19 de jun. de 2020

Em vós está a fonte da vida


Considera, ó homem redimido, quem é aquele que por tua causa está pregado na cruz, qual a sua dignidade e grandeza. A sua morte dá a vida aos mortos; por sua morte choram o céu e a terra, e fendem-se até as pedras mais duras. Para que, do lado de Cristo morto na cruz, se formasse a Igreja e se cumprisse a Escritura que diz: Olharão para aquele que transpassaram (Jo 19,37), a divina Providência permitiu que um dos soldados lhe abrisse com a lança o sagrado lado, de onde jorraram sangue e água. Este é o preço da nossa salvação. Saído daquela fonte divina, isto é, no íntimo do seu Coração, iria dar aos sacramentos da Igreja o poder de conferir a vida da graça, tornando-se para os que já vivem em Cristo bebida da fonte viva que jorra para a vida eterna (Jo 4,14). 

            Levanta-te, pois, tu que amas a Cristo, sê como a pomba que faz o seu ninho na borda do rochedo (Jr 48,28), e aí, como o pássaro que encontrou sua morada (cf. Sl 83,4), não cesses de estar vigilante; aí esconde como a andorinha os filhos nascidos do casto amor; aí aproxima teus lábios para beber a água das fontes do Salvador (cf. Is 12,3). Pois esta é a fonte que brota no meio do paraíso e, dividida em quatro rios (cf. Gn 2,10), se derrama nos corações dos fiéis para irrigar e fecundar a terra inteira. 

            Acorre com vivo desejo a esta fonte de vida e de luz, quem quer que sejas, ó alma consagrada a Deus, e exclama com todas as forças do teu coração:“Ó inefável beleza do Deus altíssimo e puríssimo esplendor da luz eterna, vida que vivifica toda vida, luz que ilumina toda luz e conserva em perpétuo esplendor a multidão dos astros, que desde a primeira aurora resplandecem diante do trono da vossa divindade.  

            Ó eterno e inacessível, brilhante e suave manancial daquela fonte oculta aos olhos de todos os mortais! Sois profundidade infinita, altura sem limite, amplidão sem medida, pureza sem mancha!” 

            De ti procede o rio que vem trazer alegria à cidade de Deus (Sl 45,5), para que entre vozes de júbilo e contentamento (cf. Sl 41,5) possamos cantar hinos de louvor ao vosso nome, sabendo por experiência que em vós está a fonte da vida, e em vossa luz contemplamos a luz (Sl 35,10). 

-- Das Obras de São Boaventura, bispo (século XIII)

12 de jun. de 2020

O suave livro dos salmos

Embora toda a divina Escritura exale a graça de Deus, o mais suave é o Livro dos Salmos. Moisés, que escreveu os feitos dos patriarcas em simples prosa, quando fez passar através do mar Vermelho o povo dos pais para imperecível admiração, vendo afogados o faraó e seus exércitos, sentiu inflamar-se seu engenho, pois conseguira portentos acima de suas forças, e elevou triunfal cântico ao Senhor. Maria, também, tomou o pandeiro e assim exortava as outras, entoando: Cantemos ao Senhor, que se cobriu de glória e de honra; lançou ao mar cavalo e cavaleiro.
 
A história instrui, a lei ensina, a profecia anuncia, a correção castiga, a moral persuade. Ora, no Livro dos Salmos há proveito para todos e remédio para a salvação do homem. Quem o lê, tem remédio especial para as chagas das paixões. Quem quiser lutar como em ginásio de almas e estádio de virtudes, onde estão preparados diversos gêneros de luta, escolha para si aquele que julgar mais adequado para mais facilmente alcançar a coroa.

Se alguém quiser recordar e imitar os feitos gloriosos dos antepassados, encontrará compendiada num salmo toda a história de nossos pais, podendo assim enriquecer o tesouro da memória numa breve leitura. Se alguém perscruta a força da lei que está toda no vínculo da caridade (quem ama o próximo, cumpriu a lei), leia então, nos salmos, com quanto amor um só se expôs aos mais graves perigos para repelir o opróbrio de todo o povo. Donde se reconhece não ser a glória da caridade menor do que o triunfo da virtude.
 
Que direi sobre o dom da profecia? Aquilo que outros anunciaram por enigmas, só a este, aparece clara e abertamente a promessa de que o Senhor Jesus nasceria de sua linhagem, conforme lhe falou: Porei sobre teu trono o fruto de tuas entranhas. Por conseguinte, nos salmos não apenas nasce Jesus para nós, mas ainda aceita a salvífica paixão de seu corpo, adormece, ressurge, sobe aos céus, assenta-se à direita do Pai. O que homem algum ousaria dizer, só este profeta anunciou e depois o próprio Senhor o manifestou no seu evangelho.

-- Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Ambrósio, bispo (século IV)

5 de jun. de 2020

Beato Franz Jägerstätter, mártir do governo nazista

Franz nasceu na Áustria em 20 de Maio de 1907, seu pai morreu como soldado durante a I Guerra Mundial e sua mãe casou novamente com Heinrich Jägerstätter, que o adotou como filho, inclusive mudando o seu sobrenome.

Como jovem, ele trabalhava na fazenda do pai, depois nas minas. Era membro de uma gang de motociclistas, e até chegou a ser preso por algumas confusões e brigas que participou. Quando seu pai morreu, ele assumiu a fazenda. Em 1936 engravidou sua futura esposa, casaram-se e decidiram que a lua de mel seria uma peregrinação a Roma. 

Em 1938, a Alemanha anexou a Áustria. Na sua vila, Franz foi a única pessoa que votou contra, mas as autoridades preferiram mentir que a votação havia sido unânime em favor dos nazistas. Após o início da guerra, em 1940 Franz foi chamado para treinamento militar, do qual participou por sete meses. Através de um pedido do prefeito, Franz retornou para casa. Neste tempo entrou para a Terceira Ordem de São Francisco e tornou-se sacristão da igreja de Sankt Radegund. 

Conforme os crimes cometidos pelos nazistas foram se tornando mais conhecidos da população e a perseguição religiosa aumentando, Franz decidiu que não poderia lutar por aquele governo. Discutiu isto com o padre e o bispo, ambos aconselharam-no a pensar na sua família, pois já tinha 3 filhos. Sua ida para o Exército foi sendo adiada por pedidos das autoridades locais que o consideravam essencial na cidade.

Mas em 23 de Fevereiro de 1943 foi finalmente chamado para o serviço ativo. Franz apresentou-se no quartel em 1o. de Março, na cidade de Enns, recusou-se a prestar o obrigatório juramento a Hitler e ofereceu-se para trabalhar no corpo médico. Sua oferta foi recusada e ele foi imediatamente preso.

Na Semana Santa escreveu para sua esposa: "A Páscoa está chegando, se for a vontade de Deus que não possamos novamente celebrar a Páscoa unidos como família neste mundo, ainda podemos olhar com confiança para o futuro pois celebraremos uma Páscoa eterna nos céus, todos nós estaremos lá, e poderemos nos alegrar pois estaremos eternamente reunidos". Da Áustria, foi transferido para Berlim, onde seria julgado.

Túmulo do Beato Franz




Seu advogado de defesa perguntou-lhe por que não fazia como todos os outros católicos que estavam servindo no Exército, defendendo seu país, sua família. Franz respondeu: "Eu só posso agir de acordo com a minha consciência, não posso julgar a ninguém. Tenho pensado na minha família, rezado, e colocado minha esposa e filhos nas mãos de Deus. Eu sei o que Deus quer na minha vida e que Ele cuidará da minha família". 

Em outro momento escreveu: "Eu não trocaria a minha cela pequena e suja por um palácio real se tivesse que renunciar a minha fé. Discípulos de Jesus devem aprender que o sofrimento é inevitável e aprender de Cristo que a nossa é uma religião da Cruz"

Numa carta para sua esposa, escreveu: "Nossos laços com Deus devem ser mais fortes que o amor que devotamos à família. Com certeza sabes que devemos amar mais a Deus que nossas vidas e temos que estar prontos para abandonar nos amores terrenos para não ofendermos a Deus por nada".

Em 8 de Agosto, Franz escreveu uma última carta à sua esposa: "Querida esposa e mãe, eu te agradeço, do meu coração, por tudo que fizeste na minha vida, por todos sacríficios que estás passando por causa de mim. Eu te peço que me perdoes se tenho te ofendido, assim como tenho perdoado a todos. Meu coração está com meus queridos filhos, tenho implorado a Deus que reserve um pedaço do céu para cada um de nós. Dou graças também ao nosso Salvador porque pude sofrer por Ele. Confio na sua infinita misericórdia; espero que Ele me perdoe tudo e não me abandone na minha última hora... Observai os mandamentos e, com a graça de Deus, ver-nos-emos em breve no Céu!"

Beato Franz foi decapitado e cremado no dia seguinte. Suas cinzas foram transferidas para o cemitério da sua cidade quando terminou a guerra, em 1946, junto ao de outros 60 que morreram como soldados durante a guerra. 

Após a morte de Franz, sua esposa escreveu ao bispo: "Eu perdi meu querido marido e o pai de meus filhos, mas posso assegurar que o nosso era um dos casamentos mais felizes da paróquia, que muitas pessoas nos invejavam. Mas quis o bom Deus que não permanecêssemos juntos, tenho a certeza que nos reencontraremos nos céus, onde a guerra não irá nos separar".

Papa Bento XVI declarou-o mártir da fé católica e a beatificação aconteceu em 26 de Outubro de 2007, na cidade de Linz, Áustria. 

-- autoria própria

 * Homília no solene rito de Beatificação de Franz Jägerstätter , que foi presidida pelo Cardeal José Saraiva Martins.




2 de jun. de 2020

Santa Melânia, a Velha

Melânia, a Velha é a avó de outra santa com o mesmo nome, Melânia, a Jovem; ou seja, na mesma família temos duas santas, ambas chamadas Melânia, avó e a neta. A família estava no topo da administração romana, era riquíssima e tinha ligações com a Espanha. 

Melânia, a Velha, nasceu em 323 ou 325, os registros são incertos. Seus pais, quando ela chegou na idade adequada, escolheram como marido Valério Máximo, já tinha sido embaixador romano na corte em Constantinopla e prefeito de Roma, ou seja, também era de uma família rica e prestigiada, mas bem mais velho que Melânia. Permanenceram casados por poucos anos, tiveram três filhos e o marido faleceu quando ela tinha apenas 22 anos. Logo após, dois filhos também morreram, deixando a família reduzida apenas a Melânia e seu filho Valério Públicola, o futuro pai da neta Melânia.

Vida monástica

Ela decidiu que ao invés de casar novamente, iria deixar Roma e foi para Egito e Israel, onde passaria a viver próximo aos padres do deserto, bispos, monjes e monjas que eram o centro da igreja, que naquela época não era Roma. Surpreendente para nossos padrões atuais, ela deixou seu filho com um tutor que tinha acesso a todos os seus bens para garantir o sustento da criança e partiu para o Oriente. Ela só retornaria a ver o filho 37 anos após.

Ao chegar no Egito, ela visitou alguns monjes que viviam no deserto e decidiu que teria uma vida semelhante. No entanto, havia um problema prático: eles queriam viver em isolamento e, neste sentido, sua presença não era benvinda. Por outro lado, ela percebeu que continuar vivendo numa casa confortável, mesmo que estando em oração e jejum, envolvia ter que perder tempo com a administração da casa, limpeza e outras atividades que a distraiam do objetivo principal. 

Com estes pensamentos, ela foi para Jerusalém viver nos locais que Jesus e os apóstolos também haviam vivido. Chegando lá, inspirada pelos textos de Orígenes, construiu um monastério no Monte das Oliveiras onde passaria a viver uma vida ascética estudando as Sagradas Escrituras. Este foi um dos primeiros monastérios construídos como uma resposta intermediária entre o isolamento no deserto e as necessidades práticas de uma vida na cidade. O monastério chegou a abrigar 50 jovens vivendo uma vida penitente, mas também trabalhando numa hospedaria para peregrinos construída ao lado da casa. 

Melânia envolveu-se nos debates quanto às possíveis heresias de Orígenes, São Jerônimo que também morava em Jerusalém chegou a escrever contra ela. Quando os defensores de Orígines foram perseguidos, Melânia deu abrigo e os protegeu.

Viagem a Roma
Em 399 ela decidiu viajar para Roma. No caminho encontrou-se com São Paulino de Nola, que morava no sul da Itália, para quem deu de presente um pedaço da Santa Cruz de Cristo. Em Roma, não apenas reencontrou seu filho, mas também sua neta, a quem teria instigado a viver uma vida simples e peregrina, abandonando Roma e as riquezas da família.

Em 406 decidu retornar a Jerusalém. Novamente encontrou-se com São Paulino de Nola, que pediu-lhe para levar uma carta a São Agostinho, que estava no norte da África. Depois da longa viagem, ela permaneceu no monastério em Jerusalém até sua morte, em 410.

Santa Melânia, a Velha, é muito mais venerada pela Igreja Ortodoxa, não sendo muito popular no Ocidente. 

Dois exemplos para nós
Algumas histórias, de difícil comprovação, são contadas sobre ela.

Quando pela primeira vez chegou ao Egito, procurou um monge do deserto conhecido como Abba Pambo e deu-lhe 100 quilos de prata. Ainda habituada aos modos da corte, esperava um grande agradecimento e elogios, mas o monge não lhe disse nada. Ela insistiu e ressaltou que se tratava de 100 quilos de prata, uma fortuna. Enfim o monge lhe respondeu: "Minha filha, Deus que construiu as montanhas com seu poder, sabe que aí há 100 quilos de prata. Ele prestou atenção na viúva que deu duas moedinhas no templo (cf Mc 12, 42), Ele sabe o que estás fazendo. Mas se estás dando para mim, eu não quero bem materiais e podes levar de volta".

Anos depois, outro monge chamado Evagrius chegou a Jerusalém e ficou na hospedaria ao lado do monastério que ela havia fundado. O monge estava muito doente e não havia remédio que ajudasse. Percebendo que algo mais se passava, ela foi falar com ele e disse: "Estás doente por que há um pecado em teu coração!". O monge confessou que havia conhecido uma mulher muito linda, por quem sentia desejos da carne. Melânia lhe respondeu: "Prometa que de agora em diante vais viver em um monastério, recluso e em oração, e eu vou rezar por ti e pedir a Deus que te perdoe os pecados, sejam lá o que tiverdes feito". E, de fato, o monge se recuperou rapidamente e viveu ainda muito e muitos anos.  

-- autoria própria.


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