29 de jun. de 2013

Homília na Solenidade de São Paulo e São Pedro

"E vós, quem dizeis que Eu sou?" (Mt 16, 15).

Jesus dirige aos discípulos esta pergunta acerca da sua identidade, enquanto se encontra com eles na alta Galileia. Muitas vezes acontecera que eram eles a dirigir interrogativos a Jesus; agora é Ele que os interpela. A sua pergunta é específica e espera uma resposta. Simão Pedro toma a palavra em nome de todos: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16, 16).

A resposta é extraordinariamente lúcida. Nela se reflete de modo perfeito a fé da Igreja. "Tu és o Cristo!". À confissão de Pedro Jesus replica: "És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas o Meu Pai que está nos céus" (Mt 16, 17).

És feliz, Pedro! Feliz, porque esta verdade, que é central na fé da Igreja, não podia emergir na tua consciência de homem, senão por obra de Deus. "Ninguém disse Jesus conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (Mt 11, 27).

Reflitamos sobre esta página evangélica particularmente densa: o Verbo encarnado revelara o Pai aos seus discípulos; agora é o momento em que o próprio Pai lhes revela o seu Filho unigénito. Pedro acolhe a iluminação interior e proclama com coragem: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo"!

Estas palavras nos lábios de Pedro provêm do profundo do mistério de Deus. Revelam a verdade íntima, a própria vida de Deus. E Pedro, sob a ação do Espírito divino, torna-se testemunha e confessor desta soberana verdade. A sua profissão de fé constitui assim a sólida base da fé da Igreja: "Sobre ti edificarei a minha Igreja" (Mt 16, 18). Sobre a fé e a fidelidade de Pedro está edificada a Igreja de Cristo.

Disto estava bem consciente a primeira comunidade cristã que, como narram os Atos dos Apóstolos, quando Pedro esteve encerrado na prisão, se recolheu para elevar a Deus uma ardente oração por ele (cf. At 12, 5). Ela foi ouvida, porque a presença de Pedro ainda era necessária à comunidade que dava os seus primeiros passos: o Senhor enviou o seu anjo para o libertar das mãos dos perseguidores (cf. ibid., 12, 7-11). Estava escrito nos desígnios de Deus que Pedro, depois de ter durante muito tempo confirmado na fé os seus irmãos, haveria de receber o martírio aqui em Roma, juntamente com Paulo, o Apóstolo das nações, também ele muitas vezes salvo da morte.

"O Senhor assistiu-me e deu-me forças a fim de que a palavra fosse anunciada por mim e os gentios a ouvissem" (2 Tm 4, 17). São palavras de Paulo ao fiel discípulo Timóteo: escutamo-las na segunda Leitura. Elas dão testemunho da obra nele realizada pelo Senhor, que o tinha escolhido como ministro do Evangelho, "alcançando-o" na via de Damasco (cf. Fl 3, 12).

Envolvido numa luz fulgurante, o Senhor se lhe havia apresentado dizendo: "Saulo, Saulo, por que Me persegues?" (Act 9, 4), enquanto uma força misteriosa o lançava por terra (cf. ibid., v. 5). "Quem és Tu, Senhor?", perguntara Saulo. "Eu sou Jesus, a quem tu persegues!" (ibid.). Foi esta a resposta de Cristo. Saulo perseguia os sequazes de Jesus e Jesus fez-lhe tomar consciência de que era Ele mesmo a ser perseguido neles. Ele, Jesus de Nazaré, o Crucificado, que os cristãos afirmavam ter ressuscitado. Se, agora, Saulo experimentava a sua poderosa presença, era claro que Deus O tinha deveras ressuscitado dos mortos. Era precisamente Ele o Messias esperado por Israel, era Ele o Cristo vivo e presente na Igreja e no mundo!

Unicamente com a sua razão, Paulo teria podido compreender tudo aquilo que um tal evento comportava? Certamente, não! De fato, fazia parte dos desígnios misteriosos de Deus. Será o Pai a dar a Paulo a graça de conhecer o mistério da redenção, operada em Cristo. Será Deus a permitir-lhe entender a estupenda realidade da Igreja, que vive por Cristo, com Cristo e em Cristo. E ele, que se tornou partícipe desta verdade, não cessará de a proclamar incansavelmente até aos extremos confins da terra.

De Damasco Paulo iniciará o seu itinerário apostólico, que o levará a defender o Evangelho em tantas partes do mundo então conhecido. O seu impulso missionário contribuirá assim para a realização do mandato de Cristo aos Apóstolos: "Ide, pois, ensinai todas as nações... " (Mt 28, 19).

Hoje a Igreja proclama de novo a sua fé. É a nossa fé, a imutável fé da Igreja em Jesus, único Salvador do mundo; em Cristo, o Filho de Deus vivo, morto e ressuscitado por nós e para a humanidade inteira.

-- Papa João Paulo II, em 29 de Junho de 2000

28 de jun. de 2013

Aleluia, cantado por Il Divo no Coliseu Romano



Letra:
Sebastien:
Un soldado a casa hoy regreso
Y un niño enfermo se curo
Y hoy no hay trabajo en el bosque de la lluvia

Un desamparado se salvo
Por causa de una buena acción
Y hoy nadie lo repudia, hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Carlos:
Un ateo que consiguió creer
Y un hambriento hoy tiene de comer
Y hoy donaron a una iglesia una fortuna

David:
Que la guerra pronto se acabara
Que en el mundo al fin reinara la paz
Que no habrá miseria alguna, hallelujah

Urs:
Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Por que la norma sea el amor
Y no gobierne la corrupción
Sino lo bueno y lo mejor del alma pura

Todos:
Porque dios nos proteja de un mal final
Porque un día podamos escarmentar
Con que acaben con tanta furia, hallelujah

Urs:
Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

David:
Hallelujah, hallelujah

-----------------------------------
Sebastien:
Um soldado à casa regressou
E uma criança doente se curou
E hoje não temos que trabalhar na floresta das chuvas (equatorial)

Um desamparado se salvou
Por causa de uma boa acão
E hoje ninguém lhe repudia, aleluia

Aleluia, aleluia, aleluia, aleluia

Carlos:
Um ateu conseguiu crer
E um faminto hoje tem o que comer
E hoje doaram uma fortuna a Igreja

David:
Que a guerra termine em breve
Que no mundo enfim reine a paz
Que não haja miséria nenhuma, aleluia

Urs:
Aleluia, aleluia, aleluia, aleluia

Que o normal seja o amor
E não governe a corrupção
Apenas o bem e melhor de alma pura

Todos:
Que Deus nos proteja de um mal final
Que um dia possamos aprender nossa lição
Que termine toda ira, aleluia

Urs:
Aleluia, aleluia, aleluia, aleluia

David:
Aleluia, aleluia

* tradução própria

27 de jun. de 2013

São Pedro e São Paulo: Estes mártires viram o que pregaram

O martírio dos santos apóstolos Pedro e Paulo consagrou para nós este dia. Não falamos de mártires desconhecidos. Sua voz ressoa e se espalha em toda a terra, chega aos confins do mundo a sua palavra (Sl 18,5). Estes mártires viram o que pregaram, seguiram a justiça, proclamaram a verdade, morreram pela verdade.

São Pedro, o primeiro dos apóstolos, que amava Cristo ardentemente, mereceu escutar: Por isso eu te digo que tu és Pedro (Mt 16,19). Antes, ele havia dito: Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo (Mt 16,16). E Cristo retorquiu: Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha Igreja (Mt 16,18). Sobre esta pedra construirei a fé que haverás de proclamar. Sobre a afirmação que fizeste: Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo, construirei a minha Igreja. Porque tu és Pedro. Pedro vem de pedra; não é pedra que vem de Pedro. Pedro vem de pedra, como cristão vem de Cristo.

Como sabeis, o Senhor Jesus, antes de sua paixão, escolheu alguns discípulos, aos quais deu o nome de apóstolos. Dentre estes, somente Pedro mereceu representar em toda parte a personalidade da Igreja inteira. Porque sozinho representava a Igreja inteira, mereceu ouvir estas palavras: Eu te darei as chaves do Reino dos Céus (Mt 16,19). Na verdade, quem recebeu estas chaves não foi um único homem, mas a Igreja una. Assim manifesta-se a superioridade de Pedro, que representava a universalidade e a unidade da Igreja, quando lhe foi dito: Eu te darei. A ele era atribuído pessoalmente o que a todos foi dado. Com efeito, para que saibais que a Igreja recebeu as chaves do Reino dos Céus, ouvi o que, em outra passagem, o Senhor diz a todos os seus apóstolos: Recebei o Espírito Santo. E em seguida: A quem perdoardes os pecados, eles serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos (Jo 20,22-23).

No mesmo sentido, também depois da ressurreição, o Senhor entregou a Pedro a responsabilidade de apascentar suas ovelhas. Não que dentre os outros discípulos só ele merecesse pastorear as ovelhas do Senhor; mas quando Cristo fala a um só, quer, deste modo, insistir na unidade da Igreja. E dirigiu-se a Pedro, de preferência aos outros, porque, entre os apóstolos, Pedro é o primeiro.

Não fiques triste, ó apóstolo! Responde uma vez, responde uma segunda, responde uma terceira vez. Vença por três vezes a tua profissão de amor, já que por três vezes o temor venceu a tua presunção. Desliga por três vezes o que por três vezes ligaste. Desliga por amor o que ligaste por temor. E assim, o Senhor confiou suas ovelhas a Pedro, uma, duas e três vezes.

Num só dia celebramos o martírio dos dois apóstolos. Na realidade, os dois eram como um só. Embora tenham sido martirizados em dias diferentes, deram o mesmo testemunho. Pedro foi à frente; Paulo o seguiu. Celebramos o dia festivo consagrado para nós pelo sangue dos apóstolos. Amemos a fé, a vida, os trabalhos, os sofrimentos, os testemunhos e as pregações destes dois apóstolos.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

* A Feste de São Pedro e São Paulo é celebrada em 29 de Junho.

23 de jun. de 2013

Direitos do Homem

Direito à existência e a um digno padrão de vida 
E, ao nos dispormos a tratar dos direitos do homem, advertimos, de início, que o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa tem também o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade.

Direitos que se referem aos valores morais e culturais 
Todo o ser humano tem direito natural ao respeito de sua dignidade e à boa fama; direito à liberdade na pesquisa da verdade e, dentro dos limites da ordem moral e do bem comum, à liberdade na manifestação e difusão do pensamento, bem como no cultivo da arte. Tem direito também à informação verídica sobre os acontecimentos públicos.

Deriva também da natureza humana o direito de participar dos bens da cultura e, portanto, o direito a uma instrução de base e a uma formação técnica e profissional, conforme ao grau de desenvolvimento cultural da respectiva coletividade. É preciso esforçar-se por garantir àqueles, cuja capacidade o permita, o acesso aos estudos superiores, de sorte que, na medida do possível, subam na vida social a cargos e responsabilidades adequados ao próprio talento e à perícia adquirida.

Direito de honrar a Deus segundo os ditames da reta consciência 
Pertence igualmente aos direitos da pessoa a liberdade de prestar culto a Deus de acordo com os retos ditames da própria consciência, e de professar a religião, privada e publicamente. Com efeito, claramente ensina Lactâncio, "fomos criados com a finalidade do prestarmos justas e devidas honras a Deus, que nos criou; de só a ele conhecermos e seguirmos. Por este vínculo de piedade nos unimos e ligamos a Deus, donde deriva o próprio nome de religião". Sobre o mesmo assunto nosso predecessor de imortal memória Leão XIII assim se expressa: "Esta verdadeira e digna liberdade dos filhos de Deus que mantém alta a dignidade da pessoa humana é superior a toda violência e infúria, e sempre esteve nos mais ardentes desejos da Igreja. Foi esta que constantemente reivindicaram os apóstolos, sancionaram nos seus escritos os apologetas, consagraram pelo próprio sangue um sem número de mártires".

Direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida  
É direito da pessoa escolher o estado de vida, de acordo com as suas preferências, e, portanto, de constituir família, na base da paridade de direitos e deveres entre homem e mulher, ou então, de seguir a vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa.

A família, baseada no matrimônio livremente contraído, unitário e indissolúvel, há de ser considerada como o núcleo fundamental e natural da sociedade humana. Merece, pois, especiais medidas, tanto de natureza econômica e social, como cultural e moral, que contribuam para consolidá-la e ampará-la no desempenho de sua função.

Aos pais, portanto, compete a prioridade de direito em questão de sustento e educação dos próprios filhos.

Direitos inerentes ao campo econômico 
No que diz respeito às atividades econômicas, é claro que, por exigência natural, cabe à pessoa não só a liberdade de iniciativa, senão também o direito ao trabalho.

Semelhantes direitos comportam certamente a exigência de poder a pessoa trabalhar em condições tais que não se lhe minem as forças físicas nem se lese a sua integridade moral, como tampouco se comprometa o são desenvolvimento do ser humano ainda em formação. Quanto às mulheres, seja-lhes facultado trabalhar em condições adequadas às suas necessidades e deveres de esposas e mães.

Da dignidade da pessoa humana deriva também o direito de exercer atividade econômica com senso de responsabilidade. Ademais, não podemos passar em silêncio o direito a remuneração do trabalho conforme aos preceitos da justiça; remuneração que, em proporção dos recursos disponíveis, permita ao trabalhador e à sua família um teor de vida condizente com a dignidade humana. A esse respeito nosso predecessor de feliz memória Pio XII afirma: "Ao dever pessoal de trabalhar, inerente à natureza, corresponde um direito igualmente natural, o de poder o homem exigir que das tarefas realizadas lhe provenham, para si e seus filhos, os bens indispensáveis à vida: tão categoricamente impõe a natureza a conservação do homem".

Da natureza humana origina-se ainda o direito à propriedade privada, mesmo sobre os bens de produção. Como afirmamos em outra ocasião, esse direito "constitui um meio apropriado para a afirmação da dignidade da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade em todos os campos; e é fator de serena estabilidade para a família, como de paz e prosperidade social".

Cumpre, aliás, recordar que ao direito de propriedade privada é inerente uma função social.

Direito de reunião e associação 
Da sociabilidade natural da pessoa humana provém o direito de reunião e de associação; bem como o de conferir às associações a forma que aos seus membros parecer mais idônea à finalidade em vista, e de agir dentro delas por conta própria e risco, conduzindo-as aos almejados fins.

Como tanto inculcamos na encíclica Mater et Magistra, é de todo indispensável se constitua uma vasta rede de agremiações ou organismos intermediários, adequados afins que os indivíduos por si sós não possam conseguir de maneira eficaz. Semelhantes agremiações e organismos são elementos absolutamente indispensáveis para salvaguardar a dignidade e a liberdade da pessoa humana, sem lhe comprometer o sentido de responsabilidade.

Direito de emigração e de imigração 
Deve-se também deixar a cada um o pleno direito de estabelecer ou mudar domicílio dentro da comunidade política de que é cidadão, e mesmo, quando legítimos interesses o aconselhem, deve ser-lhe permitido transferir-se a outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se. Por ser alguém cidadão de um determinado país, não se lhe tolhe o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade mundial, que consiste na união de todos os seres humanos entre si.

Direitos de caráter político 
Coerente ainda com a dignidade da pessoa é o direito de participar ativamente da vida pública, e de trazer assim a sua contribuição pessoal ao bem comum dos concidadãos. São palavras de nosso predecessor de feliz memória Pio XII: "A pessoa humana como tal não só não pode ser considerada como mero objeto ou elemento passivo da vida social, mas, muito pelo contrário, deve ser tida como o sujeito, o fundamento, e o fim da mesma".

Compete outrossim à pessoa humana a legítima tutela dos seus direitos: tutela eficaz, imparcial, dentro das normas objetivas da justiça. Assim Pio XII, nosso predecessor de feliz memória, adverte com estas palavras: "Da ordem jurídica intencionada por Deus emana o direito inalienável do homem à segurança jurídica e a uma esfera jurisdicional bem determinada, ao abrigo de toda e qualquer impugnação arbitrária".

-- Papa João XXIII, Encíclica Pacem in Terris, 11 de Abril de 1963

20 de jun. de 2013

Isaias 38: Cântico de Ezequias

Queridos irmãos e irmãs,
Rei Ezequias orando

Liturgia das Horas, nos vários Cânticos que são postos em paralelo com os Salmos, apresenta-nos também um hino de agradecimento que tem este título:  "Cântico de Ezequias, rei de Judá, quando adoeceu e foi curado da sua enfermidade" (Is 38, 9). Ele está inserido numa parte do livro do profeta Isaías com a característica histórico-narrativa (cf. Is 36-39), cujos dados realçam com algumas variantes os que são oferecidos pelo Segundo Livro dos Reis (cf. cap. 18-20).

Nós, agora, na esteira da Liturgia das Laudes, ouvimos e transformamos em oração, duas grandes estrofes daquele Cântico que descrevem os dois movimentos típicos das orações de agradecimento:  por um lado, é recordado o pesadelo do sofrimento do qual o Senhor libertou o seu fiel e, por outro, canta-se com alegria a gratidão pela vida e pela salvação reconquistada.


O rei Ezequias, um soberano justo e amigo do profeta Isaías, tinha sido atingido por uma grave doença, que o profeta Isaías declarara mortal (cf. Is 38, 1). "Ezequias voltou o seu rosto para a parede e fez ao Senhor esta oração:  "Senhor, lembrai-vos de que tenho andado fielmente diante de vós, de todo o coração, segundo a vossa vontade". E começou a derramar lágrimas abundantes. Então a palavra do Senhor foi dirigida a Isaías, nestes termos:  "Vai e diz a Ezequias:  Eis o que diz o Senhor, o Deus de teu pai Davi:  Ouvi a tua oração e vi as tuas lágrimas; vou acrescentar à tua vida mais quinze anos"" (Is 38, 2-5).

Neste ponto brota do coração do Rei o cântico de reconhecimento. Como se disse, ele volta-se antes de tudo para o passado. Segundo a antiga concepção de Israel, a morte introduzia num horizonte subterrâneo, chamado em hebraico sheol, onde a luz se apagava, a existência se atenuava e se fazia quase espectral, o tempo parava, deixava de haver esperança e, sobretudo, deixava de se ter a possibilidade de invocar e encontrar Deus no culto.

Por isso, Ezequias recorda em primeiro lugar as palavra cheias de amargura pronunciadas quando a sua vida estava deslizando em direção aos confins da morte:  "Não verei mais o Senhor na terra dos viventes" (v. 11). Também o Salmista rezava assim no dia da doença:  "Quando chegar a morte, ninguém se lembra de Vós; na mansão dos mortos quem vos louvará?" (Sl 6, 6). Ao contrário, libertado do perigo da morte, Ezequias pode recordar com vigor e com alegria:  "Os vivos são os que vos louvam como eu vos louvo agora" (Is 38, 19).

O Cântico de Ezequias adquire, precisamente sobre este tema uma nova tonalidade, se for lido à luz da Páscoa. Já no Antigo Testamento se abriam grandes clareiras de luz nos Salmos, quando o orante proclamava a sua certeza de que "Vós não me entregareis à mansão dos mortos, nem deixareis que o Vosso amigo veja o sepulcro. Ensinar-me-eis o caminho da vida; na vossa presença (gozamos) a plenitude da alegria, na Vossa direita (encontraremos) as delícias eternas" (Sl15, 10-11; cf. Sl 48 e 72). O autor do Livro da Sabedoria, por seu lado, jamais hesitará em afirmar que a esperança dos justos está "cheia de imortalidade" (Sab 3, 4), porque ele está  convencido  de  que  a experiência de  comunhão  com  Deus  vivida  durante a existência terrena não será infringida. Nós permaneceremos sempre, para além da morte, apoiados e protegidos pelo Deus eterno e infinito, porque "as almas dos justos estão na mão de Deus e nenhum tormento os tocará" (Sab 3, 1).

Sobretudo com a morte e a ressurreição do Filho de Deus, Jesus Cristo, uma semente de eternidade é lançada à terra e feita germinar na nossa caducidade mortal, e por isso podemos repetir as palavras do Apóstolo, baseadas no Antigo Testamento:  "Quando este corpo corruptível se revestir de imortalidade, então cumprir-se-á o que está escrito:  "A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?"" (1 Cor 15, 54-55; cf. Is25, 8; Os. 13, 14).

Mas o cântico do rei Ezequias convida-nos também a refletir sobre a nossa fragilidade de criaturas. As imagens são sugestivas. A vida humana é descrita com o símbolo do nomade:  nós somos sempre peregrinos e hóspedes na terra. Recorre-se também à imagem da tela, que é tecida e que pode permanecer incompleta quando se corta o fio e o trabalho é interrompido (cf. Is38, 12). Também o Salmista tem a mesma sensação:  "Eis que fizestes os meus dias de uns tantos palmos, a minha existência, perante ti, é como um nada; cada um não é mais do que um sopro. Cada homem passa como uma simples sombra:  é em vão que se agita" (Sl 38, 6-7). É necessário reencontrar a consciência dos nossos limites, saber que "a soma da nossa vida como declara ainda o Salmista é de setenta anos, os mais fortes chegam aos oitenta; mas a sua grandeza não passa de atribulação e miséria, porque eles passam depressa e nós desaparecemos" (Sl 89, 10).

No dia da doença e do sofrimento é, contudo, justo elevar a Deus a própria lamentação, como nos ensina Ezequias que, usando imagens poéticas, descreve o seu pranto como o piar da andorinha e o gemer de uma pomba (cf. Is 38, 14). E, mesmo se não hesita em confessar que sente Deus como um adversário, como um leão que quebra os ossos (cf v. 13), não deixa de o invocar:  "Senhor, estou em agonia, confortai-me!" (v. 14).

O Senhor não permanece indiferente às lágrimas do sofredor e, mesmo por caminhos que nem sempre coincidem com os das nossas expectativas, responde, conforta e salva. É como confessa Ezequias no final, convidando todos a ter esperança, a rezar, a ter confiança, na certeza de que Deus não abandona as suas criaturas:  "Senhor, salvai-me e soaremos as nossas harpas no templo do Senhor, todos os dias da nossa vida" (v. 20).

A tradição latina medieval conserva deste Cântico do rei Ezequias um comentário espiritual de Bernardo de Claraval, um dos místicos mais representativos do monaquismo ocidental. Trata-se do terceiro dos Sermões vários, em que Bernardo, aplicando à vida de cada um o drama vivido pelo soberano de Judá e, interiorizando o seu conteúdo, escreve entre outras coisas:  "Louvarei ao Senhor em todos os tempos, isto é, de manhã até à noite, como aprendi a fazer, e não como os que te louvam quando tu lhes fazes o bem, nem como os que crêem durante um certo tempo, mas no momento da tentação cedem; e como os santos, direi:  Se recebemos o bem da mão de Deus, porque não devemos aceitar também o mal?... Assim estes dois momentos do dia serão um tempo de serviço a Deus, porque à noite permanecerá o pranto, e de manhã o eco da alegria. Mergulharei no sofrimento à noite a fim de poder gozar, depois, a alegria da manhã".

Por conseguinte, a súplica do rei é lida por São Bernardo como uma representação do cântico orante do cristão, que deve ressoar, com a mesma constância e serenidade, tanto nas trevas da noite e da provação como na luz do dia e da alegria.

-- Papa João Paulo II, na audiência de 27 de Fevereiro de 2002

16 de jun. de 2013

Nossa oração é pública e universal

São Cipriano de Cártago, bispo e mártir
Antes do mais, o Doutor da paz e Mestre da unidade não quis que cada um orasse sozinho e em particular, como rezando para si só. De fato, não dizemos: Meu Pai que estais no céus; nem: Meu pão dai-me hoje. Do mesmo modo não se pede só para si o perdão da dívida de cada um ou que não caia em tentação e seja livre do mal, rogando cada um para si. Nossa oração é pública e universal e quando oramos não o fazemos para um só, mas para o povo todo, já que todo o povo forma uma só coisa.

O Deus da paz e Mestre da concórdia, que ensinou a unidade, quis que assim orássemos, um por todos, como ele em si mesmo carregou a todos.

Os três jovens, lançados na fornalha ardente, observaram esta lei da oração, harmoniosos na prece e concordes pela união dos espíritos. A firmeza da Sagrada Escritura o declara e, narrando de que maneira eles oravam, apresenta-os como exemplo a ser imitado em nossas preces, a fim de nos tornarmos semelhantes a eles. Então, diz ela, os três jovens, como por uma só boca, cantavam um hino e bendiziam a Deus. Falavam como se tivessem uma só boca e Cristo ainda não lhes havia ensinado a orar.

Por isto a palavra foi favorável e eficaz para os orantes. De fato, a oração pacífica, simples e espiritual, mereceu a graça do Senhor. Do mesmo modo vemos orar os apóstolos e os discípulos, depois da ascensão do Senhor. Eram perseverantes, todos unânimes na oração com as mulheres e Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos. Perseveravam unânimes na oração, manifestando tanto pela persistência como pela concórdia de sua oração, que Deus que os faz habitar unânimes na casa, só admite na eterna e divina casa aqueles cuja oração é unânime. De alcance prodigioso, irmãos diletíssimos, são os mistérios da oração dominical! Mistérios numerosos, profundos, enfeixados em poucas palavras, porém, ricas em força espiritual, encerrando tudo o que nos importa alcançar!

Rezai assim, diz ele: Pai nosso, que estais nos céus.

O homem novo, renascido e, por graça, restituído a seu Deus, diz, em primeiro lugar, Pai!, porque já começou a ser filho. Veio ao que era seu e os seus não o receberam. A todos aqueles que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, aqueles que creem em seu nome. Quem, portanto, crê em seu nome e se fez filho de Deus, deve começar por aqui, isto é, por dar graças e por confessar-se filho de Deus ao declarar ser Deus o seu Pai nos céus.

-- Do Tratado sobre a Oração do Senhor, de São Cipriano, bispo e mártir (século III)

12 de jun. de 2013

Filme - Santo Antônio, o guerreiro de Deus

Santo Antônio, dia 13 de Junho


"Quando te sorriem prosperidade mundana e prazeres, não te deixes encantar; não te apegues a eles; brandamente entram em nós, mas quando os temos dentro de nós, nos mordem como serpentes."
"Quem não pode fazer grandes coisas, faça ao menos o que estiver na medida de suas forças; certamente não ficará sem recompensa"
Outros posts:
Sermão da Anunciação
A palavra é viva quando as obras falam

10 de jun. de 2013


Santo Inácio era bispo na Síria quando foi preso por ordem do Imperador Trajano e condena a morrer em Roma. Enquanto era transportado para Roma, escreveu algumas cartas para seus discípulos que foram preservadas até hoje. Esta é uma delas: 
 
Nem as delícias do mundo nem os reinos terrestres me interessam. Mais vale para mim morrer em Cristo Jesus do que imperar até os confins da terra. Procuro aquele que morreu por nós: quero aquele que por nós ressuscitou. Meu nascimento está iminente. Perdoai-me, irmãos! Não me impeçais de viver, não desejeis que eu morra, pois desejo ser de Deus. Não me entregueis ao mundo nem me fascineis com o que é material. Deixai-me contemplar a luz pura, onde, lá chegando, serei homem. Concedei-me ser imitador da paixão de meu Deus. Se alguém O possui no coração, entenderá o que quero e terá compaixão de mim, sabendo que ânsia me atormenta.

O príncipe deste mundo deseja arrebatar-me e corromper meu amor para com Deus. Nenhum de vós, aí presentes, o ajude. Ponde-vos antes de meu lado, ou melhor, do lado de Deus. Com efeito, não podeis pronunciar o nome de Jesus Cristo, enquanto cobiçais o mundo.

Não more em vós a inveja. Mesmo que eu em pessoa vos rogasse algo diferente, não me escuteis. Crede antes no que vos escrevo. Vivo, vos escrevo, desejando morrer. Meu amor está crucificado. Não há em mim fogo que busque alimentar-se da matéria, apenas uma água viva e murmurante dentro de mim, dizendo-me em segredo: “Vem para o Pai!” Não sinto prazer com o alimento corruptível nem com as volúpias deste mundo. Quero o pão de Deus, a carne de Jesus Cristo, que nasceu da linhagem de Davi. E quero a bebida, o seu sangue, que é a caridade incorruptível. Não quero mais viver como os homens. Isto acontecerá se vós quiserdes. Querei-o, rogo-vos, para que sejais vós também queridos. Com poucas palavras dirijo-me a vós.

Acreditai-me: Jesus Cristo vos manifestará que digo a verdade, ele que é a boca verdadeira pela qual o Pai verdadeiramente falou. Pedi vós por mim, para que o consiga. Não por motivos carnais, mas segundo a vontade de Deus foi que vos escrevi. Se for martirizado, vós me quisestes bem. Se for rejeitado, vós me odiastes.
 
Catedral da Dormição de Maria, em Damasco/Síria

Lembrai-vos em vossas orações da Igreja da Síria, que tem Deus em meu lugar. Em lugar do bispo, Jesus Cristo e a vossa caridade a governarão. Envergonho-me de ser contado entre seus membros, pois não sou digno disto, já que sou o último deles e como que um aborto. Na verdade, alcançarei a misericórdia de ser alguém se possuir a Deus. Saúdam-vos o meu espírito e a caridade das Igrejas que me recebem em nome de Jesus Cristo e não como um passante qualquer. De fato, as Igrejas, que não se acham no caminho por onde vou passando, antecipam-se a meu encontro em cada cidade.

-- Da Carta aos Romanos, de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir (século I)
 

8 de jun. de 2013

São Gabriel Possenti ou de Nossa Senhora das Dores

Santo Gabriel de Nossa Senhora da Dores
vestindo o hábito dos Passionistas. 
Hagiógrafos, muitas vezes, fazem parecer impossível alcançar a santidade ao contar histórias de santos que já nasceram especialmente inspirados pelo Espírito Santo, desde muito pequenos dedicados à oração, praticando mortificações severas, nunca entraram em brigas nem, sequer, tiveram pensamentos de caráter sexual. 

Graças a Deus, há, por exemplo, São Gabriel Possenti, que teve uma infância como de outros meninos da época: lia livros românticos, gostava de assistir peças, de vestir-se bem para agradar as moças e seus amigos o chamavam "damerino", algo como "namorador". 

Nascido em 1838, era o décimo primeiro filho de advogado da cidade italiana de Spoleto. Como adolescente em uma escola jesuita, Gabriel sentiu o chamado ao sacerdócio. Mas adiou o máximo possível. Duas vezes caiu doente gravemente, em ambas prometeu que se tornaria padre caso se recuperasse. Mas, uma vez recuperado, desistiu da idéia. Finalmente aos dezoito, quando morreu uma de suas irmãs, entrou na Ordem dos Passionistas, tomando o nome de Gabriel de Nossa Senhora das Dores. Seus amigos tentaram lhe convencer do contrário, mas ele já estava decidido.

Uma vez no noviciado, seu progresso espiritual foi notável, adaptando-se perfeitamente as regras da ordem e a rotina de orações e trabalhos. Exceto pela grande caridade e espírito de obediência, não realizou nada de extraordinário. Após um ano do noviciado, Gabriel pronunciou seus votos. Em 1859 foi transferido para o Monastério de Gran Sasso. 

Logo começou a sentir os primeiros sintomas da tuberculose, o que muito lhe agradou porque era exatamente o que havia pedido: uma morte que lhe permitisse purificar-se antes do momento final. Dizia que era isto que lhe inspirou o nome assumido, sofrer as dores e deixar-se conduzir por Deus, como Nossa Senhora.  Em seu leito de morte pediu que queimassem um livro com seus escritos espirituais. Não fosse isto, talvez tivéssemos o equivalente masculino a Santa Teresinha de Lisieux, cuja vida tem evidentes paralelos. A oração abaixo foi anotada pelos seus companheiros:

Mantenha-me ao seus pés, ó Deus, implorando por sua misericórdia. 

O que poderias perder permitindo que eu tenha um profundo amor por Ti, grande humildade, um coração puro, também mente e corpo, caridade para com os irmãos, uma sincera contrição por tê-lo ofendido com meus pecados e a graça de não pecar mais? 

O que poderias perder permitindo receber dignamente teu corpo na Santa Comunhão? Auxiliando-me a agir com amor em todos meus pensamentos, palavras, orações e penitências? Concedendo-me o favor de amar ternamente a santa mãe de teu filho? Dando-me a graça da perseverança final em minha vocação e morrendo uma boa e santa morte?

Ajude-me, ò Senhor, a corrigir-me. Esta graça eu peço que me concedas através da tua infinita bondade e misericórdia. Para obtê-la, eu te ofereço apenas o méritos de teu Filho, Jesus Cristo, o redentor. Não tenho méritos, sou destituído de toda bondade, tuas feridas são minha esperança. 

Os dois milagres apresentados para sua canonização foram as curas inexplicáveis de Maria Mazzarela de uma tuberculose e de Dominic Tiber de uma hérnia. Foi beatificado pelo Papa Pio X em 31 de maio de 1908. Estavam presentes na cerimônia um dos seus irmãos e o diretor espiritual, Padre Norberto. A Primeira Guerra, com todos seus problemas, atrasou a canonização, ocorrida somente em 13 de Maio  de 1920, pelo Papa Benedito XV, que o declarou patrono da juventude católica. Seus restos mortais estão no Santuário na cidade de Terano, próximo do monastério. 

-- autoria própria



6 de jun. de 2013

Chama de amor viva - S. João da Cruz

Em suas obras, São João apresenta o caminho de purificação da alma, ou seja, a posse progressiva e jubilosa de Deus, até que a alma chegue a sentir que ama a Deus com o mesmo amor com que é por Ele amada. A poesia Chama de amor viva continua nesta perspectiva, descrevendo mais pormenorizadamente o estado de união transformadora com Deus. A comparação utilizada por João é sempre a do fogo: assim como o fogo, quanto mais arde e consome a madeira, tanto mais se torna incandescente até se tornar chama, também o Espírito Santo, que durante a noite obscura purifica e limpa a alma, com o tempo ilumina-a e aquece-a como se fosse uma chama. A vida da alma é uma festa contínua do Espírito Santo, que deixa entrever a glória da união com Deus na eternidade.

Oh chama de amor viva,
Que eternamente feres
Da minha alma o mais profundo ponto!
Já que não és esquiva,
Acaba já, se queres;
Rasga o tecido deste suave encontro.

Oh cativeiro suave!
Oh deliciosa chaga!
0h toque delicado! Oh mão querida,
Que à vida eterna sabe,
Toda a dívida paga!
Matando, a morte transforme em vida.

Oh lâmpadas de fogo,
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido,
Que esteva escuro e cego,
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto ao seu querido!

Quão manso e amoroso
Acordas em meu seio,
Onde em segredo, solitário, moras;
E em teu aspirar gostoso,
De bem e glória cheio,
Quão delicadamente me enamoras.


5 de jun. de 2013

A Igreja adianta-se como a aurora

A madrugada ou aurora é o tempo da passagem das trevas para a luz. Portanto, é muito justo dar estes nomes à Igreja de todos os eleitos. Pois, conduzida da noite da infidelidade à luz da fé, qual aurora depois das trevas, ela se abre para o dia com o esplendor da caridade celeste. O Cântico dos Cânticos bem o diz: Quem é esta que se adianta qual aurora nascente? Indo em busca dos prêmios da vida celeste, a Santa
Igreja é chamada aurora porque abandonou as trevas dos pecados e começou a refulgir com a luz da justiça.

Sobre esta qualidade de ser madrugada ou aurora, temos algo a pensar com mais sagacidade. A aurora e a madrugada anunciam ter passado a noite, no entanto, ainda não mostram toda a claridade do dia: repelem aquela, acolhem este, e, enquanto isto, as trevas e a luz se misturam. Que somos nós nesta vida, nós que seguimos a verdade, a não ser aurora ou madrugada? Já havendo realizado algo que pertence à luz, no entanto, ainda não nos libertamos inteiramente das trevas. Pelo Profeta foi dito a Deus: Diante de ti, nenhum vivente é justo. E em outro lugar: Em muitas coisas falhamos todos.

Por isto, quando Paulo diz: Passou a noite; não acrescenta logo: Chegou o dia, mas: dia se aproximou. Ao dizer que, passada a noite, o dia não veio mas se aproximou, demonstra, sem qualquer dúvida, estar ainda na aurora, depois das trevas e antes do sol.

A Santa Igreja dos eleitos será então plenamente dia quando já não houver nela sombra de pecado. Será então plenamente dia quando for clara pelo perfeito ardor da luz em seu íntimo. Bem se mostra estar a aurora como que de passagem, nas palavras: E mostrastes à aurora seu lugar. Aquele a quem se mostra seu lugar é chamado daqui para ali, é claro. Qual é então o lugar da aurora, a não ser a perfeita claridade da visão eterna? Quando, conduzida, lá chegar, nada mais lhe restará das passa das trevas da noite. A aurora apresa-se em alcançar seu lugar, no testemunho do Salmista: Minha alma tem sede do Deus vivo; quando irei e aparecerei diante da face de Deus? A este lugar já conhecido a aurora apressava-se a chegar, quando Paulo dizia ter o desejo de morrer e estar com Cristo. E de novo: Para mim, viver é Cristo e morrer, um lucro.

-- Dos Livros “Moralia” sobre Jó, de São Gregório Magno, papa (século VI)

3 de jun. de 2013

Salmo 42: Desejo do Templo de Deus

Queridos irmãos e irmãs,

Numa Audiência geral de há algum tempo, ao comentar o Salmo que antecede o que acabamos de cantar, dissemos que ele se ligava intimamente com o Salmo seguinte. De fato, os Salmos 41 e 42 constituem um único cântico, dividido em três partes pela própria antífona:  "Porque estás abatida, ó minha alma, e te perturbas dentro de mim? Confia no Senhor, que ainda o hei-de louvar. Ele é a alegria do meu rosto. Ele é o meu Deus" (Sl 41, 6.12; 42, 5).

Estas palavras, semelhantes a um solilóquio, exprimem os sentimentos profundos do Salmista. Ele está longe de Sião, ponto de referência da sua existência porque é sede privilegiada da presença divina e do culto dos fiéis. Por isso, sente uma solidão feita de incompreensão e até de agressividade por parte dos incrédulos, agravada pelo isolamento e pelo silêncio por parte de Deus. Mas o Salmista reage contra a tristeza com um convite à confiança, que ele dirige a si mesmo, e com uma bonita afirmação de esperança:  ele espera poder louvar ainda a Deus, "salvação do seu rosto".

No Salmo 42, em vez de falar só a si próprio como no Salmo anterior, o Salmista dirige-se a Deus e suplica-Lhe que o defenda dos adversários. Repetindo quase literalmente uma invocação anunciada no outro Salmo (cf. 41, 10), o orante dirige desta vez efectivamente a Deus o brado de desconforto:  "Por que é que então me repelis? Por que ando eu triste sob a pressão do meu inimigo?" (Sl 42, 2).

Contudo ele já sente o intervalo obscuro da distância que está para terminar e exprime a certeza da volta a Sião para encontrar a casa divina. A cidade santa já não é a pátria perdida, como acontecia na lamentação do Salmo anterior (cf. Sl 41, 3-4), mas tornou-se a meta jubilosa, rumo à qual se está a caminho. A orientação da vinda para Sião será a "verdade" de Deus e a sua "luz" (cf. Sl 42, 3). O próprio Senhor será o fim último da viagem. Ele é invocado como juiz e defensor (cf. vv. 1-2). Três verbos realçam a sua implorada intervenção:  "fazei-me justiça", "defendei a minha causa", "livrai-me" (v. 1). São como que três estrelas de esperança, que se  acendem  no  céu  tenebroso  da prova  e  marcam  a  aurora  iminente  da salvação.

É significativa a leitura que Santo Ambrósio faz desta experiência do Salmista, aplicando-a a Jesus que reza no Getsémani:  "Não quero que te admires se o profeta diz que a sua alma estava abatida, visto que o próprio Senhor Jesus disse:  agora a minha alma está abatida. De fato, quem assumiu as nossas debilidades, assumiu também a nossa sensibilidade, o que fez com que ficasse entristecido até à morte, mas não pela morte. Não teria podido causar melancolia uma morte voluntária, da qual dependia a felicidade de todos os homens... Portanto estava triste até à morte, na esperança de que a graça fosse realizada. Demonstra isto o seu próprio testemunho, quando diz da sua morte:  há um batismo com o qual devo ser batizado:  e como me sinto angustiado enquanto não for realizado! "

Agora, na continuação do Salmo 42, diante dos olhos do Salmista está para se abrir a solução tão desejada:  o regresso à fonte da vida e da comunhão com Deus. A "verdade", ou seja a fidelidade amorosa do Senhor, e a "luz", isto é, a revelação da sua benevolência, são descritas como mensageiras que o próprio Deus enviará do céu a fim de tomar pela mão o fiel e conduzi-lo à meta desejada (cf. Sl 42, 3).

É muito eloquente a sequência das etapas de aproximação de Sião e do seu centro espiritual. Primeiro aparece "o monte santo", a colina na qual se eleva o templo e a fortaleza de David. Depois, vêm "as habitações", ou seja, o santuário de Sião com todos os seus espaços e edifícios que o compõem. Segue-se, depois, "o altar de Deus", a sede dos sacrifícios e do culto oficial de todo o povo. A meta última e decisiva é o Deus da alegria, é o abraço, a intimidade reencontrada com Ele, que antes estava longe e silencioso.

A este ponto, tudo é cântico, júbilo, festa (cf. v. 4). No original hebraico fala-se do "Deus que é alegria do meu júbilo". Trata-se de uma maneira de dizer para exprimir o superlativo:  o Salmista quer realçar que o Senhor é a raiz de qualquer felicidade, é a alegria suprema, é a plenitude da paz.

A tradução grega dos Setenta parece ter recorrido a uma palavra aramaica equivalente que indica a juventude e traduziu "ao Deus que alegra a minha juventude", introduzindo, desta forma, a idea do vigor e da intensidade da alegria dada pelo Senhor. O saltério latino da Vulgata, que é uma tradução feita com base no grego, diz assim:  "ad Deum qui laetificat juventutem meam". Desta forma, o Salmo era recitado aos pés do altar, na anterior liturgia eucarística, como invocação introdutória ao encontro com o Senhor.


A lamentação inicial da antífona dos Salmos 41-42 ressoa pela última vez no final (cf. Sl 42, 5). O orante ainda não alcançou o templo de Deus, ainda está envolvido pela obscuridade da provação; mas já brilha aos seus olhos a luz do encontro futuro e os seus lábios já conhecem a tonalidade do cântico de alegria. O apelo é, a este ponto, mais marcado pela esperança. De facto, observa Santo Agostinho comentando o nosso Salmo:  "Espera em Deus, responderá à sua alma aquele que por ela está perturbado... Entretanto vive na esperança. A esperança que se vê não é esperança; mas se esperamos no que não vemos é pela paciência que nós a aguardamos (cf. Rm 8, 24-25)".

Então, o Salmo torna-se a oração de quem é peregrino na terra e ainda está em contacto com o mal e com o sofrimento, mas tem a certeza de que o ponto de chegada da história não é um abismo de morte, mas o encontro salvífico com Deus. Esta certeza é ainda mais forte para os cristãos, aos quais a Carta aos Hebreus proclama:  "Vós, porém, aproximastes-vos do monte de Sião, da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celeste, das miríades de anjos, da assembleia dos primogénitos que estão inscritos nos Céus, do juiz que é o Deus de todos, dos espíritos dos justos que atingiram a perfeição, de Jesus, o mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala melhor do que o de Abel" (Hb 12, 22-24).

-- Papa João Paulo II, na audiência de 6 de Fevereiro de 2002

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...