28 de jan. de 2012

Centenário da Morte de Santa Maria Goretti


MENSAGEM DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II
POR OCASIÃO DO PRIMEIRO CENTENÁRIO
DA MORTE DE SANTA MARIA GORETTI
6 de Julho de 2002

Ao venerado Irmão D. AGOSTINO VALLINI
Bispo de Albano

1. Há cem anos, no dia 6 de Julho de 1902, no hospital de Netuno, morria Maria Goretti, barbaramente apunhalada um dia antes na pequena aldeia de Le Ferriere, no Campo pontino. Pela sua vivência espiritual, pela força da sua fé, pela capacidade de perdoar ao seu algoz, ela põe-se entre as Santas mais amadas do século XX. Portanto, oportunamente, a Congregação da Paixão de Jesus Cristo, a quem está confiado o cuidado do Santuário onde respousam os restos mortais da Santa, quis celebrar esta data com particular solenidade.

Santa Maria Goretti foi uma jovem em quem o Espírito de Deus infundiu a coragem de permanecer fiel à vocação cristã, até ao supremo sacrifício da vida. A idade jovem, a falta de educação escolar e a pobreza do ambiente em que vivia não impediram a graça de manifestar nela os seus prodígios. Pelo contrário, precisamente em tais condições apareceu de maneira eloquente a predilecção de Deus pelas pessoas humildes. Voltam à mente as palavras com que Jesus bendisse o Pai celestial por se ter revelado aos pequeninos e aos simples, e não aos sábios, nem aos doutos deste mundo (cf. Mt Mt 11,25).
Santo Papa João Paulo rezando junto ao corpo de
Santa Maria Goretti

Observou-se, justamente, que o martírio de Santa Maria Goretti inaugurou aquele a que se haveria de chamar o século dos mártires. E foi precisamente nesta perspectiva que, no final do Grande Jubileu do Ano 2000, sublinhei que "a consciência mais viva não nos impediu, porém, de dar glória ao Senhor por tudo o que Ele fez ao longo dos séculos, de modo particular neste último, que deixámos para trás, assegurando à sua Igreja uma longa série de santos e de mártires" (Novo millennio ineunte, 7).

2. Maria Goretti nasceu em Corinaldo, nas Marcas, no dia 16 de Outubro de 1890 e, depressa, teve de empreender com a sua família o caminho da migração; depois de várias etapas, chegou a Le Ferriere di Conca, no Campo pontino. Apesar das dificuldades da pobreza, que não lhe permitiam sequer ir à escola, a pequena Maria vivia num ambiente familiar sereno e unido, animado pela fé cristã, onde os filhos se sentiam acolhidos como um dom e eram educados pelos pais no respeito de si mesmos e do próximo, e no sentido do dever cumprido por amor a Deus. Isto permitiu que a criança crescesse serenamente, alimentando em si uma fé simples, mas profunda. A Igreja sempre reconheceu à família o papel de primeiro e fundamental lugar de santificação para quantos dela fazem parte, a começar pelos seus filhos.

Neste contexto familiar, Maria assimilou uma sólida confiança no amor providencial de Deus, confiança esta que se manifestou particularmente no momento da morte do seu pai, vítima da malária. "Ânimo, mãezinha, Deus vai ajudar-nos!", dizia a criança nessa hora difícil, reagindo com força ao grave vazio criado pela morte do pai.

3. Na homilia de canonização o Papa Pio XII, de veneranda memória, indicou Maria Goretti como "a pequena e doce mártir da pureza" (cf. Discursos e radiomensagens, XII [1950-1951], pág. 121) porque, apesar da ameaça de morte, não desobedeceu ao mandamento de Deus.

Que fúlgido exemplo para a juventude! A mentalidade liberal, que penetra uma boa parte da sociedade e da cultura do nosso tempo, às vezes tem dificuldade de compreender a beleza e o valor da castidade. O comportamento desta jovem Santa infunde uma percepção exímia e nobre da dignidade pessoal e do próximo, que se reflecte nas opções quotidianas, conferindo-lhes a plenitude do sentido humano. Não há nisto, porventura, uma lição de grande actualidade? Diante de uma cultura que sobrestima o aspecto físico nos relacionamentos entre o homem e a mulher, a Igreja continua a defender e a promover o valor da sexualidade como factor que investe todos os aspectos da pessoa e que, por conseguinte, deve ser vivido numa atitude interior de liberdade e de respeito recíproco, à luz do desígnio originário de Deus. Nesta perspectiva, a pessoa descobre-se como destinatária de uma dádiva e é chamada a tornar-se, por sua vez, um dom ao próximo.

Na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, observei que "na visão cristã do matrimónio, a relação entre um homem e uma mulher relação recíproca e total, única e indissolúvel corresponde ao desígnio originário de Deus que, ofuscado na história pela "dureza do coração", foi contudo restabelecido no seu esplendor primordial por Cristo, mostrando o que Deus queria "no princípio" (Mt 19,8). No matrimónio, elevado à dignidade de Sacramento, está expresso o "grande mistério" do amor esponsal de Cristo pela sua Igreja (cf. Ef Ep 5,32)" (n. 47).

É inegável que há numerosas ameaças contemporâneas contra a unidade e a estabilidade da família. Felizmente, porém, ao lado delas encontra-se uma renovada consciência dos direitos que os filhos têm de ser criados no amor, protegidos de todos os tipos de perigos e formados de maneira a poderem, por sua vez, enfrentrar a vida com confiança e fortaleza.

4. Além disso, são merecedores de particular atenção, no testemunho heróico da Santa de Le Ferriere, o perdão oferecido ao seu assassino e o desejo de o poder encontrar novamente, um dia, no Paraíso. Trata-se de uma mensagem espiritual e social de extraordinário relevo para este nosso tempo.

Entre outros aspectos, o recente Grande Jubileu do Ano 2000 caracterizou-se por uma profunda exortação ao perdão, no contexto da celebração da misericórdia de Deus. A indulgência divina pelas misérias humanas insere-se como exigente modelo de comportamento para todos os crentes. No pensamento da Igreja, o perdão não significa relativismo moral ou permissivismo. Pelo contrário, ele exige o pleno reconhecimento da nossa culpa e a assunção das nossas responsabilidades, como condição para voltar a encontrar a verdadeira paz e a retomar com confiança o nosso caminho ao longo da estrada da perfeição evangélica.

Possa a humanidade introduzir-se com decisão na vida da misericórdia e do perdão! O assassino de Maria Goretti reconheceu a culpa cometida, pediu perdão a Deus e à família da Mártir, expiou com convicção o seu crime e, durante a vida inteira, permaneceu nesta disposição de espírito. Por sua vez, na sala do tribunal onde teve lugar o processo, a mãe da Santa ofereceu-lhe sem hesitações o perdão da família. Não sabemos se foi a mãe que ensinou o perdão à filha, ou se foi o perdão oferecido pela Mártir no leito de morte que determinou o comportamento da mãe. Contudo, é óbvio que o espírito do perdão animava os relacionamentos de toda a família Goretti e, por isso, pôde exprimir-se com tanta espontaneidade quer na Mártir quer na mãe.

5. Quem conhecia a pequena Maria, no dia do seu funeral pôde dizer: "Morreu uma Santa!". O seu culto difundiu-se em todos os continentes, suscitando em toda a parte a admiração e a sede de Deus. Em Maria Goretti resplandece a radicalidade das opções evangélicas, não impedida, mas valorizada pelos inevitáveis sacrifícios exigidos pela pertença fiel a Cristo.

Indico o exemplo desta Santa especialmente aos jovens, que constituem a esperança da Igreja e da humanidade. Já na iminência da XVII Jornada Mundial da Juventude, desejo lembrar-lhes aquilo que escrevi na Mensagem que lhe destinei, em preparação para este evento eclesial tão esperado: "No coração da noite, pode sentir-se medo e insegurança, aguardando-se então com impaciência a chegada da luz da aurora. Amados jovens, é a vossa vez de ser as sentinelas da manhã (cf. Is Is 21,11-12) que anunciam a chegada do sol, que é Cristo ressuscitado!" (Ed. port. de L'Osservatore Romano de 4 de Agosto de 2001, pág. 4, n. 3).

Caminhar nos passos do Mestre divino exige sempre uma decidida tomada de posição firme por dele. É necessário comprometer-se em segui-lo onde quer que Ele vá (cf. Ap Ap 14,4). Todavia, ao longo deste caminho os jovens sabem que não estão sozinhos. Santa Maria Goretti e os numerosos adolescentes, que ao longo dos séculos pagaram com o martírio a adesão ao Evangelho, estão ao seu lado a fim de lhes infundir na alma a força para permanecer firmes na fidelidade. É assim que poderão ser as sentinelas de uma manhã luminosa, iluminada pela esperança! A Virgem Santíssima, Rainha dos Mártires, interceda por eles!

Enquanto elevo esta oração, uno-me espiritualmente a todos aqueles que hão-de participar nas celebrações jubilares durante este ano centenário e transmito-lhe, venerado Pastor diocesano, assim como aos beneméritos Padres Passionistas comprometidos no Santuário de Netuno, aos devotos de Santa Maria Goretti e de maneira particular aos jovens, uma especial Bênção apostólica, em penhor de copiosos favores celestiais.

Vaticano, 6 de Julho de 2002.

22 de jan. de 2012

Cristo sempre presente em sua Igreja


Cristo está sempre presente em sua Igreja, principalmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da missa, tanto na pessoa do ministro, pois quem o oferece agora, através do ministério dos sacerdotes, é aquele mesmo que se ofereceu na cruz, como, mais intensamente ainda, sob as espécies eucarísticas. Está presente pela sua virtude nos sacramentos, pois quando alguém batiza é Cristo quem batiza. Está presente por sua palavra, pois é ele quem fala, quando se lê a Sagrada Escritura na Igreja. Está presente, enfim, na oração e salmodia da Igreja, ele que prometeu: Onde dois ou três se reúnem em meu nome, aí estou no meio deles.

De fato, nesta obra tão grandiosa em que Deus é perfeitamente glorificado e santificados os homens, Cristo une estreitamente a si sua esposa diletíssima, a Igreja, que invoca seu Senhor e, por ele, presta culto ao eterno Pai.

Papa Bento XVI celebrando a Santa Missa na Catedral de
Saint Patrick (NY).
Portanto, com razão, considera-se a liturgia como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, onde os sinais sensíveis significam e, do modo específico a cada um, realizam a santificação do homem. Assim, pelo Corpo místico de Jesus Cristo, isto é, sua Cabeça e seus membros, se perfaz o culto público  ntegral. Por este motivo, toda celebração litúrgica, por ser ato do Cristo sacerdote e de seu Corpo, a Igreja, é a ação sagrada por excelência, cuja eficácia nenhuma outra obra da Igreja iguala no mesmo título e grau.

Participando da liturgia terrena saboreamos antecipadamente a liturgia que se celebra na santa cidade, a Jerusalém celeste, para onde nos dirigimos como peregrinos, lá onde Cristo se assenta à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo. Juntamente com todos os exércitos celestes, cantamos hinos de glória ao Senhor. Venerando a memória dos santos, esperamos ter parte em sua companhia. Finalmente, estamos na expectativa do Salvador, nosso Senhor Jesus Cristo, que aparecerá, Ele, nossa vida, e nós também apareceremos com Ele na glória.

A Igreja, seguindo a tradição dos apóstolos cuja origem remonta ao próprio dia da ressurreição, celebra o mistério pascal cada oito dias, que por isto se chama dia do Senhor ou domingo. Neste dia devem os fiéis reunir-se para escutar a palavra de Deus e participar da eucaristia, a fim de se lembrarem da paixão, ressurreição e glória do Senhor Jesus, dando graças a Deus que os recriou para a esperança viva pela ressurreição de Jesus Cristo, dentre os mortos. Assim é o domingo a festa primordial e, como tal, seja apresentado e inculcado à piedade dos fiéis para que se lhes torne dia de alegria e de descanso dos trabalhos. Todas as outras celebrações, a não ser que sejam realmente de máxima importância, não passem à sua frente porque é o fundamento e o cerne de todo o ano litúrgico.

-- Da Constituição Sacrossanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, do Concílio Vaticano II (século XX)

19 de jan. de 2012

Homília sobre São Lucas (12, 16-21)


São Basílio de Cesaréia vinha de uma família rica. Movido pela fé cristã, optou pelo serviço e pobreza. Proferiu esta Homilia quando ainda como sacerdote, auxiliar do bispo Eusébio de Cesaréia, a quem sucederá em 370. A ocasião que a provoca é a exasperação de uma situação que vinha se prolongando e que atingiu seu ápice depois de longa estiagem abrangendo toda a Capadócia nos anos 368-369. 

Entre os escritos por São Basílio, um dos mais conhecidos é exatametne esta homília sobre o Evangelho de São Lucas, capítulo 12:

16. E contou-lhes uma parábola: "A terra de um homem rico deu uma grande colheita".
17. Ele pensava consigo mesmo: "Que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita".
18. Então resolveu: "Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens".
19. Então poderei dizer a mim mesmo: "Meu caro, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, goza a vida!"
20. Mas Deus lhe diz: "Tolo! Ainda nesta noite, tua vida te será retirada. E para quem ficará o que acumulaste? 
21. Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não se torna rico diante de Deus".

Para facilitar a leitura, aproveitamos a divisão do texto e publicamos em três partes, este post fica como índice geral:


-- Das Homílias sobre o Evangelho de São Lucas, por São Basílio (século IV)

O Julgamento do Rico


Tu falas contigo mesmo em segredo, porém, tuas palavras são examinadas no céu; na verdade, de ti mesmo vem a resposta. Que disseste? Alma minha, tens uma grande reserva de bens: come e bebe e regala-te cada dia (Lc 12,19). Que estultícia! Se tivesses alma de porco, seria diferente o que te proponho? És assim como um animal, inconsciente dos bens da alma, que só aceita os alimentos da carne e dás à tua alma aquilo que será expelido fora? Se uma alma possui a virtude, se está repleta de boas obras e habita junto de Deus, então, sim, tem muitos bens e pode se regozijar com a mais bela alegria. Mas como aprecias as coisas terrenas, tens por Deus o ventre e és todo carnal, escravo das paixões, escuta o nome que te é bem apropriado, não dado por nenhum homem, mas pelo próprio Senhor: Estúpido, nesta mesma noite, tua alma te será pedida; aquilo que guardaste, para quem irá? (Lc 12,20). O ridículo da estultícia é muito maior do que o castigo eterno. 

Renuncia aos bens mundanos, obra de Giotto
de Bodonne. Afresco na Basílica de São Francisco em Assis.
Quem irá ser arrebatado dentro em pouco, que é que projeta? Destruirei meus celeiros e construirei outros maiores (Lc 12,18). Fazes bem, eu te diria. Pois bem merecem ser destruídos os depósitos da iniqüidade. Destrói com tuas próprias mãos aquilo que construíste para o mal. Desmancha os celeiros de trigo donde jamais alguém saiu levando auxílio. Faze desaparecer a casa toda inteira, guarda da avareza; arranca os telhados, derruba os muros ao redor, expõe ao solo trigo bolorento, retira da prisão as riquezas agrilhoadas, mostra triunfalmente em público as tenebrosas moradas de Mamon. Destruirei meus celeiros e construirei maiores. E quando os terás enchido de novo, o que estarás projetando? Provavelmente de novo os destruirás e de novo construirás? Há coisa mais insensata que isto: trabalhar sem fim, construir às pressas e às pressas destruir? Já tens celeiros, se quiseres, as casas dos famintos. Entesourarás para ti um tesouro no céu. Aquele que, guardado lá, as traças não devoram, os ladrões não roubam (cf. Mt 6,20).

Retardar a esmola é culpável e perigoso

Previstes uma longa vida. Quem sabe se não virá antes algo de urgente contra tua previsão. De fato, esta tua promessa não é sinal de virtude; antes, é de malícia: tu prometes não para dar, mas só para enganar. O que te impede de distribuir agora? Não está presente o necessitado? Acaso não estão repletos os celeiros? Preparada a recompensa? Não é claro o preceito? O faminto desfalece, o nu está gelado; quem reclama é sufocado. E tu adias para o dia seguinte a esmola. Escuta Salomão: Não digas: 'Vai e volta, amanhã te darei' (Pr 3,28). Porque sabes o que te trará o dia de amanhã (cf. Pr 27,1).

Desprezas tais preceitos por que a avareza já te tapou os ouvidos. Quanta gratidão deverias ter para com o Benfeitor, estar radiante de alegria e célebre pela estima de todos, porque não és tu que importunas portas alheias, mas outros que vêm bater às tuas! Agora, no entanto, estás confuso, pouco acessível, esquivando-te dos encontros, não aconteça que algo, mesmo pequeno, obrigue a estender as mãos, sabes uma palavra: "Não tenho nem darei, também sou pobre".

És pobre, realmente; careces de todo o bem. Pobre de bondade, pobre de fé em Deus, pobre da esperança de eternidade. Reparte os víveres com os irmãos, amanhã apodrecerão; dá hoje aos indigentes. A idéia da avareza é a mais detestável de todas; nem mesmo aquilo que vai corromper-se não quer distribuir com os necessitados.

O que faço de errado, diz ele, guardando o que é meu?

Dize-me, de que modo é teu? Donde tiraste, tomando-o para teu sustento? É como alguém que, indo ao teatro, se apoderasse do espetáculo e quisesse excluir os que entrassem depois, pretendendo ser só seu aquilo que é comum a todos os que se apresentam, conforme lhes parece bem. Assim são os ricos. Pois, apoderando-se primeiro do que é de todos, tudo tomam para si por uma falsa idéia. Se cada um tirasse para si o que lhe é necessário.e entregasse ao indigente o que sobra, ninguém seria rico, ninguém pobre. 

Não saíste nu do útero e não retornarás nu para a terra (cf. Jó 1,21)? Os bens que possuis, de onde vêm? Se dizes que provêm do acaso, és ímpio, não reconhecendo o Criador e não dando graças ao doador. Se, ao invés, admites que são de Deus, dize-me por que os recebeste. É talvez injusto Deus, que nos distribui os meios de subsistência de modo desigual? Por que tu és rico e aquele é pobre? Certamente para que tu pudesses receber a recompensa da bondade da fiel administração e aquele pudesse conseguir o magnífico prêmio da paciência. E tu, quando procuras abarcar tudo nos insaciáveis ventres da avareza, julgas não fazer injustiça a ninguém, privando tanta gente do necessário? Quem é o avarento? Aquele que não se contenta com aquilo que lhe é suficiente. Quem é o ladrão? Quem tira aquilo que é de outro. Não és avaro? Não és ladrão, tu que fazes tua a propriedade que recebeste para administrar? Quem espolia alguém que está vestido é tido como ladrão; e quem, podendo fazê-lo, não reveste quem está nu merecerá outro nome? O pão que tu reténs pertence ao faminto, o manto que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que apodrecem em tua casa pertencem ao descalço; o dinheiro que tens enterrado é do necessitado. Porque tantos são aqueles aos quais fazes injustiças, quantos aqueles que poderias socorrer.

Juízo de Deus

"Belas palavras, dirás, mas o ouro é ainda mais belo!" Como quando se discute sobre a castidade com os libertinos. Estes, de fato, despachada a amiga do coração, queimam-se de paixão pela lembrança. De que modo te porei sob os olhos os sofrimentos do pobre, para que te convenças com quantos gemidos acumulas riquezas? Como te parecerá justa, no dia do juízo, esta bela frase: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino preparado para vós desde a criação do mundo: porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, estava nu e me vestistes. (Mt 25,34-36).

Quanto terror para ti, quanto suor! Quais trevas te envolverão, se ouvires a condenação: Afastai-vos de mim, malditos, nas trevas exteriores, preparadas para o diabo e para os seus anjos: porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, estive nu e não me vestistes (Mt 25,41-42.30). Naquele momento não é julgado o ladrão, mas é condenado o egoísta.

Disse tudo quanto julgo útil. Se me deres razão, é evidente que, segundo as promessas, te são reservados tais bens; se, ao contrário, ignora-os, está escrita para ti a condenação, que te desejo não experimentá-Ia, para que tuas riquezas te sejam preço de resgate e tu estejas segu- ro de alcançar os bens celestes, por graça daquele que nos chamou todos ao seu Reino.

A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos.

Amém.

- Das Homílias sobre o Evangelho de São Lucas, por São Basílio (século IV)

16 de jan. de 2012

A oração de Jesus na Última Ceia


* catequese do Papa Bento XVI proferida na audiência geral de quarta-feira passada, 11 de Janeiro de 2012, sobre a Última Ceia. 

A Última Ceia, obra de Philippe de Champaigne em 1652. Atualmente no
Museu do Louvre.
Queridos irmãos e irmãs

No nosso caminho de reflexão sobre a prece de Jesus, apresentada nos Evangelhos, gostaria de meditar hoje sobre o momento, particularmente solene, da sua oração na Última Ceia.

O cenário temporal e emocional do banquete no qual Jesus se despede dos seus amigos é a iminência da sua morte, que Ele já sente próxima. Havia muito tempo que Jesus tinha começado a falar da sua paixão, procurando também empenhar cada vez mais os seus discípulos nesta perspectiva. O Evangelho segundo Marcos narra que desde o início da viagem rumo a Jerusalém, nos povoados da longínqua Cesareia de Filipe, Jesus começara a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias (Mc 8, 31). Além disso, precisamente nos dias em que se preparava para dizer adeus aos discípulos, a vida do povo estava marcada pela aproximação da Páscoa, ou seja, do memorial da libertação de Israel do Egipto. Esta libertação, experimentada no passado e esperada de novo no presente e para o futuro, era revivida nas celebrações familiares da Páscoa. A Última Ceia insere-se neste contexto, mas com uma novidade de fundo. Jesus olha para a sua Paixão, Morte e Ressurreição, plenamente consciente delas. Ele quer viver esta Ceia com os seus discípulos, com um caráter totalmente especial e diferente dos outros banquetes; é a sua Ceia, na qual oferece Algo de totalmente novo: Ele mesmo. Deste modo, Jesus celebra a sua Páscoa, antecipa a sua Cruz e a sua Ressurreição.

Esta novidade é-nos evidenciada pela cronologia da Última Ceia no Evangelho de João, que não a descreve como a ceia pascal, precisamente porque Jesus tenciona inaugurar algo de novo, celebrar a sua Páscoa, certamente vinculada aos acontecimentos do Êxodo. E para João, Jesus morreu na Cruz precisamente no momento em que, no templo de Jerusalém, eram imolados os cordeiros pascais.

Então, qual é o núcleo desta Ceia? São os gestos da fração do pão, da sua distribuição aos seus e da partilha do cálice do vinho, com as palavras que os acompanham e no contexto de oração em que se inserem: é a instituição da Eucaristia, é a grande oração de Jesus e da Igreja. Mas consideremos mais de perto este momento.

Antes de tudo, as tradições neotestamentárias da instituição da Eucaristia (cf. 1 Cor 11, 23-25; Lc22, 14-20; Mc 14, 22-25; Mt 26, 26-29), indicando a oração que introduz os gestos e as palavras de Jesus sobre o pão e o vinho, utilizam dois verbos paralelos e complementares. Paulo e Lucas falam de eucaristia/ação de graças: Tomou então o pão e, depois de dar graças, partiu-o e deu-lho (Lc 22, 19). Marcos e Mateus, ao contrário, sublinham o aspecto de eulogia/bênção: Tomou o pão e, depois de o benzer, partiu-o e deu-lho (Mc 14, 22). Ambos os termos gregos eucaristein eulogein remetem à berakha judaica, ou seja, para a grandiosa prece de ação de graças e de bênção da tradição de Israel, que inaugurava os grandes banquetes. Estas duas diferentes palavras gregas indicam as duas orientações intrínsecas e complementares desta oração. Com efeito, a berakha é antes de tudo ação de graças e louvor que se eleva a Deus pelo dom recebido: na Última Ceia de Jesus, trata-se do pão — feito com o trigo que Deus faz germinar e crescer da terra — e do vinho produzido pelo fruto amadurecido nas videiras. Esta oração de louvor e de acção de graças, que se eleva a Deus, retorna como bênção, que desce de Deus sobre o dom e o enriquece. Assim, a ação de graças e o louvor a Deus tornam-se bênção, e a oferenda doada a Deus volta para o homem abençoada pelo Todo-Poderoso. As palavras da instituição da Eucaristia inserem-se neste contexto de oração; nelas, o louvor e a bênção da berakha tornam-se bênção e transformação do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Jesus.

Antes das palavras da instituição há os gestos: o da fração do pão e o da oferta do vinho. Quem parte o pão e oferece o cálice é, antes de tudo, o chefe de família, que recebe à sua mesa os familiares, mas estes gestos são também os da hospitalidade, do acolhimento na comunhão convival do estrangeiro, que não faz parte da casa. Estes mesmos gestos, na ceia com a qual Jesus se despede dos seus, adquirem uma profundidade totalmente nova: Ele oferece um sinal visível do acolhimento à mesa em que Deus se doa. No pão e no vinho, Jesus oferece-se e comunica-se a Si mesmo.

Mas como pode realizar-se tudo isto? Como pode Jesus doar-se, naquele momento, a Si mesmo? Jesus sabe que a vida está prestes a ser-lhe tirada através do suplício da cruz, a pena capital dos homens não livres, aquela que Cícero definia a mors turpissima crucis. Com o dom do pão e do vinho, que oferece na Última Ceia, Jesus antecipa a sua morte e a sua ressurreição, realizando aquilo que já tinha dito no discurso do Bom Pastor: Dou a minha vida, para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira; sou Eu que a dou por Mim mesmo. Tenho poder para a dar e para tornar a tomá-la; este mandamento recebi de Meu Pai (Jo 10, 17-18). Por conseguinte, Ele oferece antecipadamente a vida que lhe será tirada, e deste modo transforma a sua morte violenta num gesto livre de doação de Si mesmo pelos outros e aos outros. A violência padecida transforma-se num sacrifício concreto, livre e redentor.

Mais uma vez na oração, começada segundo as formas rituais da tradição bíblica, Jesus mostra a sua identidade e a determinação a cumprir até ao fim a sua missão de amor total, de oferta em obediência à vontade do Pai. A profunda originalidade do dom de Si mesmo aos seus, através do memorial eucarístico, é o ápice da oração que distingue a ceia de adeus com os seus. Contemplando os gestos e as palavras de Jesus naquela noite, vemos claramente que a relação íntima e constante com o Pai é o lugar em que Ele realiza o gesto de transmitir aos seus, e a cada um de nós, o Sacramento do amor, o «Sacramentum caritatis». Por duas vezes, no cenáculo, ressoam estas palavras: Fazei isto em memória de Mim (1 Cor 11, 24.25). Com o dom de Si, Ele celebra a sua Páscoa, tornando-se o verdadeiro Cordeiro que leva a cumprimento todo o culto antigo. Por isso são Paulo, falando aos cristãos de Corinto, afirma: Cristo, nossa Páscoa [o nosso Cordeiro pascal!], foi imolado! Celebremos, pois, a festa... com o fermento da pureza e da verdade (1 Cor 5, 7-8).

O evangelista Lucas conservou um ulterior elemento precioso dos acontecimentos da Última Ceia, que nos permite ver a profundidade comovedora da oração de Jesus pelos seus naquela noite, a sua atenção por cada um. Começando a partir da oração de ação de graças e de bênção, Jesus chega ao dom eucarístico, à entrega de Si mesmo e, enquanto oferece a realidade sacramental decisiva, dirige-se a Pedro. No final da ceia, Ele diz: Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo; mas eu roguei por ti, para que a tua confiança não desfaleça; e tu, por tua vez, confirma os teus irmãos (Lc 22, 31-32). Quando se aproxima a provação também para os seus discípulos, a oração de Jesus sustenta a sua debilidade, a sua dificuldade de compreender que o caminho de Deus passa através do Mistério pascal de morte e ressurreição, antecipado na oferenda do pão e do vinho. A Eucaristia é alimento dos peregrinos, que se torna força também para aqueles que se sentem cansados, prostrados e desorientados. E a oração é particularmente para Pedro a fim de que, uma vez convertido, confirme os irmãos na fé. O evangelista Lucas recorda que foi precisamente o olhar de Jesus que procurou o rosto de Pedro no momento em que ele tinha acabado de consumir a sua tríplice negação, para lhe conferir a força de retomar o caminho no seu seguimento: E naquele mesmo instante, quando ainda falava, o galo cantou. Voltando-se, o Senhor olhou para Pedro. Então Pedro lembrou-se das palavras do Senhor (Lc 22, 60-61).

Caros irmãos e irmãs, participando na Eucaristia, vivamos de modo extraordinário a oração que Jesus recitou, e recita continuamente, por cada um a fim de que o mal, que todos nós encontramos na vida, não prevaleça, e para que em nós aja a força transformadora da morte e da ressurreição de Cristo. Na Eucaristia, a Igreja responde ao mandato de Jesus: Fazei isto em memória de mim\ (Lc 22, 19; cf. 1 Cor 11, 24-26); repete a oração de ação de graças e de bênção e, com ela, as palavras da transubstanciação do pão e do vinho no Corpo e Sangue do Senhor. As nossas Eucaristias consistem em sermos atraídos para aquele momento de oração, em unir-nos sempre de novo à oração de Jesus. Desde o início, a Igreja compreendeu as palavras de consagração como parte da prece recitada juntamente com Jesus; como uma parte central do louvor cheio de gratidão, através da qual o fruto da terra e do trabalho do homem nos é novamente oferecido por Deus como Corpo e Sangue de Jesus, como autodoação do próprio Deus no amor acolhedor do Filho (cf. Jesus de Nazaré, II, pag. 146). Participando na Eucaristia, alimentando-nos da Carne e do Sangue do Filho de Deus, unamos a nossa oração à prece do Cordeiro pascal na sua noite suprema, a fim de que a nossa vida não se perca, apesar da nossa debilidade e das nossas infidelidades, mas seja transformada.

Estimados amigos, peçamos ao Senhor que, depois de nos prepararmos devidamente, também com o Sacramento da Penitência, a nossa participação na sua Eucaristia, indispensável para a vida cristã, seja sempre o ponto mais elevado de toda a nossa oração. Peçamos que, profundamente unidos na sua própria oferenda ao Pai, possamos também nós transformar as nossas cruzes em sacrifício livre e responsável de amor a Deus e aos irmãos. Obrigado!

O sofrimento dos pobres e a estultície dos ricos


A bela cor do ouro te alegra extremamente, mas não pensas quantos e quais gemidos do indigente te acompanham.
Ícone da Igreja Ortodoxa - São Basílio

Como poderei pôr sob teus olhos os sofrimentos do pobre? Eles, olhando ao redor, vêem que não há ouro nem haverá jamais: os utensílios e as vestes, que costumam ser os bens dos pobres, são todos de valor insignificante. Que fará? Olha para os filhos e decide conduzi-los ao mercado para se livrar da morte. Imagina tu o conflito entre a miséria da fome e o sentimento paterno: a fome ameaça de morte deplorável, a natureza, ao invés, o induz a morrer juntamente com os filhos. Mais vezes se decide, mais vezes desiste: finalmente sucumbe oprimi- do pela necessidade e pela inelutável penúria.

Como raciocina o pai? "Quem venderei primeiro? Qual será preferido pelo mercador? Decidir-me-ei pelo primogênito? Mas sua idade me envergonha. Pelo mais jovem? Tenho muita compaixão pela sua juventude sem experiência das desgraças. Este conserva bem a fisionomia dos pais, aquele a boa inclinação para os estudos. Terrível angústia! Que será de mim? Qual deles irei ofender? De qual fera tomarei o coração? Como esquecerei a natureza? Se conservo a todos, vê-los-ei se consumir por este flagelo. Se não vendo um, com que olhos olharei aqueles que me restaram? Esses, doravante suspeitos, me considerarão traidor. Como habitarei em minha casa, priva- do pela minha culpa dos filhos? Como poderei me sentar a uma mesa posta com tal preço?"

Finalmente ele parte, chorando lágrimas quentes, para vender seu filho mais querido. A dor não te comove e não levas em consideração a sua natureza. A fome mantém prisioneiro o infeliz e tu temporizas e te fazes de surdo, agravando desse modo a dilaceração. Tu não só não sentes paralisar a mão ao aceitar o preço de tal infortúnio, mas ainda regateias sobre o preço; e disputas como, recebendo muito, poderias dar ainda menos, agravando ainda mais a desgraça do infeliz. Suas lágrimas não te comovem, seu gemido não amolece teu coração, ao contrário, permaneces inflexível e implacável. Em tudo e por tudo, só vês ouro: imaginas o ouro; dormindo, sonhas com ouro; desperto, o cobiças. Como quem está atacado pela febre não vê a realidade, mas delira por causa do mal, assim tua alma, possuída pela cobiça das riquezas, vê, em tudo, ouro e prata. A vista do ouro te é mais impor- tante do que a do sol. Fazes voto para que tudo se trans- forme em ouro para que possas obtê-lo.

Insaciável fome de ouro

O que não fazes pelo ouro? Para ti o trigo se torna ouro, o vinho se solidifica em ouro, a lã se transforma em ouro; todas as mercadorias, em suma, e todos os projetos te levam ao ouro. O ouro se reproduz por si mesmo, multiplicando-se com os lucros. E não estás jamais saciado e tuas ambições não têm limites.

Por vezes, condescendemos com as crianças gulosas permitindo que se fartem à vontade daquilo que dese- jam, para que a saciedade exagerada lhes provoque a náusea. Nada disso acontece com o ávaro; quanto mais se enche, mais deseja. "Quando vossa riqueza prospera, não ponhais nela vosso coração" (Sl 61,11).

Ó rico estulto (*como citado no Evangelho), ao contrário, seguras o que te escapa e fechas com muros os teus celeiros. Bloqueados, estagnados desta maneira, que coisa te fazem? Arrebentarão os obstáculos e, porque até agora trancado transbordarão com violência, arrasarão os teus armazéns, esvaziarão os celeiros, como se ali avançasse um inimigo. Não há garantia de que poderás reconstruí-los. De fato, muito mais depressa serás levado para outro lugar do que construídos aqueles celeiros, conforme seu projeto ambicioso. Ó rico, por teus pensamentos iníquos, terás um fim conveniente. 

Vós dai-me ouvidos: escancarai todas as portas dos depósitos, com toda a liberalidade, permiti que a riqueza saia livremente. Como um grande rio irriga e fecunda a terra por milhares de canais, assim dai livre curso às riquezas para que possam chegar à casa dos pobres. Os poços, donde se extrai com freqüência a água, jorram água mais fácil e copiosa; deixados sem uso, as águas se corrompem. Da mesma maneira, a riqueza trancada é inútil e prejudicial, mas a que se movimenta e passa de um a outro é benéfica para todos e frutuosa. 

Oh! quantos louvores receberão daqueles que foram beneficiados! Que tu não o desprezes! Que copiosa recompensa terás do justo juiz! Dela não duvides! De todos os lados vêm a teu encontro exemplos de ricos acusados diante do tribunal. Aqueles que guardam os bens que já possuem e se angustiam pelos futuros, sem saberem se estarão vivos no dia de amanhã; o amanhã lhes fará perder o hoje. Ainda não chegara nenhum suplicante, e ele já se antecipa com ferocidade. Não recolhera ainda os frutos, e ele já recebe a condenação pela avareza. A terra prometia seus frutos pondo à mostra a messe luxuriante: nos campos lavrados, anuncia-se abundante o trigo; muitos cachos se mostram nos sarmentos. Carregada de frutos, a oliveira se oferece, junto com todas as espécies de delícias. Inábil e estéril era aquele rico, porque, sem ter ainda alguma coisa, já augurava o mal aos necessitados. E, no entanto, quantos perigos antes da colheita! De fato, ora o granizo quebra, ora o calor ardente rouba das mãos, ora a chuva, fora do tempo, precipitando-se, estraga os frutos. Por que então não pedes ao Senhor que leve a termo o seu dom? Mas, apoderando-te dele antecipadamente, tu te tornas indigno de receber o prometido.

-- Das Homílias sobre o Evangelho de São Lucas, por São Basílio (século IV)

13 de jan. de 2012

Homília sobre a riqueza


Parábola do Homem Rico, por Rembrandt.

Dupla é a espécie da tentação: de um lado, as tribulações que põem à prova o coração como o ouro no crisol (cf. Sb 3,6) mostram quanto há nelas de bom na prática da paciência; de outro lado, a própria prosperidade da vida, que para a maior parte das pessoas se torna freqüentemente uma prova, dado que é igualmente difícil manter-se seguro o ânimo nas adversidades e não se deixar dominar pelo orgulho e pela arrogância no meio das dificuldades. Exemplo da primeira espécie de tentação é o grande Jó, campeão imbatível, que suportou os violentos assaltos do demônio, semelhantes ao ímpeto de uma torrente, com ânimo imperturbável e com propósito irremovível; e nas tentações tanto se mostrou superior, quanto maiores e árduas apareciam as lutas que em- preendeu com o adversário.

Das tentações que derivam da prosperidade da vida, temos muitíssimos exemplos: entre outros, aquele rico cuja história acabamos de ler. Este homem, além das riquezas que possuía, desejava ainda outras. A misericórdia de Deus, ao invés de condená-lo imediatamente por sua ingratidão, às riquezas de antes ajuntava sempre novas, querendo com isso convidá-lo a ser liberal e benigno, uma vez saciado abundantemente. As terras de um rico - diz, o Evangelho - deram uma abundante colheita. E ele refletia consigo mesmo: Que farei? Demolirei meus celeiros e construirei outros maiores (Lc 12,16-18).

Por que deram tão abundante colheita as terras daquele homem que, na abundância, não soubera tirar nenhum proveito? Para que melhor aparecesse a longanimidade de Deus, a bondade daquele que se estende também a este. Deus, de fato, "faz chover sobre justos e injustos e faz nascer o sol sobre os bons e os maus" (Mt 5,45). Tal bondade de Deus, porém, acumula sobre a cabeça dos maus maiores castigos. Ela faz cair a chuva sobre o campo cultivado por mãos avaras e dá o sol que aquece a semente e multiplica abundantemente os frutos.

A generosidade de Deus

Eis quanto provém de Deus: fertilidade do solo, condições atmosféricas propícias, abundância das sementes, a ajuda dos bois e outros elementos que contribuem para o incremento da agricultura.

E da parte do homem? Dureza de coração, misantropia e avareza: é dessa maneira que o homem agradece ao próprio benfeitor. Não se recordou da comunhão de natureza, não pensou que precisava dividir o supérfluo entre os indigentes, não levou em conta o mandamento: Não negues um benefício ao necessitado (Pr 3,27). A caridade e a confiança não te abandonem (Pr 3,3). Reparte o pão com o faminto (Is 58,7). Permaneceu surdo ao grito de todos os profetas e de todos os mestres.

A avareza do homem

Os celeiros, pequenos demais para abrigar tanta abundância, são destruídos, mas o coração avaro não estava satisfeito. Com o advento de novas riquezas às antigas e com os proventos de cada ano, aumentava a abundância. Estava o homem rico neste dilema, do qual não sabia como desembaraçar-se: não queria desfazer-se dos velhos, por avareza; não podia recolher o novo, por causa da abundância. Por isso, atormentava-se sem chegar a nenhuma conclusão: "Que farei?". Quem não se comoveria por um homem assim atormentado? Consternado pela prosperidade, é um mísero pelos bens que possui; mais mísero ainda pelos que viriam.

Se a terra não lhe produz os proventos, cai em gemidos constantes. Se se acumulam frutos abundantes? Aflições, penas, angústias cruéis! Lamenta-se como um pobre. Não exclama, talvez, da mesma maneira de quem está na indigência? "Que farei? O que comerei? Como me vestirei?".

Assim vai repetindo, em alta voz, o rico. Leva no coração o tormento, a ansiedade o aflige, porque aquilo que a outros torna alegres, consome pela preocupação o ávaro. A casa está abarrotada de tudo, porém, ele não se alegra. Pelo contrário, aqueles bens que afluem de todas as partes e que transbordam os celeiros torturam-lhe a alma por temor de que, escapando para fora alguma migalha, os necessitados possam se aproveitar delas. Parece-me que a paixão destes se assemelha à dos glutões, que preferem arrebentar-se pela voracidade antes que deixar alguma sobra aos necessitados.

O homem é administrador dos dons divinos

Reconhece, ó homem, o teu doador. Recorda-te de ti mesmo: quem sou, que coisa administra, de quem recebeste, porque foste preferido entre muitos. És servidor da bondade de Deus, administrador dos teus companheiros de servidão. Não creias que tudo seja destinado a teu ventre. Considera os bens que estão nas tuas mãos como coisa de outros: por breve tempo alegram-te, depois deslizam e desaparecem rapidamente; àeles deverás prestar contas pormenorizadas.

Embora tenhas tudo bem fechado com portas trancadas, amarrado e selado, todavia, as preocupações te impedem o sono. Ruminas dentro de ti, estulto conselheiro de ti mesmo: "Que farei?". Seria, ao invés, ocasião de dizer: saciarei quem tem fome, abrirei meus celeiros e chamarei todos os indigentes. Imitarei o benéfico edito de José: Quantos não tenham pão, vinde a mim; tome cada um o suficiente do dom concedido por Deus, como de uma fonte comum (Gn 47,13-26).

Por que não és assim também tu? Tens medo de que outros tirem proveito destes bens e, ruminando na alma sentimentos maus, meditas, não tanto como distribuir a cada um segundo a necessidade, mas como ajuntar ainda mais bens e tirar de todos os proventos para ti.

Já haviam chegado aqueles que lhe pediriam a alma (Lc 12,20) e ele confabulava consigo sobre alimentação; naquela mesma noite o levariam deste mundo e ele fantasiava gozar ainda por muitos anos. Foi-lhe deixado desejar tudo, expressar seu pensamento, para que seu propósito sofresse a sentença que merecia.

Exortação aos ricos

Toma cuidado para que não te aconteça o mesmo! Estas coisas foram escritas para que evitemos semelhante destino.

Imita a terra, ó homem, e produz frutos à sua semelhança: não sejas pior que a criatura inanimada. A terra produz frutos não para o proveito próprio, antes para tua sustentação. Tu, no entanto, qualquer fruto de bondade que produzires, recolherás para teu proveito, dado que o mérito das boas obras se reverte para os doadores. Deste ao faminto? O dom se volta para ti e te é restituído com juros. Como o trigo lançado à terra transforma-se em lucro para aquele que o semeou, assim o pão dado ao faminto te renderá, a seu tempo, lucro abundante. Põe fim, pois, ao cultivo dos campos e começa a semear para o céu, porque está escrito: Semeai para vós sementes de justiça (Os 10,12).

A generosidade é uma glória para o homem

Muito melhor um nome bom que grandes riquezas (Pr 22,1). Se, pois, as riquezas te parecerem uma grande coisa pela honra que delas deriva, reflete quanto é mais vantajosamente honrável ser chamado pai de inumeráveis filhos do que ter dinheiro na bolsa. Esta a deixarás aqui, quer queiras quer não; ao invés, a honra conquistada com as boas obras a levarás contigo à face do Senhor, quando todo o povo reunido em torno de ti diante do juiz comum te aclamará provedor, benfeitor e te dará todos os títulos da caridade. Não vês aqueles que gastam o dinheiro nos teatros, nos pugilatos, nas cenas burlescas, nas lutas com as feras -gente que ninguém deveria olhar no rosto? -e tu és tão mesquinho em distribuir, enquanto uma glória bem mais elevada te espera? Deus saberá te acolher, os anjos te louvarão, os homens, todos quantos existiram desde a criação, te aclamarão bem-aventurado. Uma glória eterna, uma coroa de justiça, o reino dos céus serão para ti o prêmio pela distribuição destes bens caducos. Não mais te ocuparás com eles: substitui o empenho pelos bens presentes, por aqueles que esperamos. Coragem, pois! Dispõe generosamente das tuas riquezas, sê ambicioso e generoso no dispensar a quem tem necessidade. Que se possa dizer de ti: É generoso, distribui de boa vontade aos pobres, a sua justiça permanece para sempre (Sl 111,9). Não vendas a preço muito alto aproveitando da necessidade, não esperes a carestia para abrir os celeiros, porque o povo maldiz quem retém o trigo (Pr 11,26). Não socorrer os famintos por causa do ouro, nem a penúria geral para poderes estar na abundância é inadmissível; não te faças desfrutador das desgraças humanas. Não faças da ira de Deus uma ocasião para aumentar tuas riquezas. Não tornes mais dolorosas as chagas de quem foi golpeado pelos flagelos.

Tu, ao invés, fixas os olhos no ouro, mas não olhas em face o irmão. Sabes reconhecer a marca da moeda e distinguir a falsa da verdadeira, porém ignoras completamente o irmão necessitado.

-- Das Homílias sobre o Evangelho de São Lucas, por São Basílio (século IV)

11 de jan. de 2012

A manifestação do Filho é o conhecimento do Pai


Santíssima Trindade, pintado por Alcario Otero em 2001.

Ninguém pode conhecer o Pai sem o Verbo de Deus, isto é, sem o Filho que o revela. Também não se conhece o Filho sem a vontade do Pai. O Filho faz a vontade do Pai, pois o Pai o envia. O Filho é enviado e vem a nós. Assim o Pai, que é para nós invisível e incognoscível, torna-se conhecido por seu próprio Verbo. Ora, só o Pai conhece seu Verbo, como o manifestou o Senhor. Por isto o Filho nos leva ao conhecimento do Pai mediante a sua própria encarnação. Com efeito, a manifestação do Filho é o conhecimento do Pai. Na verdade, tudo nos é revelado pelo Verbo.

O Pai revelou o Filho para se dar a conhecer a todos por meio dele. Mais ainda: a fim de acolher, em toda justiça, para a ressurreição eterna, os que nele crêem. Crer nele é viver segundo sua vontade.

De fato, o Verbo já revela o Deus criador pela própria criação; pelo mundo, o Senhor que o construiu; pela criatura plasmada, o artífice que a plasmou; e pelo Filho, o Pai que o gerou. Destas coisas todos falam do mesmo modo, mas não crêem todos do mesmo modo. Pela lei e os profetas, o Verbo, igualmente, anunciava-se a si e ao Pai. Todo o povo do mesmo modo o ouviu, mas não creram todos do mesmo modo. Pelo Verbo, tornado visível e palpável, o Pai se revelou, embora nem todos cressem nele do mesmo modo. Todos, porém, viram o Pai no Filho. A realidade invisível que se manifestava no Filho era o Pai, e a realidade visível na qual o Pai se revelou era o Filho.

O Filho tudo perfaz do princípio ao fim para o Pai, e sem ele ninguém pode conhecer a Deus. O conhecimento do Pai é o Filho. O conhecimento do Filho pertence ao Pai e é revelado pelo Filho. Por este motivo, o Senhor dizia: Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai; nem o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho revelar. Revelar não se refere apenas ao futuro como se o Verbo só tivesse começado a revelar o Pai quando nasceu de Maria. De fato, o Verbo se encontra universalmente e em todo o tempo. No início, sendo o Filho presente à sua criatura, ele revela o Pai a todos a quem o Pai quer, quando quer e como quer. Em tudo e por tudo, há um só Deus, o Pai, e um só Verbo, o Filho, e um só Espírito e uma única salvação para todos os que nele crêem.

-- Do Tratado contra as heresias, de Santo Irineu, bispo (século I)

6 de jan. de 2012

Que Deus pacifique os vossos corações.

* Texto publicado as vésperas da festa de São Raimundo, celebrada em 7 de Janeiro. 

São Raimundo de Penyafort (1175-1275) é o padroeiro dos
advogados canônicos, por ter organizado o Direito Canônico a
pedido do Papa Gregório IX.
Se todos os que quiserem levar uma vida fervorosa em Cristo Jesus serão perseguidos (2Tm 3,12), como afirma com toda sinceridade aquele Apóstolo que é chamado "pregador da verdade", a meu ver, ninguém está excluído desta norma geral, senão quem negligencia ou não sabe viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade (Tt 2,12).

Longe de vós serdes contados entre aqueles cujas casas estão em paz, tranquilas e seguras, sem que a mão do Senhor pese sobre eles; e que, depois de passarem agradavelmente os seus dias são, de repente, precipitados no inferno.

Vossa pureza e piedade merecem e exigem - já que sois aceitos e queridos por Deus - que esta pureza seja aprimorada por meio de repetidas provações até atingir a mais total sinceridade. Por conseguinte, se às vezes uma espada se duplica ou triplica sobre vós, deveis recebê-la com toda alegria, como sinal de amor.

A espada de dois gumes são os combates por fora e os temores por dentro. Ela se duplica ou triplica interiormente quando o espírito do mal inqueita o íntimo do coração com enganos e seduções. Mas vós conheceis muito bem este gênero de combates; de outra forma não teria sido possível conseguir esta perfeita paz e tranquilidade interior.

A espada se duplica ou triplica por fora quando, sem motivo, surge uma perseguição eclesiástica de assuntos espirituais; aqui as feridas são mais dolorosas porque vêm de amigos.

Esta é a desejável e bem-aventurada cruz de Cristo que o corajoso Santo André abraçou com alegria; segundo as palavras do Apóstolo chamado "instrumento escolhido", é somente nela que devemos nos gloriar.

Olhai, portanto, para Jesus, autor e consumador da fé (Hb 12,2); embora sendo inocente, padeceu por parte dos seus e foi contado entre os malfeitores (Is 53,12). Bebendo o cálice do Senhor Jesus, dai graças a Deus, doador de todos os bens.

Que este mesmo Deus do amor e da paz pacifique os nossos corações e apresse o vosso caminhar. Esconda-vos por enquanto, até vos introduzir e estabelecer naquela plenitude onde vivereis eternamente na beleza da paz, em morada segura e no repouso da abundância.

-- De uma carta de São Raimundo de Penyafort, presbítero (século XIII)

3 de jan. de 2012

Carta Apostólica Patres Ecclesiae - Os Padres da Igreja

Acabamos de publicar uma Epístola muito interessante  do Papa João Paulo II sobre Sào Basílio e os padres do deserto. O texto é longo, mas importante lê-lo. Como diz o Santo Papa, "os santos padres são estrutura estável da Igreja, e, em favor da Igreja de todos os séculos, exercem uma função perene". E "guiada por estas certezas, a Igreja não se cansa de voltar à leitura dos seus escritos — cheios de sabedoria e incapazes de velhice — nem se cansa de os recordar continuamente." "E maior ainda é a nossa alegria quando especiais circunstâncias convidam a encontrarmo-nos com eles de modo mais prolongado e profundo."

E é de uma destas circunstâncias especiais que recuperamos este texto, pois em 2 de Janeiro festejamos São Basílio. Obviamente esta data nos inspirou a pesquisar um pouco outras referências e encontramos esta carta apostólica.

Além disso, a epístola como que explica nossa motivação em manter este blog: divulgar textos fundamentais para a Igreja, desconhecidos da maioria dos fiéis. Exatamente porque estes textos tem uma função perene na Igreja. Como dizia minha catequista, há gente que sabe a escalação do time do Corinthians campeão paulista 50 atrás, mas acha que a Igreja deve se modernizar. Como se fizesse sentido construir a casa sem ter fundações confiáveis. Os Santos Padres são parte destas fundações.

A aproveitando a ocasião, quem encontrou este texto foi o Felipe Costa, novo colaborador deste blog. 

Carta Apostólica Patres Ecclesiae - Os Padres da Igreja


CARTA APOSTÓLICA
PATRES ECCLESIAE
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
NO XVI CENTENÁRIO DE SÃO BASÍLIO



Veneráveis Irmãos e diletos Filhos, saúde e Bênção Apostólica


I. Introdução

PADRES DA IGREJA são chamados com razão aqueles santos que, com a força da fé, a profundidade e riqueza dos seus ensinamentos, durante os primeiros séculos a geraram e formaram.

Na verdade; foram "padres" ou pais da Igreja porque deles, mediante o Evangelho, recebeu ela a vida (1 Cor 4, 15). E também seus construtores, porque deles — sobre o fundamento único colocado pelos Apóstolos, que é Cristo (1 Cor 3, 11) -  a Igreja de Deus foi edificada nas suas estruturas fundamentais.

Da vida recebida dos seus pais ainda hoje vive a Igreja; e sobre as estruturas postas pelos seus primeiros construtores ainda hoje é edificada, na alegria e na pena do seu caminho e do seu trabalho quotidiano.

Padres ou pais foram, e pais continuam a ser para sempre: eles mesmos, de fato, são estrutura estável da Igreja, e, em favor da Igreja de todos os séculos, exercem uma função perene. De maneira que todo o anúncio e magistério seguinte, se quer ser autêntico, deve pôr-se em confronto com o anúncio e o magistério deles; todo o carisma e todo o ministério deve beber na fonte vital da paternidade deles; e toda a pedra nova, acrescentada ao edifício santo que todos os dias cresce e se amplifica (Ef 2,21), deve colocar-se nas estruturas já por eles postas e a elas soldar-se e ligar-se.

Guiada por estas certezas, a Igreja não se cansa de voltar à leitura dos seus escritos — cheios de sabedoria e incapazes de velhice — nem se cansa de os recordar continuamente. É pois com grande alegria que no decurso do ano litúrgico sempre tornamos a encontrar de novo os nossos pais: e todas as vezes somos por eles confirmados na fé e animados na esperança.

E maior ainda é a nossa alegria quando especiais circunstâncias convidam a encontrarmo-nos com eles de modo mais prolongado e profundo. De tal natureza é precisamente a circunstância deste ano, que assinala o XVI centenário do trânsito do nosso padre Basílio, Bispo de Cesareia.

II. A vida e o ministério de São Basílio

A Missa de São Basílio,
de Pierre de Subleyras.
Entre os padres gregos chamado "grande", nos textos litúrgicos bizantinos Basílio é invocado como "luz da piedade" e "luminar da Igreja". Iluminou-a, de fato, e ainda a ilumina: não menos pela "pureza da sua vida" que pela excelência da doutrina. Porque o primeiro e maior ensinamento dos santos é bem certo que está na vida que tiveram.

Nascido numa família de santos, Basílio teve ainda o privilégio duma educação esmerada, recebida dos mestres de maior reputação de Constantinopla e Atenas.

Mas a ele pareceu-lhe que a vida começou verdadeiramente só quando, de modo pleno e determinante, lhe foi dado conhecer Cristo como seu Senhor: isto é, quando, atraído irresistivelmente por Ele, praticou o desapego radical que tanto viria depois a inculcar no ensino, e se tornou Seu discípulo.

Colocou-se então no seguimento de Cristo, querendo só conformar-se com Ele: olhando para Ele só, ouvindo-O só a Ele, e em tudo e por tudo considerando-O seu único "soberano, rei, médico e mestre de verdade". Sem hesitar, abandonou portanto aqueles estudos, apesar de os ter amado tanto e deles ter tirado imensos tesouros de ciência: Tendo na verdade decidido servir a Deus unicamente, já não quis saber nada senão de Cristo (1 Cor 2. 2), e julgou vaidade toda a sabedoria que não fosse a da cruz. São palavras suas com que, já ao caminhar para o termo da vida, evocava o acontecimento da sua conversão: "Eu tinha desperdiçado muito tempo nas vaidades, perdendo quase toda a minha juventude no trabalho vão a que me aplicava para assimilar os ensinamentos daquela sabedoria que Deus tornou loucura (1 Cor 1, 20); até que um dia, como despertando dum sono profundo, olhei para a admirável luz da verdade do Evangelho, e considerei a inutilidade da sabedoria dos príncipes deste mundo que estão reduzidos à impotência (1 Cor 2, 6). Então muito chorei a minha miserável vida.

Chorou a sua vida, embora ele já antes — segundo o testemunho de Gregório Nazianzeno, seu companheiro de estudos — fosse humanamente exemplar: pareceu-lhe ela todavia "miserável", porque não era de modo total e exclusivo consagrada a Deus, que é o Senhor único.

Com indomável impaciência, interrompeu pois os estudos começados e, abandonando os mestres da sabedoria helénica, "atravessou muitas terras e muitos mares" à procura doutros mestres: aqueles "estultos" e aqueles pobres que nos desertos se exercitavam em bem diversa sabedoria.

Começou assim a aprender coisas que nunca tinham subido ao coração do homem, verdades que os retóricos e os filósofos nunca lhe poderiam ensinar (1 Cor 2, 9). E nesta sabedoria nova cresceu em seguida de dia para dia, num maravilhoso itinerário de graça: mediante a oração, a mortificação o exercício da caridade, o ininterrupto contacto com as sagradas Escrituras e os ensinamentos dos Padres. Bem depressa foi chamado ao ministério:

Mas também no serviço das almas, com prudente equilíbrio soube juntar a pregação infatigável com períodos de solidão e longa entrega à oração. Considerava, com efeito, que isto era de necessidade inderrogável para a "purificação da alma", e depois para que o anúncio da oração fosse confirmado sempre pelo "evidente exemplo" da vida.

Assim se tornou pastor e foi ao mesmo tempo, no sentido mais substancial do termo, monge; mais, foi sem dúvida dos maiores monges-pastores da Igreja: figura singularmente completa de Bispo, e grande promotor e legislador do monaquismo.

Enriquecido com a experiência pessoal, Basílio contribuiu muito para a formação de comunidades de cristãos totalmente consagrados ao "divino serviço", e tomou sobre si o compromisso e a fadiga de mantê-las com frequentes visitas: para edificação sua e delas, demorando-se com as mesmas em admiráveis colóquios, muitos dos quais, por graça de Deus, nos foram transmitidos por escrito. Em tais documentos vieram inspirar-se vários legisladores do monaquismo, não sendo o último o próprio São Bento, que tem Basílio, por seu mestre; nestes escritos — directamente ou indirectamente conhecidos — se inspirou a maior parte daqueles que, no Oriente como no Ocidente, abraçaram a vida monástica.

Por isso julgam muitos que aquela estrutura capilar da vida da Igreja que é o monaquismo, foi estabelecida, para todos os séculos, principalmente por São Basílio; ou que, pelo menos, não se definiu na sua natureza mais própria sem o seu contributo decisivo.

Basílio muito teve que sofrer com os males de que gemia, naquela hora difícil, o povo de Deus. Denunciou-os com franqueza e, com lucidez e amor indicou as causas de que vinham, para se entregar corajosamente a uma vasta operação de reforma. Quer dizer, à obra — para ser continuada em todos os tempos, para ser renovada em todas as gerações — destinada a reconduzir a Igreja do Senhor, "pela qual morreu Cristo e sobre a qual derramou abundantemente o Seu Espírito", à sua forma primitiva: àquela imagem normativa, bela e pura, que nos transmitem a palavra de Cristo e os Atos  dos Apóstolos. Quantas vezes não recorda Basílio, com paixão e saudade construtiva, o tempo em que "a multidão dos crentes era um só coração e uma só alma"!.

O seu esforço de reforma dirigiu-se ao mesmo tempo, com harmonia e complementaridade, praticamente a todos os aspectos e circunstâncias , da vida cristã. Pela natureza mesma do seu ministério, o Bispo é antes de tudo pontífice do seu povo; e o povo de Deus é primeiro que tudo povo sacerdotal.

Não pode portanto dalgum modo descuidar a liturgia — a sua força e riqueza, a sua beleza e a sua "verdade" — um Bispo verdadeiramente solícito do bem da Igreja. Mais ainda, na obra pastoral, o empenho em favor da liturgia está logicamente no vértice de tudo e concretamente acima de qualquer outra opção: a liturgia, de facto — como recorda o Concílio Vaticano II — é "simultaneamente a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte donde promana toda a sua força", de maneira que "nenhuma outra acção da Igreja lhe iguala a eficácia".

Disto se mostrou perfeitamente consciente Basílio: e o "legislador de monges" soube ser também esclarecido "reformador litúrgico". Da sua obra neste campo conserva-se, herança preciosíssima para a Igreja de todos os tempos, a anáfora que legitimamente tem o seu nome: a grande oração eucarística que, por ele refundida e enriquecida, é belíssima entre as mais belas.

Não só isso: até a ordenação fundamental da prece salmódica teve nele um dos maiores inspiradores: e executores. Assim, principalmente pelo impulso a ele devido, a salmodia — "incenso espiritual", respiração e conforto do povo de Deus — foi muitíssimo apreciada na sua Igreja pelos fiéis, e tornou-se conhecida dos pequenos como dos adultos, dos doutos  como dos incultos. Como refere o mesmo Basílio: "Ao nosso lado o povo levanta-se de noite para ir à casa da oração... e passa a noite alternando salmos e orações". Os salmos, que nas igrejas ribombavam como trovões, ouviam-se ressoar também nas casas e nas praças. Basílio amou com amor exclusivo a Igreja (2 Cor 11, 2): e sabendo que a virgindade dela é a sua mesma fé da pureza desta fé foi guarda vigilantissimo.

Por isso julgou obrigação sua e soube combater com coragem: não contra "homens, mas contra qualquer adulteração da palavra de Deus" (2 Cor 2, 17), qualquer falsificação da verdade, qualquer desfalque do depósito santo (1 Tim 6, 20; 2 Tim 1, 14) transmitido pelos Padres. O seu ímpeto nada tinha de passional: era força de amor; e a sua clareza nada de caprichoso: era delicadeza de amor.

Assim, do princípio ao fim do seu ministério combateu para salvaguardar intacto o sentido da fórmula de Niceia quanto à divindade de Cristo "consubstancial" ao Pai; e combateu igualmente para que não fosse diminuída a glória do Espírito que, "fazendo parte da Trindade e sendo da divina e bem-aventurada natureza dela", deve ser com o Pai e o Filho connumerado e conglorificado.
Ícone dos Três Santos Patriarcas: São Basílio (esquerda), São João
Crisóstomo (centro) e São Gregório Teólogo (direita)

Com firmeza e expondo-se em pessoa a perigos gravíssimos, vigiou e combateu também pela liberdade da Igreja: como verdadeiro Bispo, não hesitando em defrontar os soberanos para defender o direito, seu e do povo de Deus, a professar a verdade  e a obedecer ao Evangelho. O Nazianzeno, que refere um episódio saliente desta luta, bem faz compreender que o segredo da força de Basílio não estava senão na simplicidade mesma do seu anúncio, na clareza do seu testemunho e na desarmada majestade da sua dignidade sacerdotal.

Não menor severidade de que defrontando heresias e tiranos, mostrou Basílio contra equívocos e abusos no interior da Igreja: particularmente, contra a mundanização e o apego aos bens da terra. A movê-lo estava, ainda e sempre, o mesmo amor à verdade e ao Evangelho; embora de modo diverso, era afinal sempre o Evangelho, com efeito, que era negado e opugnado: ou pelo erro dos heresiarcas ou pelo egoísmo dos ricos.

A este respeito são dignos de memória, e mantêm-se como exemplo, os textos dalguns discursos seus: "Vende o que tens e dá-o aos pobres (Mt 19, 22);... porque, ainda que não tenhas matado ou cometido adultério ou roubado ou dito falsos testemunhos, isto não te serve de nada se não fizeste também o resto: só deste modo poderás entrar no reino de Deus". Quem, de facto, segundo o mandamento de Deus, quer amar o próximo como a si mesmo (Lv 19, 18; Mt 19, 19), "não deve possuir nada mais do que possui o seu próximo".

E de modo ainda mais apaixonado exortava, em tempo de carestia, os cristãos "a que não se mostrassem mais cruéis que os animais,... metendo no próprio seio o que é comum e possuindo sozinhos o que é de todos".

Radicalismo desconcertante e belíssimo, e enérgico apelo à Igreja de todos os tempos a confrontar-se com o Evangelho seriamente.

Ao Evangelho, que preceitua o amor e o serviço dos pobres, não só com estas palavras deu testemunho Basílio, mas também com obras imensas de caridade: como a construção, às portas de Cesareia, dum gigantesco hospício para os necessitados: verdadeira cidade da misericórdia, que dele tomou o nome de Basilíade, ela também momento autêntico do único anúncio evangélico.

Foi o mesmo amor a Cristo e ao seu Evangelho aquilo que tanto o fez sofrer com as divisões da Igreja, e com tanta perseverança, esperando contra spem, lhe fez procurar, com todas as Igrejas, comunhão mais eficaz e manifesta.

É a verdade mesma do Evangelho, com efeito, que é obscurecida pela discórdia dos cristãos e é o próprio Cristo que é por ela dilacerado (1 Cor 1, 13). A divisão dos crentes contradiz o poder do batismo único (Ef 4, 4), que nos faz em Cristo uma coisa só, até mesmo uma única pessoa mística (Gál 3, 28); contradiz a soberania de Cristo, rei único a que todos devem igualmente estar sujeitos; contradiz a autoridade e a força unificante da palavra de Deus, única lei a que todos os crentes devem concordemente obedecer.

A divisão das Igrejas é portanto um facto tão clara e directamente anticristológico e antibíblico que, segundo Basílio, o caminho para a recomposição da unidade pode ser unicamente a reconversão de todos a Cristo e à Sua palavra.

No multiforme exercício do seu ministério fez-se portanto Basílio, como prescrevia para todos os anunciadores da palavra, "apóstolo e ministro de Cristo, administrador dos mistérios de Deus, arauto do Reino, modelo e regra de piedade, olhar do corpo da Igreja, pastor das ovelhas de Cristo, médico compadecido, pai e ama, cooperador de Deus, agricultor de Deus e construtor do templo de Deus". 

E em tal obra e tal luta — árdua, dolorosa e sem tréguas — ofereceu Basílio a sua vida e consurpiu-se em holocausto. Morreu com menos de cinquenta anos, gasto pelas fadigas e pela ascese.

III. O magistério de São Basílio

Ícone de São Basílio
Depois de assim recordar brevemente aspectos marcantes da vida de Basílio e do esforço de cristão e de Bispo, parece razoável tentar haurir, da riquíssima herança dos seus escritos, pelo menos algumas indicações mais importantes. Entrarmos de novo na sua escola poderá dar luz para melhor enfrentarmos os problemas e as dificuldades deste nosso tempo, e portanto ajudar-nos para o nosso presente e para o nosso futuro.

Não se julgue abstracto começarmos por aquilo que ele ensinou a respeito da Santíssima Trindade: é mesmo certo que não pode haver princípio melhor, pelo menos se nos queremos ajustar ao seu pensamento.

Por outro lado, qual é a realidade que mais se pode impor ou ser mais normativa para a vida que o mistério da vida mesma de Deus? Pode haver ponto de referência mais significativo e vital que este, para o homem?
Para o homem novo, que é conformado a este mistério na estrutura íntima do próprio ser e do próprio existir; e para cada homem, saiba-o ou não: porque não há ninguém que não tenha sido criado por Cristo, o Verbo eterno, e não há ninguém que não seja chamado, pelo Espírito e no Espírito, a glorificar o Pai.

É o mistério primordial, a Trindade santa: pois não é outra coisa senão o mistério mesmo de Deus, do único Deus vivo e verdadeiro.

Deste mistério, proclama Basílio com firmeza a realidade: a tríade dos nomes divinos, diz, indica sem dúvida três hipóstases distintas. Mas com não menor firmeza confessa a absoluta inacessibilidade do mistério.
Quanto era lúcida nele, teólogo sumo, a consciência da enfermidade e a improporção de qualquer teologar!
Ninguém, dizia, é capaz de teologar de modo digno, e a grandeza do mistério ultrapassa qualquer exposição, de maneira que nem sequer as línguas dos anjos o podem atingir.

Realidade abissal e imperscrutável, portanto, o Deus vivo! Apesar disso, Basílio sabe que "deve" falar d'Ele, antes e mais de qualquer outra coisa. E assim, crendo, fala (2 Cor 4, 13): por força irreprimível do amor, por obediência ao mandato de Deus e para edificação da Igreja, que não cansa nunca de ouvir tais coisas".

Mas é talvez mais exacto dizer que Basílio, como verdadeiro "teólogo", mais que falar deste mistério, o canta.

Canta o Pai: "o princípio de tudo, a causa do ser daquilo que existe, a raiz dos viventes", e sobretudo "pai de nosso Senhor Jesus Cristo". E como o Pai está primariamente em relação com o Filho, assim o Filho — o Verbo que se fez carne no seio de Maria — está primariamente em relação com o Pai.

Assim pois, O contempla e canta Basílio: na "luz inacessível", no "poder inefável", na "grandeza infinita", na "glória superesplendente" do mistério trinitário, Deus de Deus, "imagem da bondade do Pai e selo de forma igual a Ele". Só deste modo, confessando sem ambiguidades Cristo como "Um da santíssima Trindade", Basílio pode vê-1'O depois com pleno realismo no aniquilamento da Sua humanidade. E como poucas outras pessoas sabe levar a que se meça o infinito espaço que Ele percorreu à nossa procura; como poucos sabe levar a que se perscrute no abismo da humilhação d'Aquele que "estando na condição de Deus, se esvaziou a Si mesmo tomando a condição de servo" (Fil 2, 6s).

No ensinamento de Basílio, a Cristologia da glória em nada atenua a Cristologia da humilhação: pelo contrário, serve para proclamar, com energia ainda maior, aquele conteúdo central do Evangelho que é a palavra da cruz (1 Cor 1, 18) e o escândalo da cruz (Gál 5, 11).

Este é, de fato, esquema habitual da sua exposição cristológica: é a luz da glória que revela o sentido do abaixamento.

A obediência de Cristo é verdadeiro "evangelho", quer dizer, realização paradoxal do amor redentor de Deus, exactamente porque — e apenas se — quem obedece é "o Filho Unigénito de Deus, o Senhor e Deus nosso, aquele mediante o qual todas as coisas foram feitas"; e é assim que a obediência d'Ele pode dobrar a nossa obstinada desobediência. Os sofrimentos de Cristo, cordeiro imaculado que não abriu a boca contra quem lhe batia (Is 53, 7), possuem alcance infinito e valor eterno e universal, exatamente por Aquele que assim sofreu ser "o Criador e Soberano do céu e da terra, adorável acima de toda a criatura espiritual ou sensível, Aquele que tudo sustenta com a palavra do Seu poder" (Heb 1, 3,) e é assim que a paixão de Cristo domina a nossa violência e aplaca a nossa ira.

A cruz, por fim, é verdadeiramente a nossa "única esperança" — não vencida portanto, mas acontecimento salvífico, "exaltação" (Jo 8, 32 s) e triunfo estupendo — só por Aquele, que nela esteve pregado e nela morreu, ser "o Senhor nosso e de todos" (At 10, 36), "Aquele mediante quem foram feitas todas as coisas, visíveis e invisíveis, aquele que possui a vida como a possui o Pai que Lha deu, Aquele que do Pai recebeu todo o poder"; e é assim que a morte de Cristo nos liberta daquele "temor da morte" do qual todos éramos escravos (Heb 2, 15).

"D'Ele, Cristo, brilhou o Espírito Santo: o Espírito da verdade, o dom da adopção filial, o penhor da herança futura, a primícia dos bens eternos, o poder vivificante, a fonte da santificação, de que toda a criatura racional e intelectual recebe o poder de prestar culto ao Pai e elevar a Ele a doxologia eterna".

Este hino da Anáfora de Basílio exprime bem e sinteticamente o papel do Espírito Santo na economia salvífica. É o Espírito que, dado a cada baptizado, em cada um opera carismas e a cada um recorda os ensinamentos do Senhor; é o Espírito que anima a Igreja inteira, a ordena e vivifica com os seus dons fazendo dela um corpo completo "espiritual" e carismático.

Daqui subia Basílio à serena contemplação da "glória" do Espírito, misteriosa e inacessível: confessando-O, acima de toda a criatura, Soberano e Senhor, uma vez que por Ele somos divinizados, e Santo por essência, uma vez que por Ele somos santificados. Tendo assim contribuído para a formulação da fé trinitária da Igreja, Basílio fala ainda hoje ao seu coração e consola-a, particularmente com a luminosa confissão do seu Consolador.

A luz fulgurante do mistério trinitário de maneira nenhuma deixa na sombra a glória do homem: pelo contrário, exalta-a e revela-a o mais possível.

O homem, de fato, não é rival de Deus, loucamente oposto a Ele; e não está sem Deus, abandonado ao desespero da própria solidão. Mas é reflexo de Deus e Sua imagem.

Por isso, quanto mais resplandece Deus, tanto mais no homem reverbera a Sua luz; quanto mais é exaltado Deus, tanto mais é elevada a dignidade do homem.

E deste modo, na verdade, Basílio celebrou a dignidade do homem: vendo-a toda em relação com Deus, quer dizer, derivada d'Ele e tendo-O a Ele por fim.

Essencialmente para conhecer a Deus recebeu o homem a inteligência, e para viver em conformidade com a Sua lei recebeu a liberdade. E é somente enquanto imagem de Deus que o homem transcende toda a ordem da natureza e aparece "mais glorioso que o céu, mais que o sol, mais que os coros dos astros: qual céu, de fato, é chamado imagem de Deus altíssimo?".

Precisamente por isto, a glória do homem está radicalmente condicionada com a sua relação com Deus: o homem consegue em plenitude a sua dignidade "real" só realizando-se enquanto imagem, e torna-se verdadeiramente ele próprio só conhecendo e amando Aquele pelo qual tem a razão e a liberdade.

Já antes de Basílio, assim se exprimia admiravelmente Santo Ireneu: "A glória de Deus é o homem vivo; mas a vida do homem é a visão de Deus". O homem vivo é em si mesmo glorificação de Deus, enquanto raio da Sua beleza; mas não tem "vida" senão recebendo-a de Deus, na relação pessoal com Ele. Falir nesta missão significaria para o homem atraiçoar a própria vocação essencial, e portanto negar e aviltar a própria dignidade.

E que outra coisa é o pecado senão isto? O próprio Cristo, de facto, não veio acaso para restaurar e restituir a sua glória a esta imagem de Deus que é o homem, ou seja, à imagem que o homem, com o pecado, tinha ofuscado, corrompido e quebrado?.

Exactamente para isto — afirma Basílio com as palavras da Escritura — "o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1, 14), e "tanto se humilhou a si mesmo a ponto de fazer-se obediente até à morte, e morte de cruz". Por isso, ó homem, "dá-te conta da tua grandeza considerando o preço que custaste: olha para o preço do teu resgate, e compreende a tua dignidade!".

A dignidade do homem está, portanto, ao mesmo tempo no mistério de Deus e no mistério da cruz: é este o "humanismo" de Basílio, ou — poderemos dizer mais simplesmente — o humanismo cristão.

O restauro da imagem só pode portanto realizar-se em virtude da cruz de Cristo: "Foi a Sua obediência até à morte que se tornou para nós redenção dos pecados, libertação da morte que reinava pela culpa original, reconciliação com Deus, poder de agradar a Deus, dom de justiça, comunhão dos santos na vida eterna e herança do Reino dos Céus".

Mas, para Basílio, equivale a dizer que tudo isto se realiza em virtude do Batismo.

Que vem a ser, afinal, o Batismo senão o acontecimento salvífico da morte de Cristo, em que estamos inseridos mediante a celebração do mistério? O mistério sacramental, "imitação" da Sua morte, mergulha-nos na realidade da Sua morte; como escreve Paulo: "Ignorais, porventura, que todos nós, que fomos baptizados em Jesus Cristo, fomos baptizados na Sua morte?" (Rom 6, 3).

Baseando-se precisamente na misteriosa identidade do Batismo com o acontecimento pascal de Cristo, no seguimento de Paulo também Basílio ensina que ser baptizado não é senão ser realmente crucificado — isto é, pregado com Cristo na Sua única cruz —, realmente morrer a Sua morte, com Ele ser sepultado no Seu sepulcro, e em consequência com Ele ressuscitar na Sua ressurreição.

Por isso, coerentemente pode ele aplicar ao Batismo os mesmos títulos de glória com que o ouvimos cantar hinos à cruz: também o Batismo é "resgate dos prisioneiros, remissão das dívidas, morte do pecado, regeneração da alma, hábito de luz, selo inviolável, veiculo para o céu, título para o reino, dom da filiação". É por isso, de facto, que se fortalece a união entre o homem e Cristo, e que mediante Cristo o homem é inserido no coração mesmo da vida trinitária: tornando-se espírito porque nascido do Espírito e filho porque revestido do Filho, numa relação altíssima com o Pai do Unigénito, que já realmente se tornou também o seu Pai.
Catedral de São Basílio, em Moscou.

À luz duma consideração tão vigorosa do mistério batismal, manifesta-se a Basílio o sentido mesmo da vida cristã. Doutro modo, como compreender este mistério do homem novo, senão fixando o olhar no ponto luminoso do seu nascimento novo e no poder divino que no Baptismo o gerou?

"Como se define o cristão?" — pergunta-se Basílio; e responde: "Como aquele que é gerado pela água e pelo Espírito no Batismo". Só naquilo de que somos se revela aquilo que somos e aquilo para que somos.

Criatura nova, o cristão, mesmo quando não está plenamente consciente disso, vive vida nova; e na sua realidade mais profunda, embora com o seu proceder o renegue, é transferido para uma pátria nova, sendo ele como que celeste na terra: porque a operação de Deus é infinita e infalivelmente eficaz, e fica sempre nalguma medida além de todos os desmentidos e contradições do homem. Permanece sempre a obrigação e é, em relação essencial com o Baptismo, o sentido mesmo da vida cristã — a obrigação de a pessoa se tornar de facto aquilo que ela é, adaptando-se à nova dimensão "espiritual" e escatológica do próprio mistério pessoal. Como se exprime, com a habitual clareza, São Basílio: "Qual é o significado e o poder do Baptismo? Que o baptizado se transforma nos pensamentos, nas palavras e nas obras, e se torna — em virtude do poder que lhe foi concedido — como é Aquele por quem foi gerado".

A Eucaristia, coroa da iniciação cristã, é sempre considerada por Basílio em relação estreitíssima com o Batismo. Único alimento adequado ao novo ser do baptizado e capaz de lhe sustentar a vida nova e alimentar-lhe as novas energias; culto em espírito e verdade, exercício do novo sacerdócio e sacrifício perfeito do Israel novo, só a Eucaristia realiza em plenitude e aperfeiçoa a nova criação batismal.

Por isso, é mistério de imensa alegria — só cantando se pode participar nele — e de infinita e tremenda santidade. Como poderia, quem está em pecado, ocupar-se do corpo do Senhor? A Igreja que comunga deveria estar verdadeiramente "sem mancha nem ruga, mas santa e imaculada": isto é, deveria sempre, com vigilante consciência do mistério que celebra, examinar-se bem a si mesma, para se purificar cada vez mais "de toda a contaminação e impureza".

Por outro lado, abster-se de comungar não é possível: para a Eucaristia, de facto, necessária para a vida eterna, está ordenado o próprio Batismo, e o povo dos baptizados deve ser puro precisamente para participar na Eucaristia.

Só a Eucaristia, aliás, verdadeiro memorial do mistério pascal de Cristo, é capaz de manter em nós desperta a memória do Seu amor. Na verdade, a Eucaristia é o segredo da vigilância da Igreja: seria demasiado fácil a esta, doutro modo — sem a divina eficácia desta recordação contínua e dulcíssima, sem a força penetrante deste olhar do seu Esposo fixado nela — cair no esquecimento, na insensibilidade e na infidelidade. Com este objectivo foi instituída a Eucaristia, como dizem as palavras do Senhor: "Fazei isto em memória de Mim" (1 Cor 11, 24 s); e com esta finalidade, por conseguinte, deve ela ser celebrada.

Basílio não se cansa de repeti-lo: "Para recordar"; mais, para recordar sempre, "para a recordação indelével", "para guardar incessantemente a recordação d'Aquele que morreu e ressuscitou por nós".

Só a Eucaristia, portanto, por desígnio e dom de Deus, pode verdadeiramente guardar no coração "o selo" daquela recordação de Cristo que, apertando-nos como num torno, nos impede de pecar. E por isso especialmente, em relação com a Eucaristia, que Basílio retoma o texto de Paulo: "O amor de Cristo nos constrange, persuadidos que, se um só morreu por todos, então todos estão mortos. Cristo morreu por todos para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Cor 5, 14 s). Mas que vem a ser este viver para Cristo — ou "viver integralmente para Deus" — senão o conteúdo mesmo do pacto baptismal?. Também por este motivo, se apresenta a Eucaristia como plenitude do Batismo: só ela, de facto, consente que ele seja vivido com fidelidade e seja actualizado continuamente no seu poder de graça.

Por isso Basílio não hesita em recomendar a comunhão frequente ou mesmo quotidiana: "Comungar mesmo todos os dias, recebendo o santo corpo e sangue de Cristo, é coisa boa e útil; porque Ele mesmo diz claramente: 'Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue tem a vida eterna' (Jo 6, 54). Quem duvidará então que participar continuamente da vida não seja viver em plenitude?"

Verdadeiro "alimento da vida eterna", capaz de nutrir a vida nova no baptizado é, como a Eucaristia, também "toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4, 4). É o mesmo Basílio que estabelece com energia este nexo fundamental entre a mesa da palavra de Deus e a do corpo de Cristo. De facto, embora de modo diverso, também a Escritura, como a Eucaristia, é divina, santa e necessária. Verdadeiramente divina, afirma Basílio com singular energia: isto é, "de Deus" no sentido mais próprio. Deus mesmo a inspirou, Deus a confirmou, Deus a pronunciou mediante os hagiógrafos — Moisés, os profetas, os evangelistas e os apóstolos — e sobretudo mediante o Seu Filho; Ele, o único Senhor: quer no Antigo quer no Novo Testamento, certamente com graus diversos de intensidade e diversa plenitude de revelação, mas também sem sombra de contradição.

De substância divina, ainda que feita de palavras humanas, a Escritura é por isso de infinita autoridade: fonte da fé, segundo a palavra de Paulo (Rom 10, 17), é o fundamento duma certeza plena, indúbia, não vacilante. Sendo toda de Deus, é toda, mesmo em cada sua mínima parte, infinitamente importante e digna de extrema atenção.

E por isto também, a Escritura é com razão chamada santa: porque, como seria terrível sacrilégio profanar a Eucaristia, seria também sacrilégio atentar contra a integridade e a pureza da palavra de Deus. Não podemos por conseguinte entendê-la segundo categorias humanas, mas sim à luz dos seus mesmos ensinamentos, quase "pedindo ao próprio Senhor a interpretação das coisas por Ele ditas"; e não se pode "tirar nem acrescentar nada" àqueles textos divinos entregues à Igreja para todos os tempos, àquelas palavras santas pronunciadas por Deus uma vez para sempre.

É de necessidade vital, na verdade, que a relação com a palavra de Deus seja sempre adoradora, fiel e amorosa. Essencialmente é dela que a Igreja se deve inspirar no seu ensino, deixando-se guiar pelas palavras mesmas do seu Senhor, a fim de não se arriscar a "reduzir a palavras humanas as palavras da religião"

E à Escritura deve referir-se "sempre e em toda a parte" cada cristão em todas as decisões, tornando-se diante dela "como criança", procurando nela o mais eficaz remédio contra todas as suas diversas enfermidades, e não se atrevendo a dar um passo sem ser iluminado pelos raios divinos daquelas palavras.

Autenticamente cristão, todo o magistério de Basílio é, como se viu; "evangelho", proclamação alegre da salvação. Não será cheia de alegria e fonte de alegria a confissão da glória de Deus que irradia sobre o homem, Sua imagem? Não será acaso estupendo o anúncio da vitória da cruz, na qual, "pela grandeza da piedade e a multidão das misericórdias de Deus", os nossos pecados foram perdoados antes ainda de nós os cometermos? Que anúncio mais consolador que o do Baptismo que nos regenera, da Eucaristia que nos alimenta e da Palavra que nos ilumina? Mas exactamente por isto, por não ter calado ou diminuído o poder salvífico e transformador da obra de Deus e das "energias do século futuro" (Heb 6, 5), Basílio pode pedir a todos, com muita firmeza, amor total para com Deus, dedicação sem reservas e perfeição de vida evangélica.

Porque, se o Batismo é graça — e que enorme graça todos os que a conseguiram receberam efectivamente "o poder e a força de agradar a Deus", e são, por ,isso mesmo, "todos igualmente obrigados a adequar-se a tal graça", isto é, a viver segundo o Evangelho".

"Todos igualmente": não há cristãos de segunda categoria, pelo simples facto de que não há baptismos diversos, e porque o sentido da vida cristã está todo intrinsecamente encerrado no pacto batismal único.

"Viver em conformidade com o Evangelho": que significa isto, em concreto, segundo Basílio? Significa tender, com todo o impulso do próprio íntimo e com todas as novas energias disponíveis, para conseguir "agradar a Deus". Significa, por exemplo, "não ser rico mas pobre, segundo a palavra do Senhor", realizando assim uma condição fundamental para O poder seguir com liberdade, e manifestando, quanto à norma que domina no viver mundano, a novidade do Evangelho. Significa submeter-se totalmente à palavra de Deus, renunciando sempre à "própria vontade" e tornando-se obediente, à imitação de Cristo, "até à morte".

Na verdade, Basílio não se envergonhava do Evangelho: mas, sabendo que ele é poder de Deus para a salvação de todo o crente (Rom 1, 16), anunciava-o com aquela integridade que o faz ser plenamente palavra de graça e fonte de vida.

Apraz-nos, por fim, fazer notar que São Basílio, embora mais sobriamente que o irmão São Gregório Nisseno, e o amigo São Gregório Nazianzeno, celebra a virgindade de Maria): chama-lhe "profetisa" e com feliz expressão assim motiva os esponsais de Maria com José: "Houve-os para que a virgindade fosse honrada e não fosse desprezado o matrimónio".

A Anáfora de São Basílio acima recordada contém louvores excelsos à "toda santa, imaculada, ultra-abençoada e gloriosa Senhora mãe de Deus e sempre-virgem Maria"; "Mulher cheia de graça, exultação de tudo o que foi criado.

IV. Conclusão

Deste grande santo e mestre, todos nós, na Igreja, nos gloriamos de ser discípulos e filhos: reconsideremos portanto o seu exemplo e oiçamos de novo com veneração os seus ensinamentos, com íntima disponibilidade deixando-nos admoestar, confortar e exortar.

Confiamos esta mensagem de modo particular às numerosas Ordens religiosas, masculinas e femininas, que se honram do nome e da protecção de São Basílio e lhe seguem a Regra, incitando-as nesta feliz celebração a propósito de novo fervor numa vida de ascese e contemplação das coisas divinas, que depois superabunde em obras santas para glória de Deus e edificação da Santa Igreja.

Para a feliz consecução de tais objectivos, imploramos também o auxílio maternal da Virgem Maria, e em auspício de dons celestes e penhor da nossa benevolência, com grande afecto vos concedemos a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 2 de Janeiro, na memória de São Basílio Magno e São Gregório Nazianzeno, Bispos e Doutores da Igreja, no ano de 1980, segundo do nosso Pontificado

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