O objeto desta catequese mistagógica é a parte central da Missa, a Oração Eucarística, a parte que inclui a consagração do corpo e sangue de Cristo. Farei dois tipos de observações, uma litúrgica e ritual, outra teológica e existencial.
Do ponto de vista ritual e litúrgico, temos hoje uma fonte que os Padres da Igreja e os doutores medievais não tiveram. A nova fonte é a reaproximação entre cristãos e judeus. Nos primeiros dias da igreja vários fatores históricos acentuaram as diferenças entre Cristianismo e Judaísmo, ao ponto de contrastar um com outro, como fez Santo Inácio de Antioquia. Distinguir-se dos judeus em vários pontos, como a data da Páscoa, dias de jejuns e muitas outras coisas, se tornou um tipo de “moda”. A acusação contra muitos adversários e heréticos naqueles tempos era chamá-los de “judaizantes”.
A tragédia do povo judaico, o Holocausto, e um novo clima de diálogo com o Judaísmo iniciado no Concílio Vaticano II, tornou possível uma melhor compreensão da matriz judaica na Eucaristia. Assim como a Páscoa Cristã não pode ser plenamente compreendida se não for considerada como o cumprimento das profecias da Páscoa Judaica, a Eucaristia também não pode ser compreendida se não for como o cumprimento de tudo o que os judeus fazem e dizem durante a refeição ritual. Um primeiro resultado importante desta mudança é que, hoje em diante, nenhum estudioso sério pode explicar a Eucaristia Cristã como sendo baseada em algum culto misterioso do Helenismo, como foi tentado por algum tempo.
Os Padres da Igreja mantiveram as Escrituras do povo judeu, mas não sua liturgia, já que não mais tinham acesso à ela após a separação entre a Igreja e a Sinagoga. Eles, então, utilizaram as figuras contidas nas Escrituras, o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná, mas perderam o contexto litúrgico na qual o povo judaico celebrava estes fatos, em especial, na Páscoa (o Seder) e nas celebrações semanais nas sinagogas. O primeiro nome que designa a Eucaristia no Novo Testamento, como escrito por Paulo, é “refeição do Senhor” (1 Cor 11,20), o que é uma evidente referência à ceia judaica, que agora é diferente pela fé em Jesus. A Eucaristia é um sacramento de continuidade, não de oposição, entre o Velho e Novo Testamento, entre o Judaísmo e o Cristianismo.
A Eucaristia e a Berakah Judaica
Por várias razões culturais e históricas, a partir dos tempos medievais, a teologia tem tentado explicar a Eucaristia com base na filosofia, em particular, utilizando as noções aristotélicas de substância e acidente. Isto também era uma maneira de colocar os novos conhecimentos da época a serviço da fé e imitar a mesma metodologia dos Padres da Igreja. Hoje em dia, temos que fazer o mesmo com nosso conhecimento, no nosso caso, com o conhecimento histórico e litúrgico, mais que princípios filosóficos. No contexto de alguns estudos já iniciados por Louis Bouyer, eu gostaria de mostrar como esta luz tem iluminado nossa compreensão da Eucaristia Cristã quando consideramos como os Evangelhos narram a instituição da Eucaristia e o que sabemos sobre rituais judeus. Desta maneira, as inovações de Jesus não são diminuídas, mas ressaltadas.
A ligação entre o velho e o novo rito é dada pela Didaqué, um texto da era apostólica, onde encontramos o primeiro rascunho da anáfora eucarística. O rito da sinagoga era composto de uma série de preces, a Berakah, que, em grego, pode ser traduzido como Eucaristia. No início da refeição, cada um toma o cálice em suas mãos e repete, quase a mesma frase utilizada no ofertório: “Bendito és tu Senhor, nosso Deus, Rei eterno, que nos deu o fruto da vinha”.
-- Padre Raniero Cantalamessa, Primeira Homília de Quaresma, 18 de Março de 2022
* esta é a terceira parte de uma série de catequeses dadas pelo Padre Raniero na Quaresma de 2022. Nos próximos dias publicarei a sequência.
* tradução própria
* a imagem é o quadro A Ültima Ceia, pintado por Simon Benning, cc 1525. Está exposto no J. Paul Getty Museum, Los Angeles.
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