15 de out. de 2020

O Sorriso de Maria

Ontem [NE: 14 de Setembro, dia da Santa Cruz] celebramos a Cruz de Cristo, instrumento da nossa salvação, que nos revela em plenitude a misericórdia do nosso Deus. A Cruz é realmente o lugar onde se manifesta perfeitamente a compaixão de Deus pelo nosso mundo. Hoje, ao celebrarmos a memória de Nossa Senhora das Dores, contemplamos Maria que partilha a compaixão do Filho pelos pecadores. Como afirmava São Bernardo, a Mãe de Cristo entrou na Paixão do Filho através da sua compaixão (cf. Homilia do Domingo na Oitava da Assunção). Ao pé da Cruz cumpre-se a profecia de Simeão: o seu coração de Mãe é trespassado (cf. Lc 2, 35) pelo suplício infligido ao Inocente, nascido da sua carne. Tal como Jesus chorou (cf. Jo 11, 35), também Maria terá certamente chorado diante do corpo torturado do Filho. Todavia, a sua discrição impede-nos de medir o abismo da sua dor; a profundidade desta aflição é apenas sugerida pelo tradicional símbolo das sete espadas. Como sucedeu com seu Filho Jesus, é possível afirmar que este sofrimento levou-A também a Ela à perfeição (cf. Heb 2, 10), de modo a torná-La capaz de acolher a nova missão espiritual que o Filho Lhe confia imediatamente antes de “entregar o espírito” (cf. Jo 19, 30): tornar-Se a Mãe de Cristo nos seus membros. Naquela hora, através da figura do discípulo amado, Jesus apresenta cada um dos seus discípulos à Mãe dizendo-Lhe: “Eis o teu filho” (cf. Jo 19, 26-27).

Maria vive hoje na alegria e glória da Ressurreição. As lágrimas derramadas ao pé da Cruz transformaram-se num sorriso que nada mais apagará, embora permaneça intacta a sua compaixão materna por nós. Atesta-o a intervenção da Virgem Maria em nosso socorro ao longo da história e não cessa de suscitar por Ela, no povo de Deus, uma confidência inabalável: a oração Memorare (“Lembrai-Vos”) exprime muito bem este sentimento. Maria ama cada um dos seus filhos, concentrando a sua atenção de modo particular naqueles que, como o Filho d’Ela na hora da Paixão, se acham mergulhados no sofrimento; ama-os, simplesmente porque são seus filhos, por vontade de Cristo na Cruz.

O Salmista, vislumbrando de longe este vínculo materno que une a Mãe de Cristo e o povo crente, profetiza a respeito da Virgem Maria: “Os grandes do povo procurarão o teu sorriso” (Sal 44, 13). E assim, solicitados pela Palavra inspirada da Escritura, sempre os cristãos procuraram o sorriso de Nossa Senhora, aquele sorriso que os artistas, na Idade Média, tão prodigiosamente souberam representar e engrandecer. Este sorriso de Maria é para todos: no entanto, dirige-se de modo especial para os que sofrem, a fim de que nele possam encontrar conforto e alívio. Procurar o sorriso de Maria não é uma questão de sentimentalismo devoto ou antiquado; antes, é a justa expressão da relação viva e profundamente humana que nos liga Àquela que Cristo nos deu por Mãe.

Desejar contemplar este sorriso da Virgem não é de forma alguma deixar-se dominar por uma imaginação descontrolada. A própria Escritura nos revela tal sorriso nos lábios de Maria, quando canta o Magnificat: “A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 46-47). Quando a Virgem Maria dá graças ao Senhor, toma-nos por suas testemunhas. Maria, como que por antecipação, partilha com os futuros filhos, que somos nós, a alegria que mora no seu coração, para que uma tal alegria se torne também nossa. E cada proclamação do Magnificat faz de nós testemunhas do seu sorriso. Aqui em Lourdes, durante a aparição de 3 de Março de 1858, Bernadete contemplou de maneira muito especial este sorriso de Maria. Foi esta a primeira resposta dada pela Bela Senhora à jovem vidente, que queria saber a sua identidade. Antes de apresentar-Se-lhe alguns dias mais tarde como “a Imaculada Conceição”, Maria fez-lhe conhecer antes de mais nada o seu sorriso, como se tal fosse a porta mais apropriada para a revelação do seu mistério.

No sorriso da mais eminente de todas as criaturas, que a nós se dirige, reflecte-se a nossa dignidade de filhos de Deus, uma dignidade que nunca se extingue em quem está doente. Aquele sorriso, verdadeiro reflexo da ternura de Deus, é a fonte duma esperança invencível. Acontece infelizmente – bem o sabemos – que o sofrimento prolongado quebre os equilíbrios melhor consolidados duma vida, abale as mais firmes certezas da confiança e chegue por vezes até a fazer desesperar do sentido e valor da vida. Há combates que o homem não pode sustentar sozinho, sem a ajuda da graça divina. Quando a palavra já não consegue encontrar expressões adequadas, subentra a necessidade duma presença carinhosa: procuramos então a solidariedade não só daqueles que compartilham o nosso próprio sangue ou estão ligados connosco por vínculos de amizade, mas também a solidariedade de quantos se acham intimamente unidos a nós pelo laço da fé. E quem de mais íntimo poderíamos nós ter além de Cristo e da sua santa Mãe, a Imaculada? Mais do que qualquer outrem, Eles são capazes de nos compreender e perceber a dureza do combate que travamos contra o mal e o sofrimento. A Carta aos Hebreus, referindo-se a Cristo, afirma que Ele não é alguém incapaz de “compadecer-Se das nossas fraquezas; pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo” (Heb 4, 15).

Queria, humildemente, dizer àqueles que sofrem e a quantos lutam e se sentem tentados a virar as costas à vida: Voltai-vos para Maria! No sorriso da Virgem, encontra-se misteriosamente escondida a força para continuar o combate contra a doença e a favor da vida. Junto d’Ela, encontra-se igualmente a graça para aceitar, sem medo nem mágoa, a despedida deste mundo na hora querida por Deus. 

O sorriso de Maria é uma fonte de água viva. “Do seio daquele que acredite em Mim – disse Jesus –, correrão rios de água viva” (Jo 7, 38). Maria é Aquela que acreditou e, do seu seio, correram rios de água viva, que vêm regar a história dos homens. A fonte indicada por Maria a Bernadete, aqui em Lourdes, é o sinal humilde desta realidade espiritual. Do seu coração de crente e de mãe corre uma água viva que purifica e cura. Inúmeros são aqueles que, mergulhando nas piscinas de Lourdes, descobriram e experimentaram a doce maternidade da Virgem Maria, agarrando-se a Ela para melhor se prenderem ao Senhor! Na sequência litúrgica desta festa de Nossa Senhora das Dores, Maria é honrada sob o título de “Fons amoris”, “Fonte de amor”. Realmente, do coração de Maria, brota um amor gratuito que suscita uma resposta filial, chamada a aperfeiçoar-se sem cessar. Como toda a mãe, e melhor do que qualquer outra mãe, Maria é a educadora do amor. É por isso que tantos doentes vêm aqui, a Lourdes, para dessedentar-se nesta “Fonte de amor” e deixar-se conduzir até à única fonte da salvação, o seu Filho, Jesus Salvador.  

Ao concluir, desejo unir-me à oração dos peregrinos e dos doentes e retomar juntamente convosco um pedaço da oração a Maria feita para a celebração deste Jubileu:

Porque Vós sois o sorriso de Deus, o reflexo da luz de Cristo, a habitação do Espírito Santo,

porque Vós escolhestes Bernadete na sua miséria, Vós que sois a estrela da manhã, a porta do céu e a primeira criatura ressuscitada,

Nossa Senhora de Lourdes”, com os nossos irmãos e as nossas irmãs cujos corações e corpos estão a sofrer, nós Vos rezamos!

-- Papa Bento XVI, homília na Festa de Nossa Senhora das Dores, 15 de Setembro de 2008

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