26 de dez. de 2020

O ícone da Sagrada Família



O ícone da Sagrada Família foi encomendado ao pintor e fundador do Caminho Neocatecumenal Kiko Argüello pelo Pontifício Conselho para a Família por ocasião do II Encontro Mundial das Famílias realizado no Rio de Janeiro em 1997. Foi doado pelo autor ao Papa João Paulo II e desde então foi utilizado em vários Encontros Mundiais da Família. 

O ícone original foi pintado a óleo sobre uma placa de carvalho, medindo 1 metro por 1,20. O fundo, como é tradição na pintura sacra de raízes orientais, foi laminado com folhas finas de ouro, alusivo à luz celestial que transfigura o mundo. A cor ocre avermelhada predomina, o que na iconografia simboliza a divindade. 

Significado teológico

Este ícone é rico em conteúdo bíblico e teológico, propondo uma meditação sobre a Sagrada Família, a missão salvífica de Cristo e a família cristã. O momento histórico-salvífico que representa é o regresso da Sagrada Família de Jerusalém a Nazaré, depois que a criança foi encontrada no Templo.

Jesus quando adolescente carrega a cruz em forma de um cetro real, símbolo duplo da Paixão que ele vai sofrer e seu status como rei. São José, com o rosto do Servo de Javé (Is 53) inspirado no Rosto do Mortalha, tem a responsabilidade de pai e protetor do "Filho amado" (Mc 1, 11).  

Embora esta representação de São José carregando Jesus em seu ombros seja rara, um precedente pode ser citado no mosaico do século 12 do Retorno do Sagrada Família do Egito no mosteiro de Cora (Turquia). O tema foi retomado por autores modernos, como William Dobson (1817-1878), em uma de suas pinturas São José carrega o adolescente Jesus no retorno a Nazaré depois de se encontrar com o Doutores da Lei no Templo de Jerusalém. Na composição devemos destacar também a figura de São José representada de acordo com a iconografia de Cristo carregando a ovelha nos ombros, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1: 25-37), e que é preservado em outras imagens canônicas, como o Bom Pastor, São Cristóvão ou, mais recentemente, o Divino Pastor.

A Virgem Maria é representada como Theotokos, ou Mãe de Deus, como indicam as letras vermelhas acima de sua cabeça. Ela caminha ao lado deles recebendo da mão de Cristo um rolo em que as palavras do profeta Isaías aparecem em letras gregas: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para proclamar aos pobres a Boa Nova" (cf. Is 61,1), palavras que Jesus vai ler na Sinagoga de Nazaré no início do seu ministério público e que aplicará a si mesmo, identificando-se como Messias e Salvador (Lc 4, 18,21). As duas estrelas na cabeça e ombro da Virgem fazem referência às outras pessoas da Santíssima Trindade, Deus Pai e Espírito Santo.

A família é essencial ao plano de Deus

Quando Jesus tinha doze anos, ele estava com São José, a Virgem e seus parentes para celebrar a Páscoa no Templo em Jerusalém. Lá eles perderam-no de vista e descobriram-no depois de três dias sentados com os professores da Lei conversando com eles, "e todos os que o ouviram ficaram espantados com sua inteligência e suas respostas" (Lc 2, 47). Diante da preocupação dos pais, Jesus revela sua filiação divina: “Você não sabia que eu devo me ocupar das coisas de meu Pai?” (Lc 2,49), e embora eles não o façam naquele momento, sabem que é necessário formá-lo na fé de seu povo e prepará-lo para sua missão redentora. Da apresentação da criança, o Evangelho diz que Maria e José "cumpriram todas as coisas de acordo com a Lei do Senhor [e] a criança cresceu e se tornou forte, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2,40).

A Palavra de Deus, feita Homem, só pode realizar sua missão quando adulto e Deus revela que o lugar histórico onde o Filho de Deus se torna adulto é na Família de  Nazaré. Até o próprio Deus, feito carne em Jesus Cristo, não dispensa uma família para "crescer em sabedoria, idade e graça." A família é, portanto, fundamental no desígnio de Deus: “a família constitui o lugar natural e o instrumento mais efetivo de humanização e personalização da sociedade: colabora de forma original e profunda na construção do mundo, possibilitando uma vida humana adequada, em particular salvaguardando e transmitindo virtudes e valores”. (Familiaris Consortio, 43)

O fato de Jesus adolescente ser carregado nos ombros indica a importância que o pai tem na família, que deve preparar o jovem para a vida adulta. O papel do pai na e para a família é de importância única e insubstituível. "Como a experiência ensina, a ausência do pai causa desequilíbrios psicológicos e morais, além de notáveis ​​dificuldades nas relações familiares. Estes problemas também ocorrem nas circunstâncias opostas, quando a presença opressora do pai, a superioridade abusiva de prerrogativas que humilham as mulheres e inibem o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis. " (Familiaris Consortio, 25)

O sacramento do Matrimônio: um jugo que nos faz livres

Outra interpretação da posição corporal que Jesus adota no ícone entende Jesus como símbolo do jugo matrimonial na Sagrada Família e, portanto, de todas famílias cristãs. Cristo é o vínculo de união do sacramento matrimonial. “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve”. (Mt 11, 28-30).

Como é bem sabido, o jugo é um instrumento de madeira ao qual pares de mulas ou bois são amarrados, para fazer os animais trabalharem juntos. O termo vem do latim iugum, o que, por sua vez, deriva de uma raiz indo-européia que aparece em sânscrito como yug, signficando "união". Dois bois que trabalham juntos, unidos pela mesma canga, são chamados jugo.  A expressão deriva desta última palavra e também se aplica, por extensão, a outros animais trabalhando juntos, ou algumas pessoas cooperando para fazer o que mesmo.


A presença de Cristo permite ao homem deixar seu egoísmo e passar para o outro, amar na dimensão da Cruz, segundo o mesmo Espírito de Jesus Cristo, onde a mulher se submete ao marido e o homem ama sua esposa como Cristo amou sua Igreja (Ef 5, 25-29). Desta forma, os esposos podem entrar na comunhão perfeita de amor um pelo outro. Eles podem viver em comunhão, unidos pela graça de um vínculo eterno, que eleva à santidade os laços naturais da afetividade. Os cônjuges são, portanto, cônjuges em significado pleno: com jugo, unidos pelo mesmo jugo, mas por livre escolha, por amor um ao outro.

A presença de Cristo torna o milagre do casamento possível hoje no mundo, mesmo que desprezado por muitos, porque acreditam que o amor tem uma data de validade. Aqui está um novo desafio para a família cristã: mostrar que unidos a Cristo ressuscitado, o casamento recebe um vinho novo no meio dos trabalhos e lutas da vida e o casal por continuar junto no caminho da alegria, das provas e da santidade.

-- Tradução própria de uma carta escrita pela família Castillo de Luna, em 2016.


25 de dez. de 2020

Homília de Natal do Papa Francisco: Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado


Nesta noite, cumpre-se a grande profecia de Isaías: "Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado" (Is 9, 5).

Um filho nos foi dado. Com frequência se ouve dizer que a maior alegria da vida é o nascimento duma criança. É algo de extraordinário, que muda tudo, desencadeia energias inesperadas e faz ultrapassar fadigas, incómodos e noites sem dormir, porque traz uma grande felicidade na posse da qual nada parece pesar. Assim é o Natal: o nascimento de Jesus é a novidade que nos permite renascer dentro, cada ano, encontrando n’Ele força para enfrentar todas as provações. Sim, porque Jesus nasce para nós: para mim, para ti, para todos e cada um de nós. A preposição "para" reaparece várias vezes nesta noite santa: "um menino nasceu para nós", profetizou Isaías; "hoje nasceu para nós o Salvador", repetimos no Salmo Responsorial; Jesus "entregou-Se por nós" (Tit 2, 14), proclamou São Paulo; e, no Evangelho, o anjo anunciou "hoje nasceu para vós um Salvador" (Lc 2, 11). Para mim, para vós…

Mas, esta locução "para nós" que nos quer dizer? Que o Filho de Deus, o Bendito por natureza, vem fazer-nos filhos benditos por graça. Sim, Deus vem ao mundo como filho para nos tornar filhos de Deus. Que dom maravilhoso! Hoje Deus deixa-nos maravilhados, ao dizer a cada um de nós: "Tu és uma maravilha". Irmã, irmão, não desanimes! Estás tentado a sentir-te como um erro? Deus diz-te: "Não é verdade! És meu filho". Tens a sensação de não estar à altura, temor de ser inapto, medo de não sair do túnel da provação? Deus diz-te: "Coragem! Estou contigo". Não to diz com palavras, mas fazendo-Se filho como tu e por ti, para te lembrar o ponto de partida de cada renascimento teu: reconhecer-te filho de Deus, filha de Deus. Este é o ponto de partida de qualquer renascimento. Este é o coração indestrutível da nossa esperança, o núcleo incandescente que sustenta a existência: por baixo das nossas qualidades e defeitos, mais forte do que as feridas e fracassos do passado, os temores e ansiedades face ao futuro, está esta verdade: somos filhos amados. E o amor de Deus por nós não depende nem dependerá jamais de nós: é amor gratuito. Esta noite não encontra outra explicação, senão na graça. Tudo é graça. O dom é gratuito, sem mérito algum da nossa parte, pura graça. Esta noite "manifestou-se – disse-nos São Paulo – a graça de Deus" (Tit 2, 11). Nada é mais precioso!

Um filho nos foi dado. O Pai não nos deu uma coisa qualquer, mas o próprio Filho unigénito, que é toda a sua alegria. Todavia, ao considerarmos a ingratidão do homem para com Deus e a injustiça feita a tantos dos nossos irmãos, surge uma dúvida: o Senhor terá feito bem em dar-nos tanto? E fará bem em confiar ainda em nós? Não estará Ele a sobrestimar-nos? Sim, sobrestima-nos; e fá-lo porque nos ama a preço da sua vida. Não consegue deixar de nos amar. É feito assim, tão diferente de nós. Sempre nos ama, e com uma amizade maior de quanta possamos ter a nós mesmos. É o seu segredo para entrar no nosso coração. Deus sabe que a única maneira de nos salvar, de nos curar por dentro, é amar-nos. Não há outra maneira! Sabe que só melhoramos acolhendo o seu amor incansável, que não muda, mas muda-nos a nós. Só o amor de Jesus transforma a vida, cura as feridas mais profundas, livra do círculo vicioso insatisfação, irritação e lamento.

Um filho nos foi dado. Na pobre manjedoura dum lúgubre estábulo, está precisamente o Filho de Deus. E aqui levanta-se outra questão: porque veio Ele à luz durante a noite, sem um alojamento digno, na pobreza e enjeitado, quando merecia nascer como o maior rei no mais lindo dos palácios? Porquê? Para nos fazer compreender até onde chega o seu amor pela nossa condição humana: até tocar com o seu amor concreto a nossa pior miséria. O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que todo o descartado é filho de Deus. Veio ao mundo como vem ao mundo uma criança débil e frágil, para podermos acolher com ternura as nossas fraquezas. E para nos fazer descobrir uma coisa importante: como em Belém, também connosco Deus gosta de fazer grandes coisas através das nossas pobrezas. Colocou toda a nossa salvação na manjedoura dum estábulo, sem temer as nossas pobrezas. Deixemos que a sua misericórdia transforme as nossas misérias!

Eis o que quer dizer um filho nasceu para nós. Mas há ainda um "para" que o anjo disse aos pastores: "Isto servirá de sinal para vós: encontrareis um menino (…) deitado numa manjedoura" (Lc 2, 12). Este sinal – o Menino na manjedoura – é também para nós, para nos orientar na vida. Em Belém, que significa "casa do pão", Deus está numa manjedoura, como se nos quisesse lembrar que, para viver, precisamos d’Ele como de pão para a boca. Precisamos de nos deixar permear pelo seu amor gratuito, incansável, concreto. Mas quantas vezes, famintos de divertimento, sucesso e mundanidade, nutrimos a vida com alimentos que não saciam e deixam o vazio dentro! Disto mesmo Se lamentava o Senhor, pela boca do profeta Isaías: enquanto o boi e o jumento conhecem a sua manjedoura, nós, seu povo, não O conhecemos a Ele, fonte da nossa vida (cf. Is 1, 2-3). É verdade: insaciáveis de ter, atiramo-nos para muitas manjedouras vãs, esquecendo-nos da manjedoura de Belém. Esta manjedoura, pobre de tudo mas rica de amor, ensina que o alimento da vida é deixar-se amar por Deus e amar os outros. Dá-nos o exemplo Jesus: Ele, o Verbo de Deus, é infante; não fala, mas oferece a vida. Nós, ao contrário, falamos muito, mas frequentemente somos analfabetos em bondade.

Um filho nos foi dado. Quem tem uma criança pequena, sabe quanto amor e paciência são necessários. É preciso alimentá-la, cuidar dela, limpá-la, ocupar-se da sua fragilidade e das suas necessidades, muitas vezes difíceis de compreender. Um filho faz-nos sentir amados, mas ensina também a amar. Deus nasceu menino para nos impelir a cuidar dos outros. Os seus ternos gemidos fazem-nos compreender como tantos dos nossos caprichos são inúteis. E temos tantos! O seu amor desarmado e desarmante lembra-nos que o tempo de que dispomos não serve para nos lamentarmos, mas para consolar as lágrimas de quem sofre. Deus vem habitar perto de nós, pobre e necessitado, para nos dizer que, servindo aos pobres, amá-Lo-emos a Ele. Desde aquela noite, como escreveu uma poetisa, "a residência de Deus é próxima da minha. O mobiliário é o amor" (E. Dickinson, Poems, XVII).

Um filho nos foi dado. Sois Vós, Jesus, o Filho que me torna filho. Amais-me como sou, não como eu me sonho ser. Bem o sei! Abraçando-Vos, Menino da manjedoura, reabraço a minha vida. Acolhendo-Vos, Pão de vida, também eu quero dar a minha vida. Vós que me salvais, ensinai-me a servir. Vós que não me deixais sozinho, ajudai-me a consolar os vossos irmãos, porque, a partir desta noite – como Vós sabeis – são todos meus irmãos.

 -- Papa Francisco, Homília da Noite de Natal, 2020

 

 

23 de dez. de 2020

Nota sobre a moralidade do uso de algumas vacinas contra a Covid-19

Comentário: 

Em 21 de Dezembro a Congregação para a Fé publicou um documento sobre vacinas produzidas com células provenientes de abortos. Alguns pontos são importantes destacar:

- os abortos ocorreram há muitos, muitos anos atrás e as células são utilizadas em várias vacinas como sarampo, hepatite A, varicela, raiva e poliomielite. 

- a responsabilidade dos médicos que realizam o aborto, dos cientistas que produzem a vacina, dos diretores das empresas farmacêuticas e do público em geral é diferente

- se a única vacina disponível for uma baseada em células de abortos, é moralmente aceitável utilizar esta vacina por que (1) a distância entre os abortos realizados e a pessoa recebendo a vacina é grande, (2) não há apoio material direto para a realização do aborto,  e (3) deve-se considerar o bem comum.

- se houver outra vacina disponível, esta seria preferível

Mais importante que meu resumo, é ler o documento completo:

A questão do uso de vacinas, em geral, está muitas vezes no centro de insistentes debates na opinião pública. Nestes últimos meses, chegaram a esta Congregação vários pedidos de um parecer sobre uso de algumas vacinas contra o vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19, que, durante o processo de pesquisa e produção, recorreram a linhas celulares provenientes de tecidos obtidos de dois abortos que tiveram lugar no século passado. Ao mesmo tempo, houve pronunciamentos nos meios de comunicação social por parte de Bispos, Associações católicas e Especialistas, diversos e por vezes contraditórios entre si, que também levantaram dúvidas acerca da moralidade do uso destas vacinas.

Sobre este assunto, já existe um importante pronunciamento da Academia Pontifícia para a Vida, sob o título “Reflexões morais sobre as vacinas preparadas a partir de células provenientes de fetos humanos abortados” (5 de junho de 2005). Depois, esta Congregação pronunciou-se a este respeito com a Instrução Dignitas Personae (8 de setembro de 2008) (cf. nn. 34 e 35). Em 2017, a Academia Pontifícia para a Vida voltou ao tema com uma Nota. Estes documentos oferecem já alguns critérios dirimentes.

Uma vez que, em vários países, as primeiras vacinas contra a Covid-19 já estão à disposição para distribuição e administração, esta Congregação deseja oferecer algumas indicações para um esclarecimento a este respeito. Não é nossa intenção emitir juízos sobre a segurança e eficácia destas vacinas, muito embora eles sejam eticamente relevantes e necessários, uma vez que essa avaliação é da competência dos investigadores biomédicos e das agências do medicamento; a nossa intenção é refletir sobre o aspeto moral do uso dessas vacinas contra a Covid-19 que foram desenvolvidas com linhas celulares provenientes de tecidos obtidos a partir de dois fetos abortados não espontaneamente.

1. Como afirma a Instrução Dignitas Personae, nos casos em que se utiliza células provenientes de fetos abortados para criar linhas celulares para serem usadas na pesquisa científica, “existem responsabilidades diferenciadas”[1] de cooperação com o mal. Por exemplo, “nas empresas que utilizam linhas celulares de origem ilícita, não é a mesma a responsabilidade dos que decidem a orientação da produção e a dos que não têm nenhum poder de decisão”.[2]

2. Neste sentido, quando não estiverem disponíveis vacinas contra a Covid-19 que sejam eticamente irrepreensíveis (por exemplo, em países onde não são colocadas à disposição dos médicos e dos pacientes vacinas sem problemas éticos ou em que a sua distribuição é mais difícil devido à particularidade das condições de conservação e transporte, ou quando se distribuem vários tipos de vacinas no mesmo país mas as autoridades sanitárias não permitem que os cidadãos escolham a vacina a inocular) é moralmente aceitável utilizar as vacinas contra a Covid-19 que utilizaram linhas celulares provenientes de fetos abortados no seu processo de pesquisa e produção.

3. A razão fundamental para considerar moralmente lícito o uso destas vacinas é que o tipo de cooperação com o mal (cooperação material passiva) do aborto provocado do qual provêm as mesmas linhas celulares, por parte de quem utiliza as vacinas que daí derivam, é remota. O dever moral de evitar tal cooperação material passiva não é vinculativa se houver um perigo grave, como a propagação, de outra forma impossível de conter, de um agente patogénico grave:[3] neste caso, a difusão pandémica do vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19. Por isso, deve-se considerar que, neste caso, se possam utilizar todas as vacinações reconhecidas como clinicamente securas e eficazes com consciência certa de que o recurso a essas vacinas não significa uma cooperação formal com o aborto do qual derivam as células com as quais as vacinas foram produzidas. No entanto, é preciso sublinhar a utilização moralmente lícita destes tipos de vacinas, pelas particulares condições que a tornam moralmente lícita, não pode constituir em si uma legitimação, ainda que indireta, da prática do aborto e pressupõe a contrariedade a esta prática por parte de quem recorre a estas vacinas.

4. Com efeito, o uso lícito destas vacinas não comporta, nem deve de algum modo comportar uma aprovação moral da utilização de linhas celulares provenientes de fetos abortados.[4] Portanto, pede-se tanto às empresas farmacêuticas como às agências sanitárias governamentais que produzam, aprovem, distribuam e coloquem à disposição vacinas eticamente aceitáveis que não criem problemas de consciência, nem aos profissionais de saúde, nem às próprias pessoas que se apresentam para ser vacinadas.

5. Ao mesmo tempo, afigura-se como algo evidente para a razão prática que a vacinação não constitui, por norma, uma obrigação moral que, por isso, deve ser voluntária. Em todo o caso, do ponto de vista ético, a moralidade da vacinação depende não apenas do dever de tutelar a saúde individual, mas também do dever de procurar o bem comum: bem que, à falta de outros meios para deter ou mesmo para prevenir a epidemia, pode recomendar a vacinação, especialmente para proteger os mais fracos e mais expostos ao contágio. No entanto, aqueles que, por motivos de consciência, rejeitam as vacinas produzidas com linhas celulares provenientes de fetos abortados, devem tomar medidas, com outros meios profiláticos e comportamentos adequados, para evitar tornar-se veículos de transmissão do agente de infeção. Em particular, devem evitar todo e qualquer risco para a saúde de quem não pode ser vacinado por motivos clínicos ou de outra natureza e que são as pessoas mais vulneráveis.

6. Por fim, há também um imperativo moral, para a indústria farmacêutica, para os governantes e para as organizações internacionais, de garantir que as vacinas, eficazes e seguras do ponto de vista sanitário, bem como eticamente aceitáveis, sejam acessíveis também aos países mais pobres e de forma não onerosa para eles. De outro modo, a falta de acesso às vacinas tornar-se-ia mais um motivo de discriminação e de injustiça que condena os países pobres a continuar a viver na indigência sanitária, económica e social.[5]

O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida a 17 de dezembro de 2020 ao abaixo-assinado Cardeal Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, examinou a presente Nota e aprovou a sua publicação.

Dado em Roma, na Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a 21 de dezembro de 2020, na Memória litúrgica de São Pedro Canísio.

Luis F. Card. Ladaria, SI, Prefeito
† Giacomo Morandi, Arcebispo titular de Cerveteri, Secretário

13 de dez. de 2020

Orgulho, o oitavo pensamento pecaminoso

 

1   O orgulho não é aceito por Deus

O Orgulho é um tumor na alma cheio de pus que um dia ir;a explodir emanando um cheiro horrível. O resplendor do relâmpago anuncia o trovão e a presença do orgulho anuncia a soberba.
 
A alma do soberbo alcança grandes alturas e desde lá cai no abismo.Aquele que comete apostasia está enfermo de orgulho colocando a sua própria capacidade acima de Deus. Como aquele que tenta andar em uma teia de aranha cairá, assim também cairá aquele que tenta se apoiar em suas qualidades.

Uma abundância de frutos dobra os ramos de uma árvore e uma abundância de virtudes humilha a mente do homem. O fruto estragado é inútil para o plantador e o orgulho não é aceito por Deus. Um suporte simples pode sustentar os galhos carregados de frutos, assim como o temor de Deus mantém uma alma virtuosa. Como o peso dos frutos pode partir o ramo, o orgulho abaterá uma alma virtuosa.

Não entregues tua alma ao orgulho e terás fantasias grandiosas. A alma do orgulhoso é abandonada por Deus e se converte em objeto de alegria para os demônios. Na noite imagina estar sendo assaltado por manadas de bestas e, durante o dia,é afetado por idéias malvadas. Quando dorme, facilmente se sobressalta, e quando está acordado, se assusta com a sombra de um pássaro. O sussurrar das árvores aterroriza o soberbo e som da água destroça sua alma. Aquele que efetivamente tem se oposto a Deus recusando sua ajuda, se vê depois assustado por fantasmas.

8.2 Não desprezes o criador

O orgulho precipitou o arcanjo dos céus e, como um raio, foi lançado sobre a Terra. A humildade, ao contrário, conduz o homem aos céus e o prepara para formar o coro dos anjos. 

De que te orgulhas, ó homem, quando por natureza eras barro e pó? Por que te consideras acima das nuvens? Contempla a tua natureza por que és terra e pó, e dentre pouco, voltarás a ser pó. Agora és orgulhoso, e mais um pouco, serás alimento para os vermes. Por que elevas a cabeça se desapareças?

Grande é o homem socorrido por Deus por que uma vez necessitado reconheceu a debilidade da sua natureza. Não possuis nada que não tenhas recebido de Deus, não desprezes, portanto, o Criador.

Deus te socorre, não afaste teu benfeitor. Podes ter chegado ao topo de tua condição, porém foi Deus quem te guiou; se agido retamente segundo a virtude, é E;e que tem te conduzido. Glorifica a que te elevou para permanecer seguro nas alturas, reconhece aquele que também foi homem por que a substância é a mesma, nem rechaces por orgulho esta filiação.

8.3 O orgulhoso corre risco de morte

Humilde e moderado é aquele que reconhece a Deus Pai, porém o criador criou tanto ao humilde quanto ao soberbo. Não desprezes ao humilde, de fato ele está mais seguro que tu, caminha sobre a terra e não cairá, porém aquele que se considerada acima dos outros, este se destruirá.

Um monge orgulhoso é como uma árvore sem raízes, não suporta o ímpeto do vento. Uma mente simples é como uma cidadela bem fortificada, que não será capturada pelos inimigos.
Um sopro balança o algodão e um insulto leva o soberbo à loucura. Uma bolha desaparece assim como o orgulho perece. A palavra do humilde adocica a alma, enquanto a palavra do orgulhoso está cheia de presunção. A humildade é a coroa da casa e mantém seguro que nela permanece. Deus escuta a oração do humilde e se exaspera com os pedidos do orgulhoso.

Quando te elevas a grandes alturas, tens necessidade de muita segurança. Aquele que tropeça e cai no chão, logo se recupera, mas aquele que cai de um precipício corre risco de morte.

A pedra preciosa brilha em um bracelete de ouro, assim como a humildade resplandece em meio a outras virtudes.

-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

-- A imagem é uma gravura de James Todd, chamada Vanity, parte de uma série sobre os sete pecados capitais. Pode ser adquirida na Annex Galleries.


16 de nov. de 2020

Beato Juliano Nakaura, um samurai japonês

Viagem a Roma

Juliano Nakaura durante sua visita a Europa.

Em 1582, a Igreja Católica estava crescendo em algumas partes do Japão, especialmente na ilha de Kyushu. Os jesuítas haviam aberto uma escola em Arima, ao sul de Nagasaki, para ensinar jovens samurais a se tornarem professores, catequistas e padres. A escola foi criada pelo Padre Alessandro Valiganano, enviado por Roma para catequisar os japoneses. Certo dia, ele teve a inspiração de escolher alguns jovens da escola e enviá-los para Roma, uma viagem que teria dois objetivos: mostrar a nobreza européia esta nova região que estava sendo conquistada para o Catolicismo e ter testemunhas da grandeza da Igreja quando os jovens retornassem ao Japão. Omura Sumitada, que foi o primeiro senhor feudal japonês a converter-se ao catolicismo, concordou com a idéia e prometeu financiá-la. Outros dois senhores feudais, Arima Haronobu e Otomo Sorin também decidiram ajudar na viagem.

Os quatro jovens escolhidos foram Juliano, Mancio, Martim e Miguel. Mas a viagem não era um passeio agradável. No estreito de Singapura sobreviveram ao naufrágio do navio. Na Índia encontraram um homem que tentou dar algumas ordens para eles, mas como não compreendiam uma só palavra, não fizeram nada. O tal homem puxou a espada e atacou-os, mas eles conseguiram sobreviver.

Chegaram a Lisboa em 1584, tornando celebridades nas cortes européias. Eram esperados no porto por uma multidão, guardas de honra, fanfarras, saudações de canhão e a realeza. Foram recebidos pelos reis de Portugal, Espanha, Nápoles até alcançarem Roma.

No dia da audiência com o Papa, Juliano amanheceu ardendo em febre e embora mal conseguisse caminhar, não deixou de ir. O Papa Gregório XIII vendo o rapaz enfraquecido, foi at;e ele, abraçou-o e prometeu ajudá-lo. Este momento seria lembrado por Juliano por toda a sua vida.

O Papa enviava-lhes presentes e um emissário diariamente para perguntar se estavam todos bem. Certo dia, o Papa caiu doente e mesmo de sua cama, fazia questão de saber como estavam, aliás este foi um de seus últimos gestos, perguntavam como os japoneses estavam, duas horas antes de falecer. Quando o sucessor Sixto V foi entronizado, os rapazes foram os convidados especiais, que assistiram à Missa na primeira fila, a frente da realeza européia. 

Retorno ao Japão

Retornaram ao Japão em 1590, desembarcando em Nagasaki, mas após oito anos e meio longe, o país havia mudado dramaticamente. Ao invés de senhores feudais, alguns ardentemente católicos, o novo Japão era dominado por Toyotomi Hideyoshi, que decidiu banir o Cristianismo de terra japonesas, ordenando todos padres a saírem do país. Este foi início de três séculos de perseguições, umas das piores perpetradas contra o Cristianismo.

Arima Haronobu, um dos senhores feudais católicos que havia financiado a viagem, estava mantendo os jesuítas em suas terras, na cidade-fortaleza de Arima. Porém ele estava sobre constante ataque e os jesuítas transferiram a escola para outra cidade dos domínios de Arima, e depois, para uma outra cidade no interior da ilha de Amakusa-Shimo.

Ainda em Roma os rapazes haviam pedido para entrarem na Ordem dos Jesuítas, sua admissão ocorreu em 25 de Julho de 1591, e depois de dois anos, fizeram seus votos de pobreza, castidade e obediência. Durante este periodo, espiões enviados por Hideyoshi estavam procurando por católicos, por serem japoneses, eles conseguiam se misturar aos camponeses da região e escapar da vigilância.

Em 5 de Fevereiro de 1597, Hideyoshi crucificou 26 franciscanos, jesuítas e leigos católicos em Nagasaki pelo crime de serem cristãos. No ano seguinte, Hideyoshi faleceu e a perseguição diminuiu, mas os sucessores mantiveram a proibição à Igreja Católica. Em 1612, Tokugawa Ieyasu promulgou um novo decreto contra o Cristianismo. Arima Harunobu foi executado e a região que ele controlava, uma área segura para a Igreja, tornou-se preferencial para perseguição à Igreja e o plano de exterminar a fé.

Padre Nakaura

Juliano fora ordenado padre em 1608, quando novas deportações de padres foram ordenadas, ele decidiu permanecer levando uma vida clandestina. Ele morava na cidade porto de Kuchinotsu, onde mantinha um barco sempre pronto para uma eventual fuga. Em 1622 escreveu uma carta para o Padre Nuno Mascarenha, um jesuíta que havia conhecido em Roma e que estava em Macau:

A perseguição continua sem descanso, por causa dela não podemos relaxar um minuto sequer. Até escrever esta carta para Vossa Excelência é difícil porque notícias chegaram que o senhor destas terras decidiu por uma nova e especial perseguição. Um dos fiéis veio até aqui para contar que deve ir para outro lugar mais seguro. O senhor feudal que exterminar o ensino do Evangelho de seus domínios e diz que vai perseverar até que não haja um único fiel em suas terras.

Esta perseguição especial já matou 21 fiéis em Kuchinotsu. Graças a Deus ainda tenho forças para continuar cuidando do rebanho que Deus me confiou. 

Do servo inútil de Deus, Padre Nakaura.

O método de persuasão era extremo: quando encontravam um cristão, amarravam-no de ponta cabeça, com cordas muito apertadas ao redor do peito para que não pudessem respirar direito. Depois abaixavam a cabeça em uma latrina cheia de dejetos e fechavam a latrina na altura do pescoço, ou seja a cabeça ficava dentro da latrina, respirando todo fedor. Se gritassem renunciando a fé, eram retirados e deixados livres.

Após muitos anos vivendo como clandestino, viajando durante a noite para não encontrar guardas do governo, dormindo na mata ou de casa em casa, Juliano já era um velho meio alquebrado pelo tempo, com dificuldades para caminhar, quando foi preso. Após quase um ano de prisão, em 18 de Outubro de 1633, foi levado ao pátio onde sua tortura estava preparada. Ao ser amarrado, declarou que era o Padre Nakaura, que fora recebido pelo Papa. Após quatro dias, gritou  “Senhor, eu aceito este sofrimento por amor a Ti” e faleceu.

Ele foi beatificado em 24 de Novembro de 2008 em Nagasaki durante uma cerimônia assistida por mais de 30.000 japoneses.


-- autoria própría

15 de nov. de 2020

A vaidade, o sétimo pensamento pecaminoso


 1. A vaidade desmancha a virtude de todas boas obras

A vaidade é uma paixão irracional que facilmente se enreda em todas as obras virtuosas.

Um desenho feito com água facilmente desaparece assim como a virtude em uma alma vaidosa. A mão escondida demonstra ser inocente e ação que permanece oculta resplandece como a luz mais forte.

A erva se adere a árvore e, quando chega no mais alto, seca a raiz, assim a vaidade se origina nas virtudes e não se afasta até que a tenha consumido toda sua força. Um cacho de uvas que cai no chão apodrece facilmente, a virtude que se apóia na vaidade, também perece.

O monge vaidoso, é um trabalhador sem salário, se esforça no trabalho mas não recebe nenhuma paga; o bolso furado não guarda seu conteúdo e a vaidade destrói toda sua recompensa.

A continência do vaidoso é como a névoa da manhã, ambos de desaparecem no ar. O vento apaga a bondade do homem assim como a esmola do vaidoso. A pedra lançada acima não chega aos céus e oração de deseja agradar aos homens não chega até Deus.

2. A vaidade torna inútil o jejum, a oração e a esmola.

A vaidade é como uma pedra no caminho, se tropeças nela, corres o risco de perder todas carga. O homem prudente esconde seu tesouro tanto como o monge sábio não fala de suas boas obras. A vaidade aconselha rezar nas praças, mas aquele que combate reza em seu quarto. 

O homem pouco prudente exibe sua riqueza para deixar aos outros com inveja. Tu, porém, deves esconder tuas coisas, durante o caminho podes até cruzar com assaltantes, mas chegarás na cidade em paz e poderás desfrutar de teus bens tranquilamente.

A virtude do vaidoso é um sacrifício que não está ofertado no altar de Deus. A preguiça consome o vigor da alma, enquanto a vaidade fortalece a mente daquele que se esquece de Deus, faz robusto o fraco e até o mais velho parece vigoroso. A vaidade torna inútil o jejum, a oração e a esmola, por que é a aprovação pública que excita tal zelo. 

Não troques tuas boas obras pela fama, nem renuncies a glória futura para ser aclamado na terra. Com efeito, a glória humana habita a terra e na terra se extingue tua fama, mas a glória de tuas virtudes permanecem para sempre.

-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

-- A imagem é uma gravura de James Todd, chamada Vanity, parte de uma série sobre os sete pecados capitais. Pode ser adquirida na Annex Galleries. 



31 de out. de 2020

Se alguém me servir, o Pai há-de honrá-lo

 Amados irmãos e irmãs

A nossa celebração eucarística inaugurou-se hoje com a exortação "Alegremo-nos todos no Senhor". A liturgia convida-nos a compartilhar o júbilo celeste dos santos, a saborear a sua alegria. Os santos não são uma exígua casta de eleitos, mas uma multidão inumerável, para a qual a liturgia de hoje nos exorta a levantar o olhar. Em tal multidão não estão somente os santos oficialmente reconhecidos, mas os batizados de todas as épocas e nações, que procuraram cumprir com amor e fidelidade a vontade divina. De uma grande parte deles não conhecemos os rostos e nem sequer os nomes, mas com os olhos da fé vemo-los resplandecer, como astros repletos de glória, no firmamento de Deus.

No dia de hoje, a Igreja festeja a sua dignidade de "mãe dos santos, imagem da cidade divina" (A. Manzoni), e manifesta a sua beleza de esposa imaculada de Cristo, nascente e modelo de toda a santidade. Sem dúvida, não lhe faltam filhos obstinados e até rebeldes, mas é nos santos que ela reconhece os seus traços característicos, e precisamente neles saboreia a sua glória mais profunda.

Na primeira Leitura, o autor do livro do Apocalipse descreve-os como "uma multidão enorme, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas" (Ap 7, 9). Este povo compreende os santos do Antigo Testamento, a partir do justo Abel e do fiel Patriarca Abraão, os do Novo Testamento, os numerosos mártires do início do cristianismo e também os beatos e os santos dos séculos seguintes, até às testemunhas de Cristo desta nossa época. Todos eles são irmanados pela vontade de encarnar o Evangelho na sua existência, sob o impulso do eterno animador do Povo de Deus, que é o Espírito Santo.

Mas "para que servem o nosso louvor aos santos, o nosso tributo de glória, esta nossa solenidade?". Com esta interrogação tem início uma famosa homilia de São Bernardo para o dia de Todos os Santos. É uma pergunta que se poderia fazer também hoje. E atual é inclusive a resposta que o Salmo nos oferece: "Os nossos santos diz não têm necessidade das nossas honras, e nada lhes advém do nosso culto. Por minha vez, devo confessar que, quando penso nos santos, sinto-me arder de grandes desejos" (Disc. 2; Opera Omnia Cisterc. 5, 364ss.). Eis, portanto, o significado da solenidade moderna: contemplando o exemplo luminoso dos santos, despertar em nós o grande desejo de ser como os santos: felizes por viver próximos de Deus, na sua luz, na grande família dos amigos de Deus. Ser santo significa: viver na intimidade com Deus, viver na sua família. Esta é a vocação de todos nós, reiterada com vigor pelo Concílio Vaticano II, e hoje proposta de novo solenemente à nossa atenção.

Mas como é que podemos tornar-nos santos, amigos de Deus? A esta interrogação pode-se responder antes de tudo de forma negativa: para ser santo não é necessário realizar ações nem obras extraordinárias, nem possuir carismas excepcionais. Depois, vem a resposta positiva: é preciso sobretudo ouvir Jesus e depois segui-lo sem desanimar diante das dificuldades. "Se alguém me serve Ele admoesta-nos que me siga, e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo. Se alguém me servir, o Pai há-de honrá-lo" (Jo 12, 26). Quem nele confia e o ama com sinceridade, como o grão de trigo sepultado na terra, aceita morrer para si mesmo. Com efeito, Ele sabe que quem procura conservar a sua vida para si mesmo, perdê-la-á, e quem se entrega, se perde a si mesmo, precisamente assim encontra a própria vida (cf. Jo 12, 24-25). A experiência da Igreja demonstra que cada forma de santidade, embora siga diferentes percursos, passa sempre pelo caminho da cruz, pelo caminho da renúncia a si mesmo. As biografias dos santos descrevem homens e mulheres que, dóceis aos desígnios divinos, enfrentaram por vezes provações e sofrimentos indescritíveis, perseguições e o martírio. Perseveraram no seu compromisso, "vêm da grande tribulação lê-se no Apocalipse lavaram as suas túnicas e branquearam-nas no sangue do Cordeiro" (Ap 7, 14). Os seus nomes estão inscritos no livro da Vida (cf. Ap 20, 12); a sua morada eterna é o Paraíso. O exemplo dos santos constitui para nós um encorajamento a seguir os mesmos passos, a experimentar a alegria daqueles que confiam em Deus, porque a única verdadeira causa de tristeza e de infelicidade para o homem é o facto de viver longe de Deus.

A santidade exige um esforço constante, mas é possível para todos porque, mais do que uma obra do homem, é sobretudo um dom de Deus, três vezes Santo (cf. Is 6, 3). Na segunda Leitura, o Apóstolo João observa: "Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos!" (1 Jo 3, 1). Portanto, é Deus que nos amou primeiro e, em Jesus, nos tornou seus filhos adoptivos. Na nossa vida tudo é dom do seu amor: como permanecer indiferente diante de um mistério tão grande? Como deixar de responder ao amor do Pai celestial, com uma vida de filhos reconhecidos? Em Cristo, entregou-se inteiramente a nós e chama-nos a um profundo relacionamento pessoal com Ele. Portanto, quanto mais imitarmos Jesus e permanecermos unidos a Ele, tanto mais entraremos no mistério da santidade divina. Descobrimos que somos amados por Ele de modo infinito, e isto impele-nos, por nossa vez, a amar os irmãos. O amar implica sempre um acto de renúncia a si mesmo, o "perder-se a si próprio", e é precisamente assim que nos torna felizes.

Assim chegamos ao Evangelho desta festa, ao anúncio das Bem-Aventuranças, que há pouco ouvimos ressoar nesta Basílica. Jesus diz: Bem-aventurados os pobres de espírito, bem-aventurados os aflitos, os mansos, quem tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, bem-aventurados os puros de coração, os pacificadores, os que sofrem perseguição por causa da justiça (cf. Mt 5, 3-10). Na realidade, o Bem-Aventurado por excelência é somente Ele, Jesus.

Com efeito, Ele é o verdadeiro pobre de espírito, o aflito, o manso, aquele que tem fome e sede de justiça, o misericordioso, o puro de coração, o pacificador; Ele sofre perseguição por causa da justiça. As Bem-Aventuranças revelam-nos a fisionomia espiritual de Jesus e assim exprimem o seu mistério, o mistério da Morte e da Ressurreição, da Paixão e da alegria da Ressurreição. Este mistério, que é mistério da verdadeira bem-aventurança, convida-nos ao seguimento de Jesus e, deste modo, ao caminho que conduz a ela. Na medida em que aceitamos a sua proposta e nos colocamos no seu seguimento cada qual nas suas próprias circunstâncias também nós podemos participar das Bem-Aventuranças. Juntamente com Ele, o impossível torna-se possível e até um camelo pode passar pelo fundo de uma agulha (cf. Mc 10, 25); com a sua ajuda, somente com a sua ajuda podemos tornar-nos perfeitos como é perfeito o Pai celeste (cf. Mt 5, 48).

Estimados irmãos e irmãs, agora entramos no coração da Celebração eucarística, estímulo e alimento de santidade. Daqui a pouco tornar-se-á presente de modo mais excelso Cristo, verdadeira Videira à qual, como ramos, estão unidos os fiéis que vivem na terra e os santos do céu. Por conseguinte, mais íntima será a comunhão da Igreja que peregrina no mundo, com a Igreja triunfante na glória. No Prefácio proclamaremos que os santos são nossos amigos e modelos de vida. Invoquemo-los para que nos ajudem a imitá-los e comprometamo-nos a responder com generosidade, segundo o seu exemplo, à vocação divina. Invoquemos especialmente Maria, Mãe do Senhor e espelho de toda a santidade. Ela, a Toda Santa, nos faça ser fiéis discípulos do seu Filho Jesus Cristo!

Amém. 

 -- Papa Bento XVI, Homília da Solenidde de Todos os Santos, 1o. de Novembro de 2006

30 de out. de 2020

A palavra de Deus é viva e eficaz

A palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes (Hb 4,12). Quão grande seja o poder e quanta sabedoria na palavra de Deus, estas palavras o demonstram aos que buscam a Cristo, que é o verbo, poder e sabedoria de Deus. Coeterno com o Pai no princípio, este verbo no tempo determinado revelou-se aos apóstolos e, por eles anunciado, foi humildemente recebido na fé pelos povos que creem. Está, portanto, o verbo no Pai, o verbo nos lábios, o verbo no coração.  

Esta palavra de Deus é viva; o Pai deu-lhe ter a vida em si mesmo, do mesmo modo como tem ele a vida em si mesmo. Por isto é não apenas viva, mas a vida, conforme ele disse a seu respeito: Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Sendo a vida, é vivo de forma a ser vivificante. Pois, como o Pai ressuscita os mortos e vivifica-os, também o Filho vivifica a quem quer (Jo 5,21). É vivificante ao chamar o morto do sepulcro: Lázaro, vem para fora (Jo 11,42).  

Quando esta palavra é pregada pela voz do pregador que se escuta no exterior, ele dá a esta voz a palavra de poder, percebida interiormente. Por ela, os mortos revivem e com seus louvores são suscitados filhos de Abraão. É, portanto, viva esta palavra no coração do Pai, viva na boca do pregador, viva no coração daquele que crê e ama. Sendo assim viva, não há dúvida de ser também eficaz.  

É eficaz na criação das coisas, eficaz no governo do mundo, eficaz na redenção do universo. Que de mais eficaz, de mais poderoso? Quem dirá seus portentos, fará ouvir todo o seu louvor? (Sl 105,2). É eficaz ao agir, eficaz ao ser anunciada. Pois não volta vazia, mas tem êxito em tudo a quanto é enviada. 

Eficaz e mais penetrante do que a espada de dois gumes (Hb 4,12), quando é crida e amada. O que será impossível a quem crê, ou difícil a quem ama? Quando este verbo fala, suas palavras transpassam o coração quais setas agudas do poderoso. Como pregos profundamente cravados, entram e penetram até o mais íntimo. Porque é mais aguda do que a espada de dois gumes esta palavra, já que é mais poderosa do que toda a força e poder para abrir, e mais sutil do que a maior argúcia do engenho humano. Mais que toda sabedoria humana e a sutileza das palavras doutas, é ela penetrante.

-- Das Obras de Balduíno de Cantuária, bispo (século XII)

24 de out. de 2020

A preguiça, o sexto pensamento pecaminoso


A preguiça para rezar enfraquece a alma

A preguiça é debilidade da alma que ocorre quando não se vive segundo a natureza nem se enfrenta nobremente a tentação. En efeito, a tentação é para uma alma nobre o que é o alimento para um corpo vigoroso.

O vento do norte nutre os brotos das plantas e as tentações consolidam a firmeza da alma. Uma nuvem vazia de água é espalhada pelo vento como a mente daquele que não tem perseverança é dispersa pela preguiça.

O tempo primaveril alimenta o fruto do campo e a palavra espiritual fortalece a alma. A preguiça não permite ao monge rezar, retira-o de sua atividade, enquanto que o perseverante está sempre tranquilo.

O preguiçoso usa como pretexto a visita aos doentes, apenas para garantir seu próprio objetivo. O monge preguiçoso é rápido em terminar seu ofíxio e considera, antes de tudo, a sua satisfação.

A planta débil é dobrada por uma leve brisa, e imaginar um motivo para não rezar é alegria para o monge preguiçoso. Uma árvore bem plantada não é abalada nem pelos ventos fortes e a preguiça não ataca um uma alma bem nutrida.

Um monge que se deixa levar pelos pecados, é como um barquinho no meio do rio violento, sem querer é levado para cá e para lá. O monge vagabundo não dá frutos de virtude, assim como uma árvore transplantada morre facilmente. O doente não se satisfaz com apenas um alimento, assim o monge preguiçoso com sua única ocupação de rezar.

Não basta apenas um mulher para satisfazer o voluptuoso, e não basta apenas a solidão para o preguiçoso.

A oração cura a preguiça

Os olhos do preguiçoso está sempre olhando para as janelas e, em sua mente, imagina estar recebendo visitas. A porta se abre e ele salta de alegria, escuta uma voz e já vai olhar pela janela e não se afasta dali até se cansar de estar sentado.

Quando está lendo, o preguiçoso boceja muito, se deixa levar facilmente pelo sono, esfrega seus olhos, se estica, tira os olhos do livro, olha para a parede, volta a ler mais um pouco, conta as palavras, calcula os parágrafos, despreza as letras e, finalmente, fechando o livro, coloca de lado e cai em um sono muito profundo, mas logo é acordado pela fome e a alma se enche de suas preocupações.

O monge preguiçoso é frouxo na oração e certamente jamais pronuncia as palavras na oração, assim como um doente jamais consegue carregar um peso excessivo. Um monge preguiçoso não se ocupa de seus deveres frente a Deus com diligência; enquanto ao doente falta força física, o preguiçoso tem uma alma enfraquecida.

A paciência, fazer tudo com muita constância e temor de Deus cura a preguiça. Defina para si mesmo atividades adequadas e não desistas antes de tê-las concluído; reze prudentemente, com a força do espírito, a preguiça se afastará de ti.


-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

-- A imagem é uma gravura de James Todd, chamada Sloth, parte de uma série sobre os sete pecados capitais. Pode ser adquirida na Annex Galleries. 


22 de out. de 2020

Não tenhais medo! Abri as portas a Cristo!

 Pedro veio para Roma! E o que foi que o guiou e o conduziu para esta Urbe, o coração do Império Romano, senão a obediência à inspiração recebida do Senhor? Talvez aquele pescador da Galiléia nunca tivesse tido vontade de vir até aqui. Talvez tivesse preferido permanecer, lá onde estava, nas margens do lago da Galiléia, com a sua barca e com as suas redes. Mas, guiado pelo Senhor e obediente à sua inspiração, chegou até aqui!

Segundo uma antiga tradição, durante a perseguição de Nero, Pedro teria tido vontade de deixar Roma. Mas o Senhor interveio: veio ao seu encontro. Pedro, dirigindo-se ao Senhor perguntou: "Quo vadis, Domine?”  (Aonde vais, Senhor?). E o Senhor imediatamente lhe respondeu: "Vou para Roma, para ser crucificado pela segunda vez". Pedro voltou então para Roma e aí permaneceu até à sua crucifixão.

O nosso tempo convida-nos, impele-nos e obriga-nos a olhar para o Senhor e a imergir-nos numa humilde e devota meditação do mistério do supremo poder do mesmo Cristo.

Aquele que nasceu da Virgem Maria, o filho do carpinteiro – como se considerava –, o Filho de Deus vivo, como confessou Pedro, veio para fazer de todos nós “um reino de sacerdotes” .

O Concílio do Vaticano II recordou-nos o mistério deste poder e o fato de que a missão de Cristo – Sacerdote, Profeta, Mestre e Rei – continua na Igreja. Todos, todo o Povo de Deus participa desta tríplice missão. E talvez que no passado se pusesse sobre a cabeça do Papa o trirregno, aquela tríplice coroa, para exprimir, mediante tal símbolo,  que toda a ordem hierárquica da Igreja de Cristo, todo o seu "sagrado poder" que nela é exercido não é mais do que serviço; serviço que tem uma única finalidade: que todo o Povo de Deus participe desta tríplice missão de Cristo e que permaneça sempre sob a soberania do Senhor, a qual não tem as suas origens nos poderes deste mundo, mas sim no Pai celeste e no mistério da Cruz e da Ressurreição.

O poder absoluto e ao mesmo tempo doce e suave do Senhor corresponde a quanto é o mais profundo do homem, às suas mais elevadas aspirações da inteligência, da vontade e do coração. Esse poder não fala com a linguagem da força, mas exprime-se na caridade e na verdade.

O novo Sucessor de Pedro na Sé de Roma eleva, neste dia, uma prece ardente, humilde e confiante: “Ó Cristo! Fazei com que eu possa tornar-me e ser sempre servidor do teu único poder! Servidor do teu suave poder! Servidor do teu poder que não conhece ocaso! Fazei com que eu possa ser um servo! Mais ainda: servo de todos os teus servos.”

Irmãos e Irmãs! Não tenhais medo de acolher Cristo e de aceitar o Seu poder!

Ajudai o Papa e todos aqueles que querem servir Cristo e, com o poder de Cristo, servir o homem e a humanidade inteira!

Não tenhais medo! Abri antes, ou melhor, escancarai as portas a Cristo! Ao Seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas econômicos assim como os políticos, os vastos campos de cultura, de civilização e de progresso! Não tenhais medo! Cristo sabe bem "o que está dentro do homem". Somente Ele o sabe!

Hoje em dia é frequente o homem não saber o que traz no interior de si mesmo, no mais íntimo da sua alma e do seu coração, Frequentemente não encontra o sentido da sua vida sobre a terra. Deixa-se invadir pela dúvida que se transforma em desespero. Permiti, pois – peço-vos e vo-lo imploro com humildade e com confiança – permiti a Cristo falar ao homem. Somente Ele tem palavras de vida; sim, de vida eterna.


-- Da homilia do santo João Paulo II, papa, no início do seu pontificado, 22 de Outubro de 1978

17 de out. de 2020

A tristeza, o quinto pensamento pecaminoso

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A tristeza deriva das paixões não satisfeitas

O monge afetado pela tristeza não conhece prazer espiritual: a tristeza é um abatimento da alma e se forma dos pensamentos da ira. 

O desejo de vingança, com efeito, é próprio da ira, o fracasso da vingança resulta na tristeza, ela é a boca de um leão e facilmente devora aquele que se entristece. A tristeza é com um verme no coração que consome a mãe que o gerou. 

A mãe sofre ao dar a luz a um filho, mas, uma vez que a criança tenha nascido está livre da dor; a tristeza, por outro lado, uma vez que há sido gerada, provoca grandes dores, e mesmo com esforço, nos traz sofrimentos menores. 

O monge triste não conhece a alegria espiritual, como a pessoa que tem uma forte febre não reconhece o sabor do mel. O monge entristecido não consegue manter a mente na contemplação, a oração que brota dele não é pura, a tristeza é um impedimento para todo bem. 

Ter os pés amarrados é um impedimento para correr, assim a tristeza é um obstáculo para a contemplação. Assim como o prisioneiro é amarrado, a tristeza impede o movimento de que está preso em paixões. Se não houver outras paixões, a tristeza não tem forças, assim como ninguém permanece preso se não houver guardas. Aquele que está entregue às paixões está também atado pela tristeza, as cordas que ao redor de suas mãos são a prova de sua derrota. 

Efetivamente a tristeza deriva da falta de êxito ao satisfazer seus desejos carnais, por que o desejo está sempre junto a todas paixões. Quem vence ao desejo, também vencerá as paixões e não estará submetido à tristeza.

Quem está jejuando não se entristece pela falta de alimentos, nem o sábio quando lhe ataca um desejo desordenado; nem o manso quando renuncia a vingança; nem o humilde quando se vê privado da honra; nem o generoso quando sofre uma perda financeira: eles evitaram, com esforço, o desejo destas coisas. Como aquele que está bem protegido não sofre os ataques do inimigo, assim também o homem que domina as paixões não é ferido pela tristeza.

Quem dominar as paixões também dominará a tristeza

O escudo é uma proteção para o soldado, assim como os muros protegem uma cidade, mais seguro ainda está o monge que tem paz interior. De fato, as vez uma flecha lançada por um braço forte pode transpassar o escudo, uma multidão de inimigos pode derrubar os muros da cidade, mas a tristeza não surge onde houver paz interior.

Quem dominar as paixões também dominará a tristeza, enquanto que aquele que for vencido pelas paixões será prisioneiro de suas ataduras. Aquele que se entristece facilmente e simula uma ausência de paixões é como um enfermo que finge estar saudável; assim a doença se revela por uma febre, a  presença de uma paixão se revela por uma tristeza.

Aquele que ama o mundo se verá muito afligido, enquanto que aqueles que desprezam as coisas do mundo estarão sempre livres da tristeza. O ávaro, ao perder algo, se verá terrivelmente entristecido, enquanto que aquele que despreza as riquezas estará sempre livre da tristeza. Quem busca a glória, ao chegar a desonra, ficará batido, enquanto o humilde a acolherá como uma companheira.

O forno purifica a prata de pouca qualidade e a tristeza pelos pecados livra o coração do erro; o contínuo derretimento do metal enfraquece a liga e a tristeza pelas coisas do mundo diminui o intelecto.

O nevoeiro diminui a força dos olhos e a tristeza embrutece a mente dedicada à contemplação; a luz do Sol não chega aos abismos marinhos e a visão da luz não ilumina o coração entristecido. Doce para olhos é o nascer do Sol, mas até isto desagrada a alma triste, a amargura diminui o sentido do paladar assim como a tristeza diminui a capacidade de receber. Porém aquele que abandonar os prazeres do mundo não será pertubado por pensamentos de tristeza.

-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

15 de out. de 2020

O Sorriso de Maria

Ontem [NE: 14 de Setembro, dia da Santa Cruz] celebramos a Cruz de Cristo, instrumento da nossa salvação, que nos revela em plenitude a misericórdia do nosso Deus. A Cruz é realmente o lugar onde se manifesta perfeitamente a compaixão de Deus pelo nosso mundo. Hoje, ao celebrarmos a memória de Nossa Senhora das Dores, contemplamos Maria que partilha a compaixão do Filho pelos pecadores. Como afirmava São Bernardo, a Mãe de Cristo entrou na Paixão do Filho através da sua compaixão (cf. Homilia do Domingo na Oitava da Assunção). Ao pé da Cruz cumpre-se a profecia de Simeão: o seu coração de Mãe é trespassado (cf. Lc 2, 35) pelo suplício infligido ao Inocente, nascido da sua carne. Tal como Jesus chorou (cf. Jo 11, 35), também Maria terá certamente chorado diante do corpo torturado do Filho. Todavia, a sua discrição impede-nos de medir o abismo da sua dor; a profundidade desta aflição é apenas sugerida pelo tradicional símbolo das sete espadas. Como sucedeu com seu Filho Jesus, é possível afirmar que este sofrimento levou-A também a Ela à perfeição (cf. Heb 2, 10), de modo a torná-La capaz de acolher a nova missão espiritual que o Filho Lhe confia imediatamente antes de “entregar o espírito” (cf. Jo 19, 30): tornar-Se a Mãe de Cristo nos seus membros. Naquela hora, através da figura do discípulo amado, Jesus apresenta cada um dos seus discípulos à Mãe dizendo-Lhe: “Eis o teu filho” (cf. Jo 19, 26-27).

Maria vive hoje na alegria e glória da Ressurreição. As lágrimas derramadas ao pé da Cruz transformaram-se num sorriso que nada mais apagará, embora permaneça intacta a sua compaixão materna por nós. Atesta-o a intervenção da Virgem Maria em nosso socorro ao longo da história e não cessa de suscitar por Ela, no povo de Deus, uma confidência inabalável: a oração Memorare (“Lembrai-Vos”) exprime muito bem este sentimento. Maria ama cada um dos seus filhos, concentrando a sua atenção de modo particular naqueles que, como o Filho d’Ela na hora da Paixão, se acham mergulhados no sofrimento; ama-os, simplesmente porque são seus filhos, por vontade de Cristo na Cruz.

O Salmista, vislumbrando de longe este vínculo materno que une a Mãe de Cristo e o povo crente, profetiza a respeito da Virgem Maria: “Os grandes do povo procurarão o teu sorriso” (Sal 44, 13). E assim, solicitados pela Palavra inspirada da Escritura, sempre os cristãos procuraram o sorriso de Nossa Senhora, aquele sorriso que os artistas, na Idade Média, tão prodigiosamente souberam representar e engrandecer. Este sorriso de Maria é para todos: no entanto, dirige-se de modo especial para os que sofrem, a fim de que nele possam encontrar conforto e alívio. Procurar o sorriso de Maria não é uma questão de sentimentalismo devoto ou antiquado; antes, é a justa expressão da relação viva e profundamente humana que nos liga Àquela que Cristo nos deu por Mãe.

Desejar contemplar este sorriso da Virgem não é de forma alguma deixar-se dominar por uma imaginação descontrolada. A própria Escritura nos revela tal sorriso nos lábios de Maria, quando canta o Magnificat: “A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 46-47). Quando a Virgem Maria dá graças ao Senhor, toma-nos por suas testemunhas. Maria, como que por antecipação, partilha com os futuros filhos, que somos nós, a alegria que mora no seu coração, para que uma tal alegria se torne também nossa. E cada proclamação do Magnificat faz de nós testemunhas do seu sorriso. Aqui em Lourdes, durante a aparição de 3 de Março de 1858, Bernadete contemplou de maneira muito especial este sorriso de Maria. Foi esta a primeira resposta dada pela Bela Senhora à jovem vidente, que queria saber a sua identidade. Antes de apresentar-Se-lhe alguns dias mais tarde como “a Imaculada Conceição”, Maria fez-lhe conhecer antes de mais nada o seu sorriso, como se tal fosse a porta mais apropriada para a revelação do seu mistério.

No sorriso da mais eminente de todas as criaturas, que a nós se dirige, reflecte-se a nossa dignidade de filhos de Deus, uma dignidade que nunca se extingue em quem está doente. Aquele sorriso, verdadeiro reflexo da ternura de Deus, é a fonte duma esperança invencível. Acontece infelizmente – bem o sabemos – que o sofrimento prolongado quebre os equilíbrios melhor consolidados duma vida, abale as mais firmes certezas da confiança e chegue por vezes até a fazer desesperar do sentido e valor da vida. Há combates que o homem não pode sustentar sozinho, sem a ajuda da graça divina. Quando a palavra já não consegue encontrar expressões adequadas, subentra a necessidade duma presença carinhosa: procuramos então a solidariedade não só daqueles que compartilham o nosso próprio sangue ou estão ligados connosco por vínculos de amizade, mas também a solidariedade de quantos se acham intimamente unidos a nós pelo laço da fé. E quem de mais íntimo poderíamos nós ter além de Cristo e da sua santa Mãe, a Imaculada? Mais do que qualquer outrem, Eles são capazes de nos compreender e perceber a dureza do combate que travamos contra o mal e o sofrimento. A Carta aos Hebreus, referindo-se a Cristo, afirma que Ele não é alguém incapaz de “compadecer-Se das nossas fraquezas; pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo” (Heb 4, 15).

Queria, humildemente, dizer àqueles que sofrem e a quantos lutam e se sentem tentados a virar as costas à vida: Voltai-vos para Maria! No sorriso da Virgem, encontra-se misteriosamente escondida a força para continuar o combate contra a doença e a favor da vida. Junto d’Ela, encontra-se igualmente a graça para aceitar, sem medo nem mágoa, a despedida deste mundo na hora querida por Deus. 

O sorriso de Maria é uma fonte de água viva. “Do seio daquele que acredite em Mim – disse Jesus –, correrão rios de água viva” (Jo 7, 38). Maria é Aquela que acreditou e, do seu seio, correram rios de água viva, que vêm regar a história dos homens. A fonte indicada por Maria a Bernadete, aqui em Lourdes, é o sinal humilde desta realidade espiritual. Do seu coração de crente e de mãe corre uma água viva que purifica e cura. Inúmeros são aqueles que, mergulhando nas piscinas de Lourdes, descobriram e experimentaram a doce maternidade da Virgem Maria, agarrando-se a Ela para melhor se prenderem ao Senhor! Na sequência litúrgica desta festa de Nossa Senhora das Dores, Maria é honrada sob o título de “Fons amoris”, “Fonte de amor”. Realmente, do coração de Maria, brota um amor gratuito que suscita uma resposta filial, chamada a aperfeiçoar-se sem cessar. Como toda a mãe, e melhor do que qualquer outra mãe, Maria é a educadora do amor. É por isso que tantos doentes vêm aqui, a Lourdes, para dessedentar-se nesta “Fonte de amor” e deixar-se conduzir até à única fonte da salvação, o seu Filho, Jesus Salvador.  

Ao concluir, desejo unir-me à oração dos peregrinos e dos doentes e retomar juntamente convosco um pedaço da oração a Maria feita para a celebração deste Jubileu:

Porque Vós sois o sorriso de Deus, o reflexo da luz de Cristo, a habitação do Espírito Santo,

porque Vós escolhestes Bernadete na sua miséria, Vós que sois a estrela da manhã, a porta do céu e a primeira criatura ressuscitada,

Nossa Senhora de Lourdes”, com os nossos irmãos e as nossas irmãs cujos corações e corpos estão a sofrer, nós Vos rezamos!

-- Papa Bento XVI, homília na Festa de Nossa Senhora das Dores, 15 de Setembro de 2008

3 de out. de 2020

A Ira, o quarto pensamento pecaminoso


 1 Uma mente raivosa não repousa no Senhor

A ira é uma paixão furiosa que com frequência faz perder o juízo a quem tem o conhecimento, embrutece a alma e degrada todo ser humano.
 
Um vento impetuoso não quebrará uma torre nem a animosidade afetará uma alma mansa.
A violência dos ventos pode fazer a água se mover, e o raivoso se agita pelos próprios pensamentos. Um monge raivoso vê a outro e range os dentes. 

A difusão da neblina atrapalha a visão e a ira cobre a mente do raivoso. A nuvem encobre o Sol, assim como o pensamento rancorosa afeta a mente.

Um leão numa jaula sacode violentamente a porta da jaula quando é assaltado por um pensamento raivoso.

Um mar tranquilo é uma visão maravilhosa, mas certamente não é mais agradável que um pessoa em paz. Com efeito, os delfins nadam felizes em um mar tranquilo e os pensamentos se voltam a Deus em uma pessoa serena.

O monge magnânimo é uma fonte tranquila, uma bebida agradável oferecida a todos, enquanto que a mente do raivoso está continuamente agitada, é como uma fonte que sacia o sedento; e dela sai água turva e nociva. Os olhos do raivoso estão injetados de sangue e anunciam um coração em conflito. O rosto do magnânimo mostra doçura e seus olhos estão voltados ao chão.

2 A alma mansa é um templo do Espírito Santo

A mansidão do homem é recordada por Deus e uma alma apaziguada se converte em um templo do Espírito Santo. Cristo recosta sua cabeça naqueles de espírito manso e somente uma mente pacífica se converte em morada da Santíssima Trindade.
 
As raposas fazem morada em uma alma rancorosa e as feras se abrigam em um coração rebelde. Um homem honesto foge das casas do crime, assim como Deus foge de um coração rancoroso. Uma pedra que cai na água torna-a agitada, assim como um discurso malvado também agita o coração do homem.
 
Afasta tua alma dos pensamentos rancorosos, não alimentes animosidade no recinto de teu coração, nem turbes teu momento de oração: efetivamente assim como a fumaça turba a visão, a ira também afeta tua oração.
 
Os pensamentos do raivoso são descendência de víboras e devoram o coração da vítima. Sua oração passa a ser um incenso abominável e sua salmodia é uma música desagradável.
O presente do raivoso é como uma oferta que agita as formigas e certamente não tem lugar nos altares aspergidos de água benta.
 
O raivoso terá sonhos agitados e imaginará assaltos de feras. O homem magnânimo não guarda rancor, se exercita com discursos espirituais e durante a noite alcança a solução de mistérios da fé. 
 

-- Evágrio, monge (século IV), tradução própria

-- A imagem é uma gravura de James Todd, chamada Wrath, parte de uma série sobre os sete pecados capitais. Pode ser adquirida na Annex Galleries.

23 de set. de 2020

Homília sobre o Padre Pio de Pietralcina


 

 1. "O Meu jugo é suave e o Meu fardo é leve" (Mt 11, 30).

As palavras dirigidas por Jesus aos discípulos, que acabamos de ouvir, ajudam-nos a compreender a mensagem mais importante desta solene celebração. De fato, podemos considerá-las, num certo sentido, como uma magnífica síntese de toda a existência do Padre Pio de Pietrelcina, hoje proclamado santo.

A imagem evangélica do "jugo" recorda as numerosas provas que o humilde capuchinho de San Giovanni Rotondo teve que enfrentar. Hoje contemplamos nele como é suave o "jugo" de Cristo e verdadeiramente leve o seu fardo quando é carregado com amor fiel. A vida e a missão do Padre Pio testemunham que as dificuldades e os sofrimentos, se forem aceitos por amor, transformam-se num caminho privilegiado de santidade, que abre perspectivas de um bem maior, que só Deus conhece.

2. "Quanto a mim, Deus me livre de me gloriar a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo" (Gl 6, 14).

Não é porventura precisamente a "glorificação da Cruz" o que mais resplandece em Padre Pio? Como é atual a espiritualidade da Cruz vivida pelo humilde Capuchinho de Pietrelcina! O nosso tempo precisa de redescobrir o valor para abrir o coração à esperança.

Em toda a sua existência, ele procurou conformar-se cada vez mais com o Crucificado, tendo clara consciência de ter sido chamado para colaborar de modo peculiar na obra da redenção. Sem esta referência constante à Cruz não se compreende a sua santidade.

No plano de Deus, a Cruz constitui o verdadeiro instrumento de salvação para toda a humanidade e o caminho proposto explicitamente pelo Senhor a todos aqueles que desejam segui-l'O (cf. Mc 16, 24). O Santo Frade do Gargano compreendeu isto muito bem, e na festa da Assunção de 1914 escreveu: "Para alcançar a nossa única finalidade é preciso seguir o Chefe divino, o qual, unicamente pelo caminho que ele percorreu deseja conduzir a alma eleita; isto é, pelo caminho da abnegação e da Cruz" (Epistolário II, pág. 155).

3. "Eu sou o Senhor, que exerço a misericórdia" (Jer 9, 23).

Padre Pio foi um generoso dispensador da misericórdia divina, estando sempre disponível para todos através do acolhimento, da direção espiritual, e sobretudo da administração do sacramento da Penitência. O ministério do confessionário, que constitui uma das numerosas características que distinguem o seu apostolado, atraía numerosas multidões de fiéis ao Convento de San Giovanni Rotondo. Mesmo quando aquele singular confessor tratava os peregrinos com severidade aparente, eles, tomando consciência da gravidade do pecado e arrependendo-se sinceramente, voltavam quase sempre atrás para o abraço pacificador do perdão sacramental.

Oxalá o seu exemplo anime os sacerdotes a realizar com alegria e assiduidade este ministério, muito importante também hoje, como desejei recordar na Carta aos Sacerdotes por ocasião da passada Quinta-Feira Santa.

4. "Senhor, és tu o meu único bem".

Cantamos assim no Salmo Responsorial. Através destas palavras o novo Santo convida-nos a colcoar Deus acima de tudo, a considerá-lo como o nosso único e sumo bem.

De fato, a razão última da eficácia apostólica do Padre Pio, a raiz profunda de tanta fecundidade espiritual encontra-se na íntima e constante união com Deus de que eram testemunhas eloquente as longas horas passadas em oração. Gostava de repetir: "Sou um pobre frade que reza", convencido de que "a oração é a melhor arma que possuímos, uma chave que abre o coração de Deus". Esta característica fundamental da sua espiritualidade continua nos "Grupos de Oração" por ele fundados, que oferecem à Igreja e à sociedade o admirável contributo de uma oração incessante e confiante. O Padre Pio unia à oração também uma intensa atividade caritativa, da qual é uma extraordinária expressão a "Casa Alívio do Sofrimento". Oração e caridade, eis uma síntese muito concreta do ensinamento do Padre Pio, que hoje é proposto a todos.

5. "Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque... estas coisas... as revelaste aos pequeninos" (Mt 11, 25).

Como se mostram apropriadas estas palavras de Jesus, quando as pensamos referindo-as a ti, humilde e amado Padre Pio.

Nós pedimos-te que nos ensines também a nós a humildade do coração, para sermos conservados entre os pequeninos do Evangelho, aos quais o Pai prometeu revelar os mistérios do seu Reino.

Ajuda-nos a rezar sem nunca nos cansarmos, com a certeza de que Deus conhece aquilo de que precisamos, ainda antes que nós o peçamos.

Obtém-nos um olhar de fé capaz de reconhecer imediatamente nos pobres e nos que sofrem o próprio rosto de Jesus.

Ampara-nos no momento do combate e da prova e, se cairmos, faz com que conheçamos a alegria do sacramento do Perdão.

Transmite-nos a tua terna devoção a Maria, Mãe de Jesus e nossa mãe.

Acompanha-nos na peregrinação terrena rumo à Pátria bem-aventurada, onde também nós esperamos chegar para contemplar eternamente a Glória do Pai, do Filho e do EspíritoSanto.

Amém!

-- Homília do Papa São João Paulo II na Missa de Canonização do Santo Padre Pio celebrada em 16 de Junho de 2002.

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