diga diretamente respeito à superação da divisão religiosa entre Israel, como povo eleito do Antigo Testamento, e os outros povos, todos chamados a fazer parte da Nova Aliança, ele contém, todavia, a afirmação da nova universalidade espiritual, querida por Deus e por Ele realizada, mediante o sacrifício do seu Filho, o Verbo feito homem, sem limites nem exclusões de qualquer género, para todos aqueles que se convertem e acreditam em Cristo. Todos, portanto, somos chamados a usufruir dos frutos desta reconciliação querida por Deus: todos e cada um dos homens, todos e cada um dos povos.

--  São João Paulo II, Recconciliatio et Paenitentia (seção 10),  2 de Dezembro de 1984.

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