24 de out. de 2024

São Ronan, o eremita


Ronan nasceu na Irlanda, no século VI, foi bem educado, tornou-se padre e suas atividades como bispo o tornaram famoso no país. Porém desejava ter uma comunhão mais estreita com Deus e, por isso, no apogeu de sua carreira, decidiu por um exílio voluntário, cortando todos laços com sua família, amigos e governo, e embarcou numa viagem para o norte da França. 

Ele desembarcou na região de Lion, dali prosseguiu até os bosques próximos de Névez, na região da Cornualha, onde se instalou numa ermida, que acabou ficando conhecida como Locronan (lugar de Ronan). Ali se dedicou à oração e uma vida na simplicidade, mas logo ficou conhecido por sua santidade, começou a atrair vários admiradores que o procuravam por sua sabedoria. 

Também acabou atraindo invejosos. Uma mulher chamada Keban, esposa de um campesino que admirava e ajudava muito o santo, acusou-o de ser um bruxo que podia transformar-se em um lobo selvagem que havia devorado inúmeras ovelhas e sua filha única. Então Ronan foi preso para ser investigado. O rei atiçou cachorros ferosos contra o santo, que os acalmou e domesticou. Perguntado sobre a filha de Keban, o santo revelou que a mãe havia encerrado a menina em um lugar muito pequeno, onde a deixou presa até morrer. Depois o santo mostrou onde estava o corpo da menina. Neste ponto, o povo resolver matar a mãe que havia assassinado a propria filha para acusar falsamente o santo. No entanto Ronan disse que ela deveria ser perdoada, não punida, e que a menina estava viva. De fato, por sua intercessão, a menina foi ressuscitada. 

Após algum anos, partiu para a cidade Hillion, onde faleceu rezando em sua cela. Daí surgiu uma disputa sobre onde o santo deveria ser enterrado, como não havia acordo, decidiram colocar o corpo do santo em uma carroça puxada por bois, mas ninguém conseguia levanter o corpo do santo, que pesava como se fosse uma pedra. Apenas o rei da Cornualha, que tinha um ferimento mal curado no braço, pode levanter o corpo do santo. Após colocá-lo sobre a carroça, seu braço foi curado milagrosamente. Os bois seguiram diretamente para o bosque de Névez, onde Ronan viveu como eremita.

São Ronan é celebrado em 1 de Junho. 

Tumba de São Ronan, na igreja de Locronan. 


-- autoria própria

26 de ago. de 2024

Nossa Senhora de La Vang


Temendo a propagação do catolicismo, o imperador Cảnh Thịnh restringiu a prática do catolicismo no país em 1798. Logo depois disso, o imperador emitiu uma lei anticatólica e iniciou-se a perseguição.

Vários católicos procuraram refúgio na floresta de La Vang, na província de Quảng Trị, no Vietnã, e devido as dificuldades, muitos ficaram doentes. Enquanto se escondiam na selva, a comunidade reunia-se todas as noites ao pé de uma árvore para rezar o terço. Uma noite, uma aparição os surpreendeu. Nos galhos da árvore apareceu uma senhora, usando o tradicional vestido vietnamita e segurando uma criança nos braços, com dois anjos ao seu lado. As pessoas presentes interpretaram a visão como a Virgem Maria e o menino Jesus Cristo. Eles disseram que Nossa Senhora os confortou e disse-lhes para ferverem as folhas das árvores como remédio para curar a doença. A lenda afirma que o termo "La Vang" era um derivado da palavra vietnamita que significa "gritar". 

Em 1802 os católicos regressaram às suas aldeias, transmitindo a história da aparição em La Vang e a sua mensagem. À medida que a história da aparição se espalhava, muitos vieram rezar neste local e oferecer incenso. Em 1820 foi construída uma capela.

De 1830 a 1885, outra onda de perseguições dizimou a população católica, durante o auge da qual foi destruída a capela em homenagem a Nossa Senhora de La Vang. Em 1886, iniciou-se a construção de uma nova capela. Após a sua conclusão, Dom Gaspar (Loc) consagrou a capela em honra de Nossa Senhora Auxiliadora, em 1901.

Em 8 de dezembro de 1954, a estátua de Nossa Senhora de La Vang foi recolocada uma imagem da virgem de La Vang na capela. A Conferência Episcopal Vietnamita escolheu a igreja de Nossa Senhora de La Vang como o Santuário Nacional em homenagem à Imaculada Conceição. La Vang se tornou o Centro Mariano Nacional do Vietnã em 13 de abril de 1961. O Papa João XXIII elevou a Igreja de Nossa Senhora de La Vang à categoria de basílica menor em 22 de agosto de 1961. Ela foi destruída novamente durante a Guerra do Vietnã em 1972 e o governo comunista não permitiu a sua reconstruçao.

Embora não haja reconhecimento oficial do Vaticano deste evento como uma aparição mariana, em 19 de junho de 1998, o Papa João Paulo II reconheceu publicamente a importância de Nossa Senhora de La Vang e expressou o desejo de reconstruir a Basílica de La Vang em comemoração ao 200º aniversário da primeira visão. A partir de 2012, uma nova igreja começou a ser construída, na mesma área da igreja destruída durante a guerra. 

Para mais fotos, acesse o post de Suzanne Nuyen, o texto é em inglês mas há muitas fotos, uma delas é a que ilustra este post.  

Um vídeo, também em inglês, mostra o santuario e construções próximas. 

Nossa Senhora de La Vang é celebrada em 27 de Agosto.

27 de mai. de 2024

Santa Dinfna, padroeira dos doentes mentais, mártir

Santa Dinfna nasceu na Irlanda, século sexto ou sétimo, era filha de um rei local, que era pagão, e sua rainha, que era cristã. A rainha morreu quando Dinfna era ainda criança, mas providenciou que a filha fosse batizada e fosse orientada por um padre. 

O Martírio de Santa Dimfna e São Gerebernus, pintura atribuída a Jacques de l'Ange

O rei decidiu procurar uma segunda espoda, que lhe desse um filho para seru sucessor, e enviou mensageiros por todo reino com ordens de encontrar uma moça virgem que fosse tão bonita quando a mãe de Dinfna, a qual ele amara muitíssimo, porém, os mensageiros não encontraram nenhuma moça que lhe agradasse. Com os passar dos anos, Dinfna tornou-se uma moça muito bonita e o rei decidiu que iria com a própria filha, mas ela já havia decidido que iria preservar a sua virgindade e dedicar-se à caridade.

Ao saber das intenções de seu pai, Dinfna fugiu com o seu confessor, Padre Gerebernus e auxiliares para o continente europeu. Instalou-se na cidade de Geel, próximo a uma capela dedicada a São Martinho de Tours, e lá passava o dia em oração. Após certo tempo decidiu construir um hospital para os doentes, usando a fortuna que havia trazido consigo.

Ao saber que suas moedas estavam sendo negociadas na Bélgica,  o rei logo entendeu que sua filha estava lá, organizou uma expedição, e foi buscá-la para forçar o casamento. Chegando em Geel, primeiro o rei mandou decapitar o Padre Gerebernus e outros servos que haviam ajudado na fuga. Dinfna suplicou pela vida deles, mas em vão. Enfim, ela era a única que restava viva, mas resistiu e declarou que jamais se casaria, que sua virgindade pertencia a Deus, e preferia morrer a cometer o pecado de incesto. O pai enfurecido tomou da sua própria espada e decapitou a filha que tinha apenas 15 anos.

Após o rei tomar rumo de volta à Irlanda, os habitantes de Geel enterraram os corpos de Dinfna e Padre Gerebernus em uma caverna próxima a cidade. Aos poucos surgiram relatos de milagres de cura de doentes mentais que perdido o rumo e, de alguma forma, haviam passado pela caverna. Desta maneira, a cidade começou a ser conhecida como um local de peregrinação para os doentes mentais, algo que persiste até os dias atuais.  Em 1349 uma igreja foi construída em honra à Dinfna, como muitos peregrinos vinham em busca de cura, a igreja foi expandida em 1480. A igreja original incendiou e uma nova foi construída em 1538, que existe até hoje.

Em 2004, o Martirológico Romano foi revisado e a festa de Santa Dinfna e São Gerebernus foi definida como 30 de Maio, segundo a tradição, dia do seu martírio. Santa Dinfna é padroeira das pessoas que sofrem transtornos mentais e neurológicos, bem como dos profissionais que tratam estes pacientes. 

Oração

Deus eterno e todo-poderoso, que escolheirs as criaturas mais frágeis para confundir os poderosos, dai-nos, ao celebrar o martírio de Santa Dinfna, a graça de imitar sua constância na fé. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém!


30 de dez. de 2023

Esperança

Todo início de ano temos eperança de que o próximo seja melhor, que tenhamos mais saúde, alegria, tranquilidade e amor. Tudo isto é bom e não é errado desejar um vida melhor, afinal ninguém precisa ser um filósofo estóico para alcançar os céus e se alguém não tiver mais esperanças e desejos na vida, o que resta é apenas desespero e a morte. Mas enquanto todos tem esperança, há alguams diferenças importantes quando consideramos a esperança baseada na fé.

O Catecismo da Igreja Católica (CIC 1817) define esperança assim:

A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo. "Conservemos firmemente a esperança que professamos, pois Aquele que fez a promessa é fiel" (Heb 10, 23). "O Espírito Santo, que Ele derramou abundantemente sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, para que, justificados pela sua graça, nos tornássemos, em esperança, herdeiros da vida eterna" (Tt 3, 6-7).

Em primeiro lugar, a esperança é um dom de Deus, que Ele prometeu para nosso benefício. A esperança nos dá a possibilidade de enfrentarmos qualquer situação sabendo que por mais difícil que pareça, Deus pode agir e transformá-la em algo diferente do que pensamos. Os desafios da vida podem parecer impossíveis, todos nós já enfrentamos situações assim, mas Deus tem o poder de recriar a vida a partir de uma situação de morte. Cristo fez exatamente isto quando desceu à mansão dos mortos e ressuscitou no terceiro dia, subiu aos céus, onde está sentado à direita de Deus. Professamos esta fé em cada Missa, e quando temos uma situação como uma doença, desemprego, crise na família, podemos confiar que Deus pode renovar nossa vida, refazer a nossa história e conduzir a vida melhor. 

Em segundo lugar, devemos ter nossos olhos não apenas na vida terrestre, mas sabermos que o Reino dos Céus e a vida eterna devem ser o centro da nossa esperança e da nossa vida. Com o auxílio do Espírito Santo, do qual a esperança é um dos dons, podemos ter a certeza que, arrependidos de nossos pecados, levando uma vida santificada, também ascenderemos aos céus e nos encontraremos junto de Deus. A vida não termina com a nossa morte, a vida é eterna.

Em terceiro lugar, devemos confiar em Deus, não nas nossas forças. Como seres humanos somos imperfeitos e nossa compreensão é incompleta, mas Deus é perfeito e onisciente. Nele podemos confiar plenamente, pois Ele sabe, melhor que nós, onde estará nossa felicidade. Nossos erros do passado podem ser apagados, nosso futuro reconstruído por Deus. Não há dificuldade que Deus não possa nos ajudar a superar, não há problema que Deus não possa resolver. Nosso papel é rezar e confiar em Deus, para que a vontade Dele se faça na nossa vida, não que Ele faça o que queremos, mas que Ele nos ajude a estarmos preparados para aceitar o que Ele coloca na nossa vida. 

Deixo aqui algumas passagens bíblicas que podemos ler e explorar, que falam desta esperança em Deus, que a fé o Espírito Santo nos trazem. Que todos tenhamos um Feliz Ano Novo!


  • Coragem! E sede fortes. Nada vos atemorize, e não os temais, porque é o Senhor, vosso Deus, que marcha à vossa frente: ele não vos deixará nem vos abandonará” (Dt 31, 6)
  • Vós sois meu abrigo e meu escudo; vossa palavra é minha esperança. (Sl 119, 114)
  • Em recompensa, o meu Deus há de prover magnificamente a todas as vossas necessidades, segundo a sua glória, em Jesus Cristo. (Fp 4, 19)
  • O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem temerei? O Senhor é o protetor de minha vida, de quem terei medo? Quando os malvados me atacam para me devorar vivo, são eles, meus adversários e inimigos, que resvalam e caem. Se todo um exército se acampar contra mim, não temerá meu coração. Se se travar contra mim uma batalha, mesmo assim terei confiança. Uma só coisa peço ao Senhor e a peço incessantemente: é habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida, para admirar aí a beleza do Senhor e contemplar o seu santuário. Assim, no dia mau ele me esconderá na sua tenda, irá ocultar-me no recôndito de seu tabernáculo, sobre um rochedo me erguerá. (Sl 26, 1-5).
  • Paulo, servo de Deus, apóstolo de Jesus Cristo para levar aos eleitos de Deus a fé e o profundo conhecimento da verdade que conduz à piedade, na esperan­ça da vida eterna prometida em tempos longínquos por Deus verdadeiro e fiel. (Tt 1, 1-2)
  • Manifestou-se, com efeito, a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens. Veio para nos ensinar a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver neste mundo com toda sobriedade, justiça e piedade, na expectativa da nossa esperança feliz, a aparição gloriosa de nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo, que se entregou por nós, a fim de nos resgatar de toda a iniqui­dade, nos purificar e nos constituir seu povo de predileção, zeloso na prática do bem. (Tt 2, 11-14)
  • Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Na sua grande misericórdia ele nos fez renascer pela Ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma viva esperança, para uma herança incorruptível, incontaminável e imarcescível, reservada para vós nos céus; para vós que sois guardados pelo poder de Deus, por causa da vossa fé, para a salvação que está pronta para se manifestar nos últimos tempos. (1Pe 1, 3-5)
  • A confiança que depositamos nele é esta: em tudo quanto lhe pedirmos, se for conforme à sua vontade, ele nos atenderá. E se sabemos que ele nos atende em tudo quanto lhe pedirmos, sabemos daí que já recebemos o que pedimos. (1Jo 5, 14-15)
  • Se é só para esta vida que temos colocado a nossa espe­rança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima. Mas não! Cristo ressuscitou dentre os mortos, como primícias dos que morreram! Com efeito, se por um homem veio a morte, por um homem vem a ressurreição dos mortos. Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão. Cada qual, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; em seguida, os que forem de Cristo, na ocasião de sua vinda. (1Co 15, 19-23)
  • O Deus da esperança vos en­cha de toda a alegria e de toda a paz na vossa fé, para que pela virtude do Espírito Santo transbordeis de esperança! (Rm 15, 13)
  • Cristo em vós, esperança da glória! (Cl 1, 27b)
  • Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e achar a graça de um auxílio oportuno. (Hb 4, 16)

-- autoria própria

22 de dez. de 2023

Sobre a benção de casais - Fiducia supplicans

Em 18 de Dezembro de 2023 Dicastério para a Doutrina da Fé publicou um document chamado Fiducia supplicans, que está disponível no site do Vaticano. Não há versão em português, então vou traduzir alguns trechos da versão em espanhol

9. Desde o ponto de visto estritamente litúrgico, uma benção requer que auqele que a recebe esteja em conformidade com a vontade de Deus manifestada nos ensinamentos da Igreja

10. As bençãos se celebram, de fato, em virtude da fé e objetivam o louvor a Deus e o proveito espiritual do povo. [...] Por isso, se convida a aqueles que pedem a benção de Deus através da Igreja a intensificar suas disposições internas na fé de que não há nada impossível e confiar na caridade que premia os que guardam os mandamentos de Deus.

11. Baseando-se nestas considerações, [...] a Congregação para Doutrina da Fé recorda que quando, com um rito litúrgico adequado, se invoca uma benção sobre alguma relação humana, aquilo que se bendiz deve corresponder as desígnios de Deus inscritos na Criação e plenamente revelados por Cristo, Nosso Senhor. Por isso, dado que a Igreja sempre considerou moralmente lícitas apenas as relações sexuais que se vivem dentro do matrimônio, não tem poder de conferir sua benção litúrgica quando está, de alguma maneira, pode oferecer uma forma legítimidade moral a uma união que se presume ser um matrimônio ou uma prática sexual extramatrimonial. 

31. Assim, no horizonte delineado neste documento, se coloca uma possibilidade de bençãos de casais em situações irregulares e casais do mesmo sexo, cuja forma não deve encontrar nenhuma forma fixa por parte das autoridades eclesiásticas, para não produzir confusão com a benção própria do sacramento do matrimônio. [...] As bençãos devem expressar uma súplica a Deus para que se conceda aquelas ajudas que provêm do Espírito Santo [...] para que as relações humanas possam amadurecer e crescer em fidelidade na mensagem do Evangelho [...].

32. A graça de Deus, de fato, atua na vida daqueles que não se consideram justos, mas que se reconhecem humildemente pecadores como todos. [...] Por isso, com incansável sabedoria e maternidade, a Igreja acolhe a todos que se aproximam de Deus com coração humilde, aompanhando-os com auxílios espirituais que permitam a todos compreender e realizar plenamente a vontade de Deus em sua existência. 

Comentário:

Agora é meu comentário particular, não partes de documentos da Igreja:: 

  • seria importante ter uma tradução oficial e completa do documento em português, espero que a CNBB esteja trabalhando neste sentido;
  • não podemos esquecer que todos somos pecadores e recebemos bençãos da Igreja para mudarmos nossas atitudes;
  • o documento começa reafirmando os ensinamentos da Igreja sobre a ilegitimidade de casamentos em segunda união e parcerias homossexuais, ou seja, a doutrina não mudou;
  • não haver uma fórmula para  a benção nestas situações permite aos padres adaptar a benção a cada caso particular mas, ao mesmo tempo, deixa a todos, padres, comunidades e Igreja, abertos a situações contrárias aos ensinamentos da Igreja;
  • considerando a alta probabilidade de confusões e mal-entendidos, não é de se estranhar que bispos tenham orientado os padres a não abençoar casais em situação irregular, prudência é uma virtude;
  • a benção deve ressaltar a importância de modificar o comportamento individual, saindo da atual situação de pecado;
  • como sempre, a imprensa não leu o documento completo, ou se leu, destacou apenas o que interessa a sua agenda.






1 de out. de 2022

É difícil ser cristão?

 

Está escrito: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28) cujo significado é explicado por São Hilário: “O Senhor chama para si todos aqueles que estão com dificuldades para cumprir a Lei e estão sobrecarregados pelos pecados do mundo”. E Logo a seguir, Jesus diz “meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11,30), portanto a Nova Lei é mais leve que a Velha Lei.

Há duas dificuldades que podem afetar as obras da virtude que são o objetivo da Lei. Uma é relativa às obras externas, que podem ser cansativas e percebidas como um peso por que a Velha Lei é muito abrangente, cheia de detalhes e pequenas cerimônias realizadas ao longo de todo dia, enquanto a Nova Lei aboliu muito daquelas práticas.

Outra dificuldade é relativa aos atos interiores, por exemplo, que as obras de caridade devem ser feitas com presteza e alegria. Esta dificuldade é resolvida pelo amor, por que um ato que é difícil realizar, torna-se fácil pelo amor. Até os filósofos afirmam que é fácil cumprir a Lei, mas fazê-lo alegremente, sem murmurar, é difícil se a pessoa não for justa. De acordo, lemos em (1Jo 5,3) “Eis o amor de Deus: que guardemos seus mandamentos. E seus mandamentos não são penosos”. Santo Agostinho completa: "os mandamentos não são pesados para o homem que ama, mas são um peso para os que não amam”.

Logo, as tribulações sofridas por aqueles que observam a Nova Lei são facilmente resolvidas se considerarmos o Amor que anima estes mesmos mandamentos, como explica Santo Agostinho: “o amor faz tudo mais leve e facilita tudo que parece difícil e além da nossa capacidade”.

-- São Tomás de Aquino

15 de set. de 2022

A Comunhão com a Santíssima Trindade

Refletir sobre a Eucaristia é como ver horizontes se abrindo na nossa frente, nossa visão alcançamos ainda mais longe do que podíamos ver antes. De fato, o horizonte cristológico da comunhão que contemplamos até agora pode ser expandido se considerarmos a Santíssima Trindade. Através da comunhão com Cristo entramos em comunhão com a Trindade. Eu sua oração sacerdotal, Jesus diz ao Pai: “para que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim” (Jo 17, 22-23). Estas palavras, “eu neles e tu em mim” indicam que Jesus está em nós e que o Pai é Jesus. Logo, não é possível receber a comunhão sem receber ao Pai também. As palavras de Cristo: “Aquele que me vê, vê ao Pai” (Jo 14,9) também significa “aquele que me recebe, recebe ao Pai”.

Isto é verdadeiro se considerarmos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma só e inseparável natureza divina. Sobre isto escreveu Santo Hilário de Poitiers: “Estamos unidos a Cristo que é inseparável do Pai, mesmo permanecendo junto ao Pai, Cristo permanece unido a nós, logo nós também estamos em unidade com o Pai. De fato, Cristo tem a mesma natureza do Pai, de certo modo nós, também, através de Cristo, também temos a mesma natureza do Pai”.

Durante a Eucaristia o que ocorreu durante a vida terrena de Cristo é sacramentalmente replicado. No momento do nascimento, é o Espírito Santo que traz Cristo ao mundo (pois Maria concebeu através da ação do Espírito Santo), no momento da morte foi Cristo que deu ao mundo o Espírito Santo (ao enviá-lo no dia de Pentecostes). Da mesma maneira, no momento da consagração é o Espírito Santo que age e transforma o pão em Corpo de Cristo e, no momento da comunhão, é Cristo que nos dá o Espírito Santo.

Santo Irineu, doutor da Igreja, diz que o Espírito Santo é nossa comunhão com Cristo. Na comunhão Jesus vem até nós, nos concedendo o Espírito. Não como aquele que há muito tempo enviou o Espírito Santo, mas como um que naquele momento, a cada dia, está nos concedendo o Espírito, ao repetir seu sacrifício no altar, Ele novamente “emite seu Espírito” (cf. Jo 19,30). Tudo isso que expliquei é visualizado no ícone da Santíssima Trindade, que mostra os três anjos ao redor do altar. A Santíssima Trindade nos dá a Eucaristia e através dela recebemos a Santíssima Trindade. A Eucaristia não é apenas nossa Páscoa diária, é também nosso Pentecostes diário!

 -- Frei Raniero Cantalemessa, terceira catequese no Tempo de Quaresma, 25 de Março de 2022. 

20 de ago. de 2022

A Comunhão é a união mística entre Cristo e a Igreja



Na nossa catequese mistagógica sobre a Eucaristia, após a Liturgia da Palavra e a Consagração, alcançamos o terceiro momento, a comunhão.

Este é o momento da Missa que mais claramente expressa a unidade e igualdade de todos batizados, acima de qualquer distinção de ministério ou posição na Igreja. Até este momento a distinção de ministério está presente, na Liturgia da Palavra há uma diferença entre o que ensina e os ouvintes, na consagração há o padre consagrando e o povo participando, mas na Comunhão não há nenhuma diferença. A comunhão recebida por um simples batizado é a mesma recebida pelo padre ou bispo. A comunhão Eucarística é uma proclamação sacramental de que a koinonia* está em primeiro lugar na Igreja e é mais importante que a hierarquia.

Vamos refletir sobre a Comunhão Eucarística a partir de um texto de São Paulo (1Cor 10:16-17):

O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão.

A palavra “corpo” ocorre duas vezes, mas com significados diferentes. Na primeira vez, “o corpo de Cristo”, indica o corpo real de Cristo, nascido de Maria, morto e ressuscitado; na segunda vez, “formamos um só corpo”, indica o corpo místico da Igreja. Não é possível falar de forma mais clara e direta que a Eucaristia é sempre uma comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs, que há uma dimensão vertical e outra horizontal. Vamos falar, agora, da primeira:

Comunhão com Cristo

Que tipo de comunhão é criada entre nós e Cristo na Eucaristia? Em João 6,57  Jesus diz: “Assim como o Pai que me enviou vive, e eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha carne viverá por mim.” A preposição “por” indica uma causa e um objetivo. Significa que aquele que recebe o corpo de Cristo vive dEle, isto é, por causa dEle, pela graça da vida que recebe dEle; também significa que vive para servir à sua glória e reino. Assim como Cristo vive em união com o Pai, pelo mistério da sagrada Eucaristia, seu corpo e sangue, vivemos por Jesus e para Jesus.

De fato, é um princípio fundamental da vida que os mais fortes se alimentam dos mais fracos, por exemplo uma planta assimila os minerais do solo, enquanto os animais se alimentam de vegetais, não ao contrário. Em todos os casos da natureza, aquele que come assimila os nutrientes dos mais fracos. No nível espiritual, também é o divino que assimila o humano, não ao contrário, mas, ao contrário da natureza, na Comunhão aquele que é comido que incorpora que o recebe. Para aqueles que se aproximam para recebê-lo, Jesus repete o que disse para São Agostinho: “Não és tu que me receberás, mas Eu que te receberei”.

Um filósofo ateísta diz: “O homem é aquilo que ele come” (F. Feuerbach), indicando que no homem não há qualquer diferença qualitativa entre matéria e espírito, que tudo se resume a compostos orgânicos e matéria. Um ateísta, mesmo sem saber, dá uma excelente formulação do mistério cristão: Graças a Eucaristia, o cristão é realmente aquilo que come! São Leão Magno escreveu a muitos séculos: “Nossa participação no corpo e sangue de Cristo nos transforma naquilo que recebemos”.

Na Eucaristia, portanto, não há somente uma comunhão entre Cristo e nós, mas também assimilação; comunhão não é apenas a união de dois corpos, duas mentes, duas vontades, também é o recebimento de um corpo, de uma mente e da vontade de Cristo: “quem se une ao Senhor torna-se com ele um só espírito.” (1 Cor 6,17).

Mas a nutrição, o comer e beber, não é a única analogia que podemos fazer sobre a Eucaristia, mesmo que seja indispensável. Há algo que ela não pode expressar pois é uma comunhão entre objetos materiais, não entre pessoas. Gostaria de insistir em outra analogia que pode nos ajudar a compreender a natureza da comunhão Eucarísitica como uma comunhão entre pessoas que procuram esta comunhão.

A Carta aos Efésios diz que o casamento é um símbolo da união entre Cristo e a Igreja: “Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne (Gn 2,24). Esse mistério é grande, quero dizer, com referên­cia a Cristo e à Igreja. Em resumo, o que importa é que cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido.” (Ef 5, 31-33). A Eucaristia, para usar uma imagem forte mas verdadeira, é a consumação do casamento entre Cristo e a Igreja. Uma vida cristã sem Eucaristia é como um casamento que não é consumado. No momento da Comunhão, o celebrante diz: “Benditos são aqueles chamados para Ceia do Senhor”,  no livro do Apocalipse, do qual esta expressão foi retirada, diz ainda mais explicitamente: “Ele me diz, então: ‘Escreve: Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro’. Disse-me ainda: ‘Estas são palavras autênticas de Deus.’“ (Ap 19, 9).

Como explica São Paulo, a consequência imediata do casamento é que o corpo, isto é, toda pessoa, do marido pertence à esposa e, vive versa, a esposa pertence ao marido (cf. 1Cor 7,4). Isto significa que a Palavra encarnada, incorruptível, que dá a vida, passa a ser “minha”, mas também que minha carne, minha humanidade, se transforma em Cristo. Na Eucaristia recebemos o corpo e sangue de Cristo, mas Cristo também recebe nosso corpo e sangue! Jesus, conforme escreveu Santo Hilário: “Quando Ele diz ‘Tomai e comei, este é o meu corpo’, nós o recebemos, mas também podemos dizer ‘tome, este é o meu corpo’”.

Tentemos agora entender as consequências de tudo isto. Na sua vida humana, Jesus não teve todas experiências humanas possíveis. Para começar, ele era homem, não mulher, ele não experimentou algumas coisas que metade da humanidade experimenta; ele não foi casado, então não teve a experiência de estar unido à outra pessoa, ter filhos, ou pior, perder um filho; ele morreu jovem, não experimentou a velhice, etc…

Mas agora, através da Eucaristia, Ele tem toda esta experiência. Ele vive a condição de uma mulher, de um doente, de um velho, um pobre imigrante, de uma pessoa sendo bombardeada, etc..

Não há nada em nossa vida que não seja familiar à Cristo. Ninguém deve dizer: “Jesus não sabe o que é ser casado, perder um filho, estar doente, velho ou ser negro!” O que Cristo não viveu enquanto estava neste mundo, Ele vive e experimenta através do Espírito, graças à comunhão espiritual da Sagrada Missa. Santa Isabel da Trindade compreendeu profundamente este mistério e escreveu para sua mãe: “A noiva pertence ao seu noivo. Meu noivo me recebeu, Ele me quer para acrescentar humanidade à Ele”.

Que coisa maravilhosa, que consolação é pensar que nossa humanidade passa a fazer parte da humanidade de Cristo! Mas também que responsabilidade! Se meus olhos se transforma nos olhos de Cristo, minha boca na de Cristo, esta é uma excelente razão para não deixar meus olhos se perderem em imagens lascivas, minha língua não falar contra o próximo, meu corpo não se transformar em instrumento de pecado. “Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo algum!” (1 Cor 6,15).

E ainda, isto não é tudo, a parte mais bela ainda está faltando. O corpo da esposa pertence ao noivo, mas também o corpo do noivo pertence à esposa. Na comunhão, aquele que está dando também está recebendo, recebendo nada mesmo que a santidade de Cristo! Onde este maravilhoso comércio que a liturgia nos fala ocorreria na vida dos fiéis se não fosse no momento da comunhão?

Ali temos a oportunidade de dar para Jesus nossas sujeiras, nossos pecados, e receber o manto da justiça (cf. Is 61,10). De fato, está escrito que “É por sua graça que estais em Jesus Cristo, que, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção” (1 Cor 1,30). Aquilo que se tornou para nós estava destinado para nós, é algo que nos pertence. “Ou não sabeis que o vosso corpo ..., já não vos pertenceis? Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.” (1 Cor 6,19-20). No sentido contrário, também aquilo que pertence a Deus pertence a nós, mas temos que lembrar que pertencemos a Cristo por direito, mas Ele pertence a nós por graça!

Esta é uma descoberta capaz de dar asas a nossas vidas espirituais. Este é um grande passo de fé e devemos rezar a Deus para não morrermos sem fazer esta caminhada.

-- Padre Raniero Cantalamessa, terceira catequese no Tempo de Quaresma, 25 de Março de 2022.

*koinonia é o compartilhamento, a comunhão dos bens espirituais da Igreja; também pode ser estendida aos bens materiais, o que é comum nas ordens religiosas.



11 de jul. de 2022

A vida humana é sagrada

 

* O Papa João Paulo II celebrou uma missa em Washington, capital dos EUA, em 07 de Outubro de 1979. Esta foi a homíla daquela missa. 

O domingo de hoje assinala o princípio do anual "Programa para o respeito da vida", graças ao qual a Igreja dos Estados Unidos pretende insistir na própria convicção da inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases. Renovemos, pois, todos juntos, o nosso respeito pelo valor da vida humana, lembrando-nos que, mediante Cristo, toda a vida humana foi remida.

Não hesito em proclamar, perante todos vós e perante todo o mundo, que cada vida humana — desde o momento da sua concepção e durante todas as fases que se seguem — é sagrada, porque a vida humana é criada à imagem e semelhança de Deus. Nada supera a grandeza nem a dignidade da pessoa humana. A vida humana não é apenas uma ideia ou uma abstracção; a vida humana é a realidade concreta de um ser que é capaz de amor e de serviço para com a humanidade.

Permiti-me que repita aquilo que disse durante a peregrinação à minha terra: "Se se inflige o direito do homem à vida no momento em que ele começa a ser concebido no seio materno, ataca-se indirectamente toda a ordem moral que serve para assegurar os bens invioláveis do homem. A vida ocupa entre eles o primeiro lugar. A Igreja defende o direito à vida, não só por respeito à majestade do Criador que é o primeiro dador desta vida, mas também por respeito ao bem essencial do homem" (João Paulo II, Homilia em Towy Targ; em L'Oss. Rom., ed. port., 15.7.79, p. 6).

A vida humana é preciosa porque é um dom de Deus cujo amor é infinito: e quando Deus dá a vida, dá-a para sempre. A vida é também preciosa porque é a expressão e o fruto do amor. É esta a razão pela qual a vida deve ter origem no contexto dó matrimónio e pela qual o matrimónio e o amor recíproco dos pais devem ser caracterizados pela generosidade em prodigar-se. O grande perigo para a vida da família numa sociedade cujos ídolos são o prazer, a comodidade e a independência, está no fato de os homens fecharem o coração e tornarem-se egoístas. O medo de um compromisso permanente pode transformar o amor mútuo entre marido e mulher em dois amores de si próprios — dois amores que existem um ao pé do outro, até acabarem por separar-se.

No sacramento do matrimônio o homem e a mulher — que pelo Batismo se tornaram membros de Cristo e têm o dever de manifestar na sua vida as atitudes de Cristo — recebem a certeza do auxílio de que têm necessidade para o próprio amor crescer numa união fiel e indissolúvel e para conseguirem responder generosamente ao dom da paternidade. Como declarou o Concílio Vaticano II: "Por meio deste Sacramento, o próprio Cristo torna-se presente na vida dos cônjuges e acompanha-os, a fim de que possam amar-se mutuamente e amar os seus filhós, precisamente como Cristo amou a sua Igreja e se deu a si mesmo por ela" (Cfr. Gaudium et Spes, 48; Ef 5, 25).

Para que o matrimônio cristão favoreça o bem total e o desenvolvimento do casal, deve ser inspirado pelo Evangelho, e assim abrir-se à nova vida — nova vida dada e aceita generosamente. Os cônjuges são também chamados a criar uma atmosfera familiar em que os filhos sejam felizes e vivam plena e dignamente uma vida humana e cristã.

Para ser possível viver-se uma vida familiar alegre, impõem-se sacrifícios quer da parte dos pais quer da parte dos filhos. Cada membro da família deve tornar-se, de modo especial, o servo dos outros compartilhando as cargas deles. É necessário cada um ter a solicitude não só da própria vida, mas também da vida dos outros membros da família: das suas carências, das suas esperanças e dos seus ideais. As decisões a propósito do número dos filhos e dos sacrifícios que daí derivam não devem ser tomadas só em vista de aumentar as próprias comodidades e manter uma existência tranquila. Refletindo neste ponto diante de Deus, ajudados pela graça que vem do Sacramento, e guiados pelos ensinamentos da Igreja, os pais recordarão a si próprios que é mal menor negar aos próprios filhos certas comodidades e vantagens materiais do que privá-los da presença de irmãos e irmãs que poderiam ajudá-los a desenvolver a sua humanidade e a realizar a beleza da vida em todas as suas fases e em toda a sua variedade.

Se os pais compreendessem plenamente as exigências e as oportunidades encerradas neste grande Sacramento, não deixariam de se unir a Maria no hino de louvor ao Autor da vida — a Deus —, que os escolheu como seus colaboradores.

Papa João Paulo II e o Presidente Jimmy Carter

Todos os seres humanos deveriam apreciar a individualidade de cada pessoa como criatura de Deus, chamada a ser irmão ou irmã de Cristo em razão da Encarnação e da Redenção Universal. Para nós a sacralidade da pessoa humana é fundada nestas premissas. E é nestas mesmas premissas que se funda a nossa celebração da vida — de toda a vida humana. Isto explica os nossos esforços para defender a vida humana de qualquer influência ou acção que a possa ameaçar ou debilitar, assim como os nossos esforços para tornar cada vida mais humana em todos os seus aspectos.

Por conseguinte, reagiremos todas as vezes que a vida humana for ameaçada. Quando o caráter sagrado da vida antes do nascimento for atacado, nós reagiremos para proclamar que ninguém tem o direito de destruir a vida antes do nascimento. Quando se falar de uma criança como de um peso ou se considera a mesma como meio para satisfazer uma necessidade emocional, nós interviremos para insistir em que todas as crianças são dom Único e irrepetível de Deus, que têm direito a uma família unida no amor. Quando a instituição do matrimônio for abandonada ao egoísmo humano e reduzida a um acordo temporâneo e condicional que se pode dissolver facilmente, nós reagiremos afirmando a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Quando o valor da família for ameaçado por pressões sociais e econômicas, nós reagiremos reafirmando que a família é necessária não só para o bem privado de cada pessoa, mas também para o bem comum de cada sociedade, nação e estado (João Paulo II, Audiência Geral, 3.1.79). Quando depois a liberdade for usada para sujeitar os fracos, esbanjar as riquezas naturais e a energia, e para negar aos homens as necessidades essenciais, nós reagiremos para reafirmar os princípios da justiça e do amor social. Quando os doentes, os anciãos ou os moribundos forem abandonados, nós reagiremos proclamando que eles são dignos de amor, de solicitude e de respeito.

Faço minhas as palavras que Paulo VI dirigiu o ano passado aos Bispos Americanos: "Estamos convencidos, além disso, que todos os esforços empreendidos para salvaguardar os direitos humanos beneficiam actualmente a vida em si mesma. Tudo o que se dirige — no direito ou nos fatos — a banir a discriminação baseada na 'raça, origem, cor, cultura, sexo ou religião' (cfr. Octogesima Adveniens, 16), é serviço prestado à vida. Quando os direitos das minorias, são protegidos, quando os diminuídos mental ou fisicamente são assistidos, quando é concedida voz aos marginalizados da sociedade, em todos estes casos, são favorecidas a dignidade da vida humana, a plenitude da vida humana e a santidade da vida humana... Em especial, cada contribuição para melhorar o clima moral da sociedade e enfrentar a permissividade e o hedonismo, e ainda toda a assistência à família, que é a fonte da nova vida, tudo isso é favorecer os valores da vida" (Paulo VI, Discurso aos Bispos Americanos, em L'Oss. Rom., ed. port. 4.6.1978. p. 4).

Muito está ainda por fazer a fim de se conseguir ajudar aqueles cuja vida é ameaçada e reavivar a esperança daqueles que têm medo da vida. Requer-se coragem para resistir às pressões e aos falsos "slogans", para proclamar a dignidade suprema de cada vida, e exigir que a própria sociedade a proteja. Desejo pois dirigir uma palavra de louvor a todos os membros da Igreja Católica e das outras Igrejas cristãs, a todos os homens e mulheres da herança judeo-cristã, assim como a todos os homens de boa vontade, a fim de se unirem num esforço comum para a defesa da vida na sua plenitude e para a promoção de todos os direitos humanos:

A nossa celebração da vida faz parte da nossa celebração da Eucaristia. Nosso Senhor e Salvador, mediante a Sua morte e Ressurreição, tornou-se para nós "o pão da vida" e o penhor da vida eterna. N'Ele encontramos a coragem, a perseverança e a inventiva de que temos necessidade para promover e defender a vida nas nossas famílias e no mundo inteiro.

Queridos irmãos e irmãs: temos confiança em que Maria, Mãe de Deus e Mãe da Vida, nos dará a sua ajuda para que o nosso modo de viver reflita sempre a nossa admiração e reconhecimento pelo dom do amor de Deus que é a vida. Sabemos que Ela nos ajudará a usar todos os dias que nos são dados como oportunidade para defender a vida antes do nascimento e para tornar mais humana a vida dos nossos irmãos, onde quer que eles se encontrem.

A intercessão de Nossa Senhora do Rosário, cuja festa celebramos hoje, nos conceda podermos todos chegar um dia à plenitude da vida em Cristo Jesus nosso Senhor. Ámen.

-- Santo Papa João Paulo II, homília de 7 de Outubro de 1979.

27 de jun. de 2022

É ele o Senhor, nosso Deus; nós, povo de suas pastagens


 As palavras que cantamos contêm nossa declaração: somos ovelhas de Deus, porque ele é o Senhor nosso Deus, que nos fez. Ele é o nosso Deus, nós somos o povo de suas pastagens e as ovelhas de suas mãos. Não foram os pastores que fizeram suas ovelhas, não foram eles que criaram os animais que levam a pastar. Mas o Senhor, nosso Deus, por ser Deus e criador, foi ele mesmo que fez para si as ovelhas que possui e que apascenta. Não foi um a criar aquelas que ele apascenta, nem outro a apascentar as que criou!

            Declaramos, pois, neste cântico, que somos as suas ovelhas, o povo de suas pastagens, as ovelhas de suas mãos. Ouçamos agora o que nos diz, a nós, a suas ovelhas. Primeiro, ele falava aos pastores; agora, porém, fala às ovelhas. Postos entre os pastores, nós ouvíamos as suas palavras com tremor, e vós, com segurança. Que acontece nestas palavras de hoje? Será que por alternância, nós com segurança, vós, com tremor? Absolutamente não. Primeiro porque, se somos pastores, o pastor ouve com tremor não apenas o que é dito aos pastores, mas também o que se diz às ovelhas. Se ouve tranquilo o que se diz às ovelhas, pouco se importa com elas. Em seguida, e já o dissemos à vossa caridade, há duas coisas a considerar em nós: uma, que somos cristãos; outra que somos prelados. Por sermos prelados, somos contados entre os pastores, se formos bons. Por sermos cristãos, convosco também somos ovelhas. Portanto, quer fale o Senhor aos pastores, quer fale às ovelhas, temos de ouvir tudo com tremor, sem que diminua a solicitude de nosso coração.

            Ouçamos então, irmãos, a razão pela qual o Senhor castiga as ovelhas más e o que promete às suas. E vós, assim diz, sois minhas ovelhas. Antes do mais, que felicidade ser do rebanho de Deus, tão grande que se alguém nela pensar, irmãos, até mesmo nas lágrimas e nas tribulações de agora, lhe vem imensa alegria. De quem foi dito: Que apascentas Israel, é aquele mesmo de quem se diz: Não cochilará nem há de dormir quem guarda Israel. Por conseguinte, ele vigia sobre nós acordados, vigia sobre nós adormecidos. Se, pois, o rebanho de um homem se sente seguro pelo pastor homem, que segurança não deve ser a nossa por ser Deus mesmo que nos apascenta, e não apenas porque nos alimenta, mas também porque nos fez?

            Vós, ovelhas minhas, assim diz o Senhor Deus: eis que distingo entre ovelha e ovelha, entre bodes e cabritos. Que fazem aqui no rebanho de Deus os cabritos? Nas mesmas pastagens, nas mesmas fontes e, no entanto, cabritos destinados à esquerda se misturam aos da direita. São tolerados antes de ser separados. Provam a paciência das ovelhas à semelhança da paciência de Deus. Ele fará, sim, a separação, uns à esquerda, outros à direita.

-- Santo Agostinho, bispo (século V)

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