31 de out. de 2020

Se alguém me servir, o Pai há-de honrá-lo

 Amados irmãos e irmãs

A nossa celebração eucarística inaugurou-se hoje com a exortação "Alegremo-nos todos no Senhor". A liturgia convida-nos a compartilhar o júbilo celeste dos santos, a saborear a sua alegria. Os santos não são uma exígua casta de eleitos, mas uma multidão inumerável, para a qual a liturgia de hoje nos exorta a levantar o olhar. Em tal multidão não estão somente os santos oficialmente reconhecidos, mas os batizados de todas as épocas e nações, que procuraram cumprir com amor e fidelidade a vontade divina. De uma grande parte deles não conhecemos os rostos e nem sequer os nomes, mas com os olhos da fé vemo-los resplandecer, como astros repletos de glória, no firmamento de Deus.

No dia de hoje, a Igreja festeja a sua dignidade de "mãe dos santos, imagem da cidade divina" (A. Manzoni), e manifesta a sua beleza de esposa imaculada de Cristo, nascente e modelo de toda a santidade. Sem dúvida, não lhe faltam filhos obstinados e até rebeldes, mas é nos santos que ela reconhece os seus traços característicos, e precisamente neles saboreia a sua glória mais profunda.

Na primeira Leitura, o autor do livro do Apocalipse descreve-os como "uma multidão enorme, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas" (Ap 7, 9). Este povo compreende os santos do Antigo Testamento, a partir do justo Abel e do fiel Patriarca Abraão, os do Novo Testamento, os numerosos mártires do início do cristianismo e também os beatos e os santos dos séculos seguintes, até às testemunhas de Cristo desta nossa época. Todos eles são irmanados pela vontade de encarnar o Evangelho na sua existência, sob o impulso do eterno animador do Povo de Deus, que é o Espírito Santo.

Mas "para que servem o nosso louvor aos santos, o nosso tributo de glória, esta nossa solenidade?". Com esta interrogação tem início uma famosa homilia de São Bernardo para o dia de Todos os Santos. É uma pergunta que se poderia fazer também hoje. E atual é inclusive a resposta que o Salmo nos oferece: "Os nossos santos diz não têm necessidade das nossas honras, e nada lhes advém do nosso culto. Por minha vez, devo confessar que, quando penso nos santos, sinto-me arder de grandes desejos" (Disc. 2; Opera Omnia Cisterc. 5, 364ss.). Eis, portanto, o significado da solenidade moderna: contemplando o exemplo luminoso dos santos, despertar em nós o grande desejo de ser como os santos: felizes por viver próximos de Deus, na sua luz, na grande família dos amigos de Deus. Ser santo significa: viver na intimidade com Deus, viver na sua família. Esta é a vocação de todos nós, reiterada com vigor pelo Concílio Vaticano II, e hoje proposta de novo solenemente à nossa atenção.

Mas como é que podemos tornar-nos santos, amigos de Deus? A esta interrogação pode-se responder antes de tudo de forma negativa: para ser santo não é necessário realizar ações nem obras extraordinárias, nem possuir carismas excepcionais. Depois, vem a resposta positiva: é preciso sobretudo ouvir Jesus e depois segui-lo sem desanimar diante das dificuldades. "Se alguém me serve Ele admoesta-nos que me siga, e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo. Se alguém me servir, o Pai há-de honrá-lo" (Jo 12, 26). Quem nele confia e o ama com sinceridade, como o grão de trigo sepultado na terra, aceita morrer para si mesmo. Com efeito, Ele sabe que quem procura conservar a sua vida para si mesmo, perdê-la-á, e quem se entrega, se perde a si mesmo, precisamente assim encontra a própria vida (cf. Jo 12, 24-25). A experiência da Igreja demonstra que cada forma de santidade, embora siga diferentes percursos, passa sempre pelo caminho da cruz, pelo caminho da renúncia a si mesmo. As biografias dos santos descrevem homens e mulheres que, dóceis aos desígnios divinos, enfrentaram por vezes provações e sofrimentos indescritíveis, perseguições e o martírio. Perseveraram no seu compromisso, "vêm da grande tribulação lê-se no Apocalipse lavaram as suas túnicas e branquearam-nas no sangue do Cordeiro" (Ap 7, 14). Os seus nomes estão inscritos no livro da Vida (cf. Ap 20, 12); a sua morada eterna é o Paraíso. O exemplo dos santos constitui para nós um encorajamento a seguir os mesmos passos, a experimentar a alegria daqueles que confiam em Deus, porque a única verdadeira causa de tristeza e de infelicidade para o homem é o facto de viver longe de Deus.

A santidade exige um esforço constante, mas é possível para todos porque, mais do que uma obra do homem, é sobretudo um dom de Deus, três vezes Santo (cf. Is 6, 3). Na segunda Leitura, o Apóstolo João observa: "Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos!" (1 Jo 3, 1). Portanto, é Deus que nos amou primeiro e, em Jesus, nos tornou seus filhos adoptivos. Na nossa vida tudo é dom do seu amor: como permanecer indiferente diante de um mistério tão grande? Como deixar de responder ao amor do Pai celestial, com uma vida de filhos reconhecidos? Em Cristo, entregou-se inteiramente a nós e chama-nos a um profundo relacionamento pessoal com Ele. Portanto, quanto mais imitarmos Jesus e permanecermos unidos a Ele, tanto mais entraremos no mistério da santidade divina. Descobrimos que somos amados por Ele de modo infinito, e isto impele-nos, por nossa vez, a amar os irmãos. O amar implica sempre um acto de renúncia a si mesmo, o "perder-se a si próprio", e é precisamente assim que nos torna felizes.

Assim chegamos ao Evangelho desta festa, ao anúncio das Bem-Aventuranças, que há pouco ouvimos ressoar nesta Basílica. Jesus diz: Bem-aventurados os pobres de espírito, bem-aventurados os aflitos, os mansos, quem tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, bem-aventurados os puros de coração, os pacificadores, os que sofrem perseguição por causa da justiça (cf. Mt 5, 3-10). Na realidade, o Bem-Aventurado por excelência é somente Ele, Jesus.

Com efeito, Ele é o verdadeiro pobre de espírito, o aflito, o manso, aquele que tem fome e sede de justiça, o misericordioso, o puro de coração, o pacificador; Ele sofre perseguição por causa da justiça. As Bem-Aventuranças revelam-nos a fisionomia espiritual de Jesus e assim exprimem o seu mistério, o mistério da Morte e da Ressurreição, da Paixão e da alegria da Ressurreição. Este mistério, que é mistério da verdadeira bem-aventurança, convida-nos ao seguimento de Jesus e, deste modo, ao caminho que conduz a ela. Na medida em que aceitamos a sua proposta e nos colocamos no seu seguimento cada qual nas suas próprias circunstâncias também nós podemos participar das Bem-Aventuranças. Juntamente com Ele, o impossível torna-se possível e até um camelo pode passar pelo fundo de uma agulha (cf. Mc 10, 25); com a sua ajuda, somente com a sua ajuda podemos tornar-nos perfeitos como é perfeito o Pai celeste (cf. Mt 5, 48).

Estimados irmãos e irmãs, agora entramos no coração da Celebração eucarística, estímulo e alimento de santidade. Daqui a pouco tornar-se-á presente de modo mais excelso Cristo, verdadeira Videira à qual, como ramos, estão unidos os fiéis que vivem na terra e os santos do céu. Por conseguinte, mais íntima será a comunhão da Igreja que peregrina no mundo, com a Igreja triunfante na glória. No Prefácio proclamaremos que os santos são nossos amigos e modelos de vida. Invoquemo-los para que nos ajudem a imitá-los e comprometamo-nos a responder com generosidade, segundo o seu exemplo, à vocação divina. Invoquemos especialmente Maria, Mãe do Senhor e espelho de toda a santidade. Ela, a Toda Santa, nos faça ser fiéis discípulos do seu Filho Jesus Cristo!

Amém. 

 -- Papa Bento XVI, Homília da Solenidde de Todos os Santos, 1o. de Novembro de 2006

30 de out. de 2020

A palavra de Deus é viva e eficaz

A palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes (Hb 4,12). Quão grande seja o poder e quanta sabedoria na palavra de Deus, estas palavras o demonstram aos que buscam a Cristo, que é o verbo, poder e sabedoria de Deus. Coeterno com o Pai no princípio, este verbo no tempo determinado revelou-se aos apóstolos e, por eles anunciado, foi humildemente recebido na fé pelos povos que creem. Está, portanto, o verbo no Pai, o verbo nos lábios, o verbo no coração.  

Esta palavra de Deus é viva; o Pai deu-lhe ter a vida em si mesmo, do mesmo modo como tem ele a vida em si mesmo. Por isto é não apenas viva, mas a vida, conforme ele disse a seu respeito: Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Sendo a vida, é vivo de forma a ser vivificante. Pois, como o Pai ressuscita os mortos e vivifica-os, também o Filho vivifica a quem quer (Jo 5,21). É vivificante ao chamar o morto do sepulcro: Lázaro, vem para fora (Jo 11,42).  

Quando esta palavra é pregada pela voz do pregador que se escuta no exterior, ele dá a esta voz a palavra de poder, percebida interiormente. Por ela, os mortos revivem e com seus louvores são suscitados filhos de Abraão. É, portanto, viva esta palavra no coração do Pai, viva na boca do pregador, viva no coração daquele que crê e ama. Sendo assim viva, não há dúvida de ser também eficaz.  

É eficaz na criação das coisas, eficaz no governo do mundo, eficaz na redenção do universo. Que de mais eficaz, de mais poderoso? Quem dirá seus portentos, fará ouvir todo o seu louvor? (Sl 105,2). É eficaz ao agir, eficaz ao ser anunciada. Pois não volta vazia, mas tem êxito em tudo a quanto é enviada. 

Eficaz e mais penetrante do que a espada de dois gumes (Hb 4,12), quando é crida e amada. O que será impossível a quem crê, ou difícil a quem ama? Quando este verbo fala, suas palavras transpassam o coração quais setas agudas do poderoso. Como pregos profundamente cravados, entram e penetram até o mais íntimo. Porque é mais aguda do que a espada de dois gumes esta palavra, já que é mais poderosa do que toda a força e poder para abrir, e mais sutil do que a maior argúcia do engenho humano. Mais que toda sabedoria humana e a sutileza das palavras doutas, é ela penetrante.

-- Das Obras de Balduíno de Cantuária, bispo (século XII)

24 de out. de 2020

A preguiça, o sexto pensamento pecaminoso


A preguiça para rezar enfraquece a alma

A preguiça é debilidade da alma que ocorre quando não se vive segundo a natureza nem se enfrenta nobremente a tentação. En efeito, a tentação é para uma alma nobre o que é o alimento para um corpo vigoroso.

O vento do norte nutre os brotos das plantas e as tentações consolidam a firmeza da alma. Uma nuvem vazia de água é espalhada pelo vento como a mente daquele que não tem perseverança é dispersa pela preguiça.

O tempo primaveril alimenta o fruto do campo e a palavra espiritual fortalece a alma. A preguiça não permite ao monge rezar, retira-o de sua atividade, enquanto que o perseverante está sempre tranquilo.

O preguiçoso usa como pretexto a visita aos doentes, apenas para garantir seu próprio objetivo. O monge preguiçoso é rápido em terminar seu ofíxio e considera, antes de tudo, a sua satisfação.

A planta débil é dobrada por uma leve brisa, e imaginar um motivo para não rezar é alegria para o monge preguiçoso. Uma árvore bem plantada não é abalada nem pelos ventos fortes e a preguiça não ataca um uma alma bem nutrida.

Um monge que se deixa levar pelos pecados, é como um barquinho no meio do rio violento, sem querer é levado para cá e para lá. O monge vagabundo não dá frutos de virtude, assim como uma árvore transplantada morre facilmente. O doente não se satisfaz com apenas um alimento, assim o monge preguiçoso com sua única ocupação de rezar.

Não basta apenas um mulher para satisfazer o voluptuoso, e não basta apenas a solidão para o preguiçoso.

A oração cura a preguiça

Os olhos do preguiçoso está sempre olhando para as janelas e, em sua mente, imagina estar recebendo visitas. A porta se abre e ele salta de alegria, escuta uma voz e já vai olhar pela janela e não se afasta dali até se cansar de estar sentado.

Quando está lendo, o preguiçoso boceja muito, se deixa levar facilmente pelo sono, esfrega seus olhos, se estica, tira os olhos do livro, olha para a parede, volta a ler mais um pouco, conta as palavras, calcula os parágrafos, despreza as letras e, finalmente, fechando o livro, coloca de lado e cai em um sono muito profundo, mas logo é acordado pela fome e a alma se enche de suas preocupações.

O monge preguiçoso é frouxo na oração e certamente jamais pronuncia as palavras na oração, assim como um doente jamais consegue carregar um peso excessivo. Um monge preguiçoso não se ocupa de seus deveres frente a Deus com diligência; enquanto ao doente falta força física, o preguiçoso tem uma alma enfraquecida.

A paciência, fazer tudo com muita constância e temor de Deus cura a preguiça. Defina para si mesmo atividades adequadas e não desistas antes de tê-las concluído; reze prudentemente, com a força do espírito, a preguiça se afastará de ti.


-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

-- A imagem é uma gravura de James Todd, chamada Sloth, parte de uma série sobre os sete pecados capitais. Pode ser adquirida na Annex Galleries. 


22 de out. de 2020

Não tenhais medo! Abri as portas a Cristo!

 Pedro veio para Roma! E o que foi que o guiou e o conduziu para esta Urbe, o coração do Império Romano, senão a obediência à inspiração recebida do Senhor? Talvez aquele pescador da Galiléia nunca tivesse tido vontade de vir até aqui. Talvez tivesse preferido permanecer, lá onde estava, nas margens do lago da Galiléia, com a sua barca e com as suas redes. Mas, guiado pelo Senhor e obediente à sua inspiração, chegou até aqui!

Segundo uma antiga tradição, durante a perseguição de Nero, Pedro teria tido vontade de deixar Roma. Mas o Senhor interveio: veio ao seu encontro. Pedro, dirigindo-se ao Senhor perguntou: "Quo vadis, Domine?”  (Aonde vais, Senhor?). E o Senhor imediatamente lhe respondeu: "Vou para Roma, para ser crucificado pela segunda vez". Pedro voltou então para Roma e aí permaneceu até à sua crucifixão.

O nosso tempo convida-nos, impele-nos e obriga-nos a olhar para o Senhor e a imergir-nos numa humilde e devota meditação do mistério do supremo poder do mesmo Cristo.

Aquele que nasceu da Virgem Maria, o filho do carpinteiro – como se considerava –, o Filho de Deus vivo, como confessou Pedro, veio para fazer de todos nós “um reino de sacerdotes” .

O Concílio do Vaticano II recordou-nos o mistério deste poder e o fato de que a missão de Cristo – Sacerdote, Profeta, Mestre e Rei – continua na Igreja. Todos, todo o Povo de Deus participa desta tríplice missão. E talvez que no passado se pusesse sobre a cabeça do Papa o trirregno, aquela tríplice coroa, para exprimir, mediante tal símbolo,  que toda a ordem hierárquica da Igreja de Cristo, todo o seu "sagrado poder" que nela é exercido não é mais do que serviço; serviço que tem uma única finalidade: que todo o Povo de Deus participe desta tríplice missão de Cristo e que permaneça sempre sob a soberania do Senhor, a qual não tem as suas origens nos poderes deste mundo, mas sim no Pai celeste e no mistério da Cruz e da Ressurreição.

O poder absoluto e ao mesmo tempo doce e suave do Senhor corresponde a quanto é o mais profundo do homem, às suas mais elevadas aspirações da inteligência, da vontade e do coração. Esse poder não fala com a linguagem da força, mas exprime-se na caridade e na verdade.

O novo Sucessor de Pedro na Sé de Roma eleva, neste dia, uma prece ardente, humilde e confiante: “Ó Cristo! Fazei com que eu possa tornar-me e ser sempre servidor do teu único poder! Servidor do teu suave poder! Servidor do teu poder que não conhece ocaso! Fazei com que eu possa ser um servo! Mais ainda: servo de todos os teus servos.”

Irmãos e Irmãs! Não tenhais medo de acolher Cristo e de aceitar o Seu poder!

Ajudai o Papa e todos aqueles que querem servir Cristo e, com o poder de Cristo, servir o homem e a humanidade inteira!

Não tenhais medo! Abri antes, ou melhor, escancarai as portas a Cristo! Ao Seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas econômicos assim como os políticos, os vastos campos de cultura, de civilização e de progresso! Não tenhais medo! Cristo sabe bem "o que está dentro do homem". Somente Ele o sabe!

Hoje em dia é frequente o homem não saber o que traz no interior de si mesmo, no mais íntimo da sua alma e do seu coração, Frequentemente não encontra o sentido da sua vida sobre a terra. Deixa-se invadir pela dúvida que se transforma em desespero. Permiti, pois – peço-vos e vo-lo imploro com humildade e com confiança – permiti a Cristo falar ao homem. Somente Ele tem palavras de vida; sim, de vida eterna.


-- Da homilia do santo João Paulo II, papa, no início do seu pontificado, 22 de Outubro de 1978

17 de out. de 2020

A tristeza, o quinto pensamento pecaminoso

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A tristeza deriva das paixões não satisfeitas

O monge afetado pela tristeza não conhece prazer espiritual: a tristeza é um abatimento da alma e se forma dos pensamentos da ira. 

O desejo de vingança, com efeito, é próprio da ira, o fracasso da vingança resulta na tristeza, ela é a boca de um leão e facilmente devora aquele que se entristece. A tristeza é com um verme no coração que consome a mãe que o gerou. 

A mãe sofre ao dar a luz a um filho, mas, uma vez que a criança tenha nascido está livre da dor; a tristeza, por outro lado, uma vez que há sido gerada, provoca grandes dores, e mesmo com esforço, nos traz sofrimentos menores. 

O monge triste não conhece a alegria espiritual, como a pessoa que tem uma forte febre não reconhece o sabor do mel. O monge entristecido não consegue manter a mente na contemplação, a oração que brota dele não é pura, a tristeza é um impedimento para todo bem. 

Ter os pés amarrados é um impedimento para correr, assim a tristeza é um obstáculo para a contemplação. Assim como o prisioneiro é amarrado, a tristeza impede o movimento de que está preso em paixões. Se não houver outras paixões, a tristeza não tem forças, assim como ninguém permanece preso se não houver guardas. Aquele que está entregue às paixões está também atado pela tristeza, as cordas que ao redor de suas mãos são a prova de sua derrota. 

Efetivamente a tristeza deriva da falta de êxito ao satisfazer seus desejos carnais, por que o desejo está sempre junto a todas paixões. Quem vence ao desejo, também vencerá as paixões e não estará submetido à tristeza.

Quem está jejuando não se entristece pela falta de alimentos, nem o sábio quando lhe ataca um desejo desordenado; nem o manso quando renuncia a vingança; nem o humilde quando se vê privado da honra; nem o generoso quando sofre uma perda financeira: eles evitaram, com esforço, o desejo destas coisas. Como aquele que está bem protegido não sofre os ataques do inimigo, assim também o homem que domina as paixões não é ferido pela tristeza.

Quem dominar as paixões também dominará a tristeza

O escudo é uma proteção para o soldado, assim como os muros protegem uma cidade, mais seguro ainda está o monge que tem paz interior. De fato, as vez uma flecha lançada por um braço forte pode transpassar o escudo, uma multidão de inimigos pode derrubar os muros da cidade, mas a tristeza não surge onde houver paz interior.

Quem dominar as paixões também dominará a tristeza, enquanto que aquele que for vencido pelas paixões será prisioneiro de suas ataduras. Aquele que se entristece facilmente e simula uma ausência de paixões é como um enfermo que finge estar saudável; assim a doença se revela por uma febre, a  presença de uma paixão se revela por uma tristeza.

Aquele que ama o mundo se verá muito afligido, enquanto que aqueles que desprezam as coisas do mundo estarão sempre livres da tristeza. O ávaro, ao perder algo, se verá terrivelmente entristecido, enquanto que aquele que despreza as riquezas estará sempre livre da tristeza. Quem busca a glória, ao chegar a desonra, ficará batido, enquanto o humilde a acolherá como uma companheira.

O forno purifica a prata de pouca qualidade e a tristeza pelos pecados livra o coração do erro; o contínuo derretimento do metal enfraquece a liga e a tristeza pelas coisas do mundo diminui o intelecto.

O nevoeiro diminui a força dos olhos e a tristeza embrutece a mente dedicada à contemplação; a luz do Sol não chega aos abismos marinhos e a visão da luz não ilumina o coração entristecido. Doce para olhos é o nascer do Sol, mas até isto desagrada a alma triste, a amargura diminui o sentido do paladar assim como a tristeza diminui a capacidade de receber. Porém aquele que abandonar os prazeres do mundo não será pertubado por pensamentos de tristeza.

-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

15 de out. de 2020

O Sorriso de Maria

Ontem [NE: 14 de Setembro, dia da Santa Cruz] celebramos a Cruz de Cristo, instrumento da nossa salvação, que nos revela em plenitude a misericórdia do nosso Deus. A Cruz é realmente o lugar onde se manifesta perfeitamente a compaixão de Deus pelo nosso mundo. Hoje, ao celebrarmos a memória de Nossa Senhora das Dores, contemplamos Maria que partilha a compaixão do Filho pelos pecadores. Como afirmava São Bernardo, a Mãe de Cristo entrou na Paixão do Filho através da sua compaixão (cf. Homilia do Domingo na Oitava da Assunção). Ao pé da Cruz cumpre-se a profecia de Simeão: o seu coração de Mãe é trespassado (cf. Lc 2, 35) pelo suplício infligido ao Inocente, nascido da sua carne. Tal como Jesus chorou (cf. Jo 11, 35), também Maria terá certamente chorado diante do corpo torturado do Filho. Todavia, a sua discrição impede-nos de medir o abismo da sua dor; a profundidade desta aflição é apenas sugerida pelo tradicional símbolo das sete espadas. Como sucedeu com seu Filho Jesus, é possível afirmar que este sofrimento levou-A também a Ela à perfeição (cf. Heb 2, 10), de modo a torná-La capaz de acolher a nova missão espiritual que o Filho Lhe confia imediatamente antes de “entregar o espírito” (cf. Jo 19, 30): tornar-Se a Mãe de Cristo nos seus membros. Naquela hora, através da figura do discípulo amado, Jesus apresenta cada um dos seus discípulos à Mãe dizendo-Lhe: “Eis o teu filho” (cf. Jo 19, 26-27).

Maria vive hoje na alegria e glória da Ressurreição. As lágrimas derramadas ao pé da Cruz transformaram-se num sorriso que nada mais apagará, embora permaneça intacta a sua compaixão materna por nós. Atesta-o a intervenção da Virgem Maria em nosso socorro ao longo da história e não cessa de suscitar por Ela, no povo de Deus, uma confidência inabalável: a oração Memorare (“Lembrai-Vos”) exprime muito bem este sentimento. Maria ama cada um dos seus filhos, concentrando a sua atenção de modo particular naqueles que, como o Filho d’Ela na hora da Paixão, se acham mergulhados no sofrimento; ama-os, simplesmente porque são seus filhos, por vontade de Cristo na Cruz.

O Salmista, vislumbrando de longe este vínculo materno que une a Mãe de Cristo e o povo crente, profetiza a respeito da Virgem Maria: “Os grandes do povo procurarão o teu sorriso” (Sal 44, 13). E assim, solicitados pela Palavra inspirada da Escritura, sempre os cristãos procuraram o sorriso de Nossa Senhora, aquele sorriso que os artistas, na Idade Média, tão prodigiosamente souberam representar e engrandecer. Este sorriso de Maria é para todos: no entanto, dirige-se de modo especial para os que sofrem, a fim de que nele possam encontrar conforto e alívio. Procurar o sorriso de Maria não é uma questão de sentimentalismo devoto ou antiquado; antes, é a justa expressão da relação viva e profundamente humana que nos liga Àquela que Cristo nos deu por Mãe.

Desejar contemplar este sorriso da Virgem não é de forma alguma deixar-se dominar por uma imaginação descontrolada. A própria Escritura nos revela tal sorriso nos lábios de Maria, quando canta o Magnificat: “A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 46-47). Quando a Virgem Maria dá graças ao Senhor, toma-nos por suas testemunhas. Maria, como que por antecipação, partilha com os futuros filhos, que somos nós, a alegria que mora no seu coração, para que uma tal alegria se torne também nossa. E cada proclamação do Magnificat faz de nós testemunhas do seu sorriso. Aqui em Lourdes, durante a aparição de 3 de Março de 1858, Bernadete contemplou de maneira muito especial este sorriso de Maria. Foi esta a primeira resposta dada pela Bela Senhora à jovem vidente, que queria saber a sua identidade. Antes de apresentar-Se-lhe alguns dias mais tarde como “a Imaculada Conceição”, Maria fez-lhe conhecer antes de mais nada o seu sorriso, como se tal fosse a porta mais apropriada para a revelação do seu mistério.

No sorriso da mais eminente de todas as criaturas, que a nós se dirige, reflecte-se a nossa dignidade de filhos de Deus, uma dignidade que nunca se extingue em quem está doente. Aquele sorriso, verdadeiro reflexo da ternura de Deus, é a fonte duma esperança invencível. Acontece infelizmente – bem o sabemos – que o sofrimento prolongado quebre os equilíbrios melhor consolidados duma vida, abale as mais firmes certezas da confiança e chegue por vezes até a fazer desesperar do sentido e valor da vida. Há combates que o homem não pode sustentar sozinho, sem a ajuda da graça divina. Quando a palavra já não consegue encontrar expressões adequadas, subentra a necessidade duma presença carinhosa: procuramos então a solidariedade não só daqueles que compartilham o nosso próprio sangue ou estão ligados connosco por vínculos de amizade, mas também a solidariedade de quantos se acham intimamente unidos a nós pelo laço da fé. E quem de mais íntimo poderíamos nós ter além de Cristo e da sua santa Mãe, a Imaculada? Mais do que qualquer outrem, Eles são capazes de nos compreender e perceber a dureza do combate que travamos contra o mal e o sofrimento. A Carta aos Hebreus, referindo-se a Cristo, afirma que Ele não é alguém incapaz de “compadecer-Se das nossas fraquezas; pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo” (Heb 4, 15).

Queria, humildemente, dizer àqueles que sofrem e a quantos lutam e se sentem tentados a virar as costas à vida: Voltai-vos para Maria! No sorriso da Virgem, encontra-se misteriosamente escondida a força para continuar o combate contra a doença e a favor da vida. Junto d’Ela, encontra-se igualmente a graça para aceitar, sem medo nem mágoa, a despedida deste mundo na hora querida por Deus. 

O sorriso de Maria é uma fonte de água viva. “Do seio daquele que acredite em Mim – disse Jesus –, correrão rios de água viva” (Jo 7, 38). Maria é Aquela que acreditou e, do seu seio, correram rios de água viva, que vêm regar a história dos homens. A fonte indicada por Maria a Bernadete, aqui em Lourdes, é o sinal humilde desta realidade espiritual. Do seu coração de crente e de mãe corre uma água viva que purifica e cura. Inúmeros são aqueles que, mergulhando nas piscinas de Lourdes, descobriram e experimentaram a doce maternidade da Virgem Maria, agarrando-se a Ela para melhor se prenderem ao Senhor! Na sequência litúrgica desta festa de Nossa Senhora das Dores, Maria é honrada sob o título de “Fons amoris”, “Fonte de amor”. Realmente, do coração de Maria, brota um amor gratuito que suscita uma resposta filial, chamada a aperfeiçoar-se sem cessar. Como toda a mãe, e melhor do que qualquer outra mãe, Maria é a educadora do amor. É por isso que tantos doentes vêm aqui, a Lourdes, para dessedentar-se nesta “Fonte de amor” e deixar-se conduzir até à única fonte da salvação, o seu Filho, Jesus Salvador.  

Ao concluir, desejo unir-me à oração dos peregrinos e dos doentes e retomar juntamente convosco um pedaço da oração a Maria feita para a celebração deste Jubileu:

Porque Vós sois o sorriso de Deus, o reflexo da luz de Cristo, a habitação do Espírito Santo,

porque Vós escolhestes Bernadete na sua miséria, Vós que sois a estrela da manhã, a porta do céu e a primeira criatura ressuscitada,

Nossa Senhora de Lourdes”, com os nossos irmãos e as nossas irmãs cujos corações e corpos estão a sofrer, nós Vos rezamos!

-- Papa Bento XVI, homília na Festa de Nossa Senhora das Dores, 15 de Setembro de 2008

3 de out. de 2020

A Ira, o quarto pensamento pecaminoso


 1 Uma mente raivosa não repousa no Senhor

A ira é uma paixão furiosa que com frequência faz perder o juízo a quem tem o conhecimento, embrutece a alma e degrada todo ser humano.
 
Um vento impetuoso não quebrará uma torre nem a animosidade afetará uma alma mansa.
A violência dos ventos pode fazer a água se mover, e o raivoso se agita pelos próprios pensamentos. Um monge raivoso vê a outro e range os dentes. 

A difusão da neblina atrapalha a visão e a ira cobre a mente do raivoso. A nuvem encobre o Sol, assim como o pensamento rancorosa afeta a mente.

Um leão numa jaula sacode violentamente a porta da jaula quando é assaltado por um pensamento raivoso.

Um mar tranquilo é uma visão maravilhosa, mas certamente não é mais agradável que um pessoa em paz. Com efeito, os delfins nadam felizes em um mar tranquilo e os pensamentos se voltam a Deus em uma pessoa serena.

O monge magnânimo é uma fonte tranquila, uma bebida agradável oferecida a todos, enquanto que a mente do raivoso está continuamente agitada, é como uma fonte que sacia o sedento; e dela sai água turva e nociva. Os olhos do raivoso estão injetados de sangue e anunciam um coração em conflito. O rosto do magnânimo mostra doçura e seus olhos estão voltados ao chão.

2 A alma mansa é um templo do Espírito Santo

A mansidão do homem é recordada por Deus e uma alma apaziguada se converte em um templo do Espírito Santo. Cristo recosta sua cabeça naqueles de espírito manso e somente uma mente pacífica se converte em morada da Santíssima Trindade.
 
As raposas fazem morada em uma alma rancorosa e as feras se abrigam em um coração rebelde. Um homem honesto foge das casas do crime, assim como Deus foge de um coração rancoroso. Uma pedra que cai na água torna-a agitada, assim como um discurso malvado também agita o coração do homem.
 
Afasta tua alma dos pensamentos rancorosos, não alimentes animosidade no recinto de teu coração, nem turbes teu momento de oração: efetivamente assim como a fumaça turba a visão, a ira também afeta tua oração.
 
Os pensamentos do raivoso são descendência de víboras e devoram o coração da vítima. Sua oração passa a ser um incenso abominável e sua salmodia é uma música desagradável.
O presente do raivoso é como uma oferta que agita as formigas e certamente não tem lugar nos altares aspergidos de água benta.
 
O raivoso terá sonhos agitados e imaginará assaltos de feras. O homem magnânimo não guarda rancor, se exercita com discursos espirituais e durante a noite alcança a solução de mistérios da fé. 
 

-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

-- A imagem é uma gravura de James Todd, chamada Wrath, parte de uma série sobre os sete pecados capitais. Pode ser adquirida na Annex Galleries.

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