27 de fev. de 2011

Confissões, de São Patrício - parte I

São Patrício (386-461) foi um missionário cristão, é um dos santos padroeiros da Irlanda, juntamente com Santa Brígida de Kildare e São Columba. Quando tinha dezesseis anos foi capturado e vendido como escravo para a Irlanda, de onde escapou e retornou à casa de sua família seis anos mais tarde. Iniciou então sua vida religiosa e retornou para a ilha de onde tinha fugido para pregar o Evangelho. Converteu centenas de pessoas, muitas delas se tornaram monges. Para explicar como a Santíssima Trindade era três e um ao mesmo tempo utilizava o trevo de três folhas e por isso o mesmo tem papel importante na cultura Irlandesa. É bastane cultuado na Irlanda e Estados Unidos. A catedral de Nova Iorque leva seu nome. Tem-se conhecimento de duas cartas escritas por ele. A primeira, que agora publico, chama-se Confissões, e é como uma auto-biografia.



Eu, Patrício, um pecador, o mais rústico e o menor entre todos os fiéis, profundamente desprezível para muitos, tive por pai o diácono Calpurnius, filho do falecido Potitus, um presbítero que foi morador de um vilarejo chamado Bannavem Taberniae I. Ele tinha uma pequena casa de campo bem próxima, onde eu fui capturado. Naquela época eu tinha cerca de dezesseis anos de idade. Eu ignorava o verdadeiro Deus e junto com milhares de pessoas fui capturado e conduzido ao cativeiro na Irlanda segundo o nosso merecimento, por afastarmos-nos bastante de Deus, não guardamos os seus preceitos, nem sermos obedientes aos nossos sacerdotes, que nos exortavam a respeito da nossa salvação. E o Senhor lançou sobre nós a violência de sua cólera e nos dispersou entre vários povos até os confins da terra, onde agora na minha pequenez, me encontro entre estrangeiros.

E lá o Senhor abriu o entendimento do meu coração de incredulidade, afim de que, mesmo muito tarde, me recordasse dos meus pecados e me convertesse de todo coração ao Senhor meu Deus, que considerou a minha insignificância e teve misericórdia da minha mocidade e ignorância. Ele me protegeu antes que eu o conhecesse e antes que eu soubesse distinguir entre o bem e o mal e me fortificou e consolou como um pai faz ao filho.

Por esta razão não posso me calar, nem seria isto apropriado, diante de tantas dádivas e graças que o Senhor dignou-se a me conceder na terra do meu cativeiro; porquanto esta é nossa maneira de retribuir, afim de que depois da correção de Deus e de reconhecê-lo, exaltar e confessar suas maravilhas diante de todas as nações que estão debaixo do céu.

Porque não há outro Deus, nunca houve antes, nem haverá no futuro, além de Deus Pai não gerado, sem princípio, do qual procede todo o princípio, quem tudo possui, bem como tem nos sido dito; e seu filho Jesus Cristo, que assim como o pai evidentemente sempre existiu, antes do começo dos tempos em espírito com o pai, inefável, criado antes da origem do mundo, e por ele mesmo foram criadas todas as coisas visíveis e invisíveis. Ele foi feito homem, venceu a morte e foi recebido no céu junto do pai, e foi-lhe dado todo poder absoluto sobre todo nome no céu, na terra e no inferno para que assim toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor e Deus, em quem nós cremos e esperamos o advento de sua iminente volta, como juiz dos vivos e dos mortos. Este que dará para cada um segundo os seus feitos, e derramou em nós abundantemente o seu Espírito Santo, o dom e a garantia da imortalidade, que tornou os crentes e obedientes em filhos de Deus e co-herdeiros de Cristo: àquele que confessamos e adoramos, O único Deus na trindade do seu santo nome.

Pois ele mesmo disse por intermédio do profeta: “Invoque-me no dia das suas tribulações e eu te libertarei e tu me glorificarás” e novamente disse: “É honroso revelar e confessar as obras de Deus”. Eu não ignoro o testemunho do meu Senhor, que no Salmo diz: “Tu destróis os que proferem mentira”; e novamente disse: A boca mentirosa traz a morte para a alma . E igualmente o Senhor disse no evangelho: No dia do Juízo os homens prestarão contas de cada palavra vã que disseram.

Por esta razão tenho pensado em escrever, mas até agora tenho hesitado; na verdade temi me expor na língua dos homens, porque não me instrui da mesma maneira que os outros, que têm assimilado bem tanto a lei como as Sagradas Escrituras e nunca mudaram o idioma desde a infância, mas ao contrário, sempre o tem aperfeiçoado. Enquanto a nossa linguagem e idioma foram traduzidos para uma língua estrangeira, assim facilmente se pode provar a partir de uma amostra dos meus escritos a minha qualidade em retórica, a minha instrução e também erudição, porque, está escrito: “A sabedoria será reconhecida pelo modo de falar, no entendimento, e no conhecimento da doutrina da verdade”.

Mas porque me desculpar perto da verdade, especialmente com presunção, de modo que somente agora me aproximando da minha velhice posso obter o que não consegui na minha juventude? Porque meus pecados impediram-me de confirmar o que anteriormente tinha lido superficialmente. Mas quem acreditará em mim ainda que repita o que disse antes?

Um jovenzinho, talvez longe disso, quase um garoto imberbe, capturado antes que soubesse o que deveria buscar ou evitar. Então, consequentemente, hoje me envergonho e ardentemente temo expor minha ignorância, porque eu não sou eloqüente assim verdadeiramente, não consigo expressar como o espírito está ávido por fazer e tanto a alma quanto o entendimento se mostram dispostos.

Mas se esta graça fosse me dada como foi aos outros, em gratidão eu verdadeiramente não me calaria, e se por acaso me expus aos outros e me coloquei perante eles com minha ignorância e meu modo lento de falar, verdadeiramente está escrito: “As línguas balbuciantes com velocidade aprendam a falar da paz”. Quanto mais devemos atingi-lo, nós que somos como é dito: Uma carta de Cristo em saudação até os confins da terra...  Escrito em vossos corações não com tinta, mas com o Espírito Santo do Deus vivo. E outra vez mais: O Espírito testifica que até mesmo a vida dos rústicos (rusticidade) é criada pelo Altíssimo.

Por isso eu, o maior dos camponeses , fugitivo, evidentemente ignorante, alguém que não é capaz de prever o futuro, mas sabe com certeza que, em todo o caso, antes de ter sido humilhado, eu era como uma pedra que jazia no lodo profundo. E aquele que tem todo o poder veio a mim e em sua misericórdia me levantou bem alto, colocou-me no topo do muro; e de lá corajosamente devo exclamar em gratidão ao Senhor por tantos benefícios agora e por todo o sempre, benefícios tão grandes que a mente humana não pode estimar.

Dessa maneira, espantem-se grandes e pequenos que temem a Deus e vós, senhores, oradores eloqüentes, ouvi, pois e examinai cuidadosamente. Quem me chamou, eu, um estúpido, do meio daqueles que são vistos como sábios e peritos na lei, poderosos na palavra e em todas as coisas? Eu, verdadeiramente miserável neste mundo, sendo inspirado mais que os outros- contanto que- com temor e reverência e sem querela, fielmente pudesse me mostrar ao povo para quem o amor de Cristo me trouxe e deu-me em minha vida, se eu fosse digno, para servi-los verdadeiramente com humildade e sinceridade.

Assim, pois, na medida da minha fé na trindade, me convém reconhecer e sem noção do perigo, proclamar o dom de Deus e a sua consolação eterna, confiantemente e sem temor difunndir o nome de Deus por toda parte, afim de que mesmo depois da minha morte, eu deixe uma herança para os meus irmãos e filhos e a tantos milhares de homens que batizei no Senhor.

E eu não era digno, nem de tal natureza que o senhor concedesse ao seu pequeno servo, após provações e tantas penas, depois do cativeiro e após muitos anos, tantas graças me desse naquele povo; uma coisa que no tempo da minha juventude eu jamais esperei, nem mesmo imaginei.

Mas, depois que alcancei a Irlanda e que eu passei a apascentar o rebanho cotidianamente e orava várias vezes ao dia, mais e mais o amor de Deus e o meu temor e fé por ele cresceram e o meu espírito tocado de tal maneira, que em dia cheguei a contar mais de cem orações e de noite quantidade semelhante, e ainda ficava nas florestas e nas montanhas, acordava antes da luz do dia para orar na neve, no gelo e na chuva, e nenhum mal eu sentia e nenhuma preguiça estava em mim, como percebo agora, porque o espírito ardia dentro de mim.

E lá naturalmente uma noite no meu sono eu ouvi uma voz dizendo para mim: “Fazes bem em jejuar, pois brevemente partirás para a tua pátria” e novamente muito pouco tempo depois ouvi uma voz me dizendo: “Eis que teu navio está pronto” e não era em um lugar perto não, pelo contrário, estava a duzentas milhas de distância onde eu nunca havia estado e não havia ninguém conhecido. Então pouco tempo depois eu me coloquei em fuga e abandonei o homem com quem estivera seis anos e avancei na virtude de Deus, que dirigiu meu caminho para o bem e eu nada temi até que alcancei aquele navio.

E lá naturalmente uma noite no meu sono eu ouvi uma voz dizendo para mim: “Fazes bem em jejuar, pois brevemente partirás para a tua pátria” e novamente muito pouco tempo depois ouvi uma voz me dizendo: “Eis que teu navio está pronto” e não era em um lugar perto não, pelo contrário, estava a duzentas milhas de distância onde eu nunca havia estado e não havia ninguém conhecido. Então pouco tempo depois eu me coloquei em fuga e abandonei o homem com quem estivera seis anos e avancei na virtude de Deus, que dirigiu meu caminho para o bem e eu nada temi até que alcancei aquele navio.

E naquele mesmo dia o navio estava de partida, e eu disse que tinha condições de navegar com eles. O capitão se desagradou e rispidamente irado respondeu: “de modo algum tente ir conosco” tendo ouvido isto me separei deles para uma pequena cabana onde estava ficando, e no caminho comecei a orar e antes que terminasse a oração escutei um deles gritando bem alto depois de mim: “venha rapidamente, porque os homens estão te chamando” e imediatamente voltei pra junto deles, e começaram a me dizer: “venha, porque de boa fé recebemos-te, faça conosco amizade do modo que desejar” e naquele dia então me recusei a lhes sugar as mamas pelo temor de Deus, mas, entretanto esperava que eles viessem a ter fé em Jesus Cristo, porque eram gentios . Por isso continuei com eles e sem demora nos colocamos ao mar.

E depois de três dias alcançamos a terra e caminhamos vinte e oito dias através de uma região desértil até que a comida acabou e a fome nos alcançou. Um dia o capitão começou a me dizer: “Por que acontece isso Cristão? Tu dizes que teu Deus é grande e onipotente, porque razão você não pode orar por nós? Pois podemos morrer de fome; é provável que jamais vejamos outro ser humano”. Eu então lhes disse confiantemente: convertam-se pela fé de todo o coração ao Senhor Deus meu, pois nada é impossível para ele e hoje mesmo ele mandará alimento para vós em vosso caminho até que se fartem, pois em toda a parte ele traz abundância. E com a graça de Deus isto realmente aconteceu: eis que uma vara de porcos apareceu no caminho diante dos nossos olhos, e muitos dentre os porcos foram mortos. E neste lugar por duas noites permaneceram e fartaram-se daquelas carnes dos porcos e foram revigorados da fome, porque muitos deles desfaleciam e de outra forma teriam sido abandonados semimortos à beira do caminho. Depois disto renderam extremas graças a Deus e eu fui honrado aos seus olhos, e a partir daquele dia tiveram alimento abundantemente, descobriram mel silvestre e ofereceram parte a mim e um deles disse: é um sacrifício; Graças a Deus, deste nada provei.

Na mesma noite eu estava dormindo e Satanás violentamente tentou-me, da forma que eu me lembrarei enquanto neste corpo estiver, ele caiu sobre mim como um enorme rochedo e nenhum dos meus membros podia se mexer. Mas de onde me veio à idéia, ignorante espiritual que sou, de clamar por Elias? Neste meio tempo vi no céu o sol surgindo e durante o clamar “Elias, Elias, com toda a minha força” eis que o esplendor daquele sol caiu sobre mim imediatamente e me sacudiu livrando-me de todo o peso, creio que fui ajudado por Cristo, meu Senhor, e este espírito agora chamava por mim e espero que assim seja no dia da minha aflição, como diz no evangelho: Naquele dia, diz o Senhor, não sois vós que falais, mas o espírito de vosso pai que fala em vós.

E mais uma vez, anos mais tarde fui feito cativo pela segunda vez. Na primeira noite, eu permaneci com eles. Ouvi, então, uma voz divina me dizendo: “você permanecerá dois meses com eles” e assim aconteceu: na sexagésima noite o meu Senhor me libertou das mãos deles.

Além disso, Mesmo na viagem (Deus) nos proveu de alimento, fogo e tempo seco todos os dias, até que no décimo dia encontramos gente. Assim como sugeri mais acima, viajamos vinte e oito dias através de terras desabitadas e de fato na noite que encontramos gente nada tínhamos de alimento.

E depois de uns poucos anos eu estava de novo na Bretanha com meus pais, que me acolheram como um filho e rogaram-me intensamente que eu, após ter passado por tantas tribulações que nunca partisse para longe deles.

-- Das Cartas de São Patrício, (século V

23 de fev. de 2011

Onde abundou o delito, superabundou a graça

Onde encontrar repouso tranqüilo e firme segurança para os fracos, a não ser nas chagas do Salvador? Ali permaneço tanto mais seguro, quanto mais poderoso é ele para salvar. O mundo agita, o corpo dificulta, o demônio arma ciladas; não caio, porque estou fundado sobre rocha firme. Pequei e pequei muito; a consciência abala-se, mas não se perturba, pois me lembro das chagas do Senhor. Ele foi ferido por causa de nossas iniqüidades. Que pecado tão mortal que a morte de Cristo não apague? Se vier à mente tão poderoso e eficaz remédio, não haverá mal que possa aterrorizar.

Por isso, muito errou quem disse: Tão grande é o meu pecado que não merece perdão. Mostra com isso não ser membro de Cristo nem lhe interessar o mérito de Cristo, por apoiar-se no próprio merecimento, declarar coisa sua o que pertence a outro, como acontece com um membro em relação à cabeça.

Quanto a mim, vou buscar o que me falta confiadamente nas entranhas do Senhor, tão cheias de misericórdia, que não lhe faltam fendas por onde se derrame. Cavaram suas mãos e seus pés, traspassaram seu lado; por estas fendas é-me permitido sugar o mel da pedra, o óleo do rochedo duríssimo, quero dizer, provar e ver quão suave é o Senhor.

Ele alimentava pensamentos de paz e eu não sabia. Pois quem conheceu o pensamento do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Mas o cravo que penetra tornou-se-me a chave que abre a fim de ver a vontade do Senhor. Que verei através das fendas? Clama o cravo, clama a chaga que Deus está em Cristo reconciliando o mundo consigo. A espada atravessou sua alma e tocou seu coração; é-lhe agora impossível deixar de compadecer-se de minhas misérias.

Abre-se o íntimo do coração pelas chagas do corpo, abre-se o magno sacramento da piedade, abrem-se as entranhas de misericórdia de nosso Deus que induziram o Oriente, vindo do alto a visitar-nos. Qual o íntimo que se revela pelas chagas? Como poderia brilhar de modo mais claro do que em vossas chagas, que vós, Senhor, sois suave e manso e de imensa misericórdia? Maior compaixão não há do que entregar sua vida por réus de morte e condenados.

Em vista disso, meu mérito é a misericórdia do Senhor. Nunca me faltam méritos enquanto não lhe faltar a comiseração. Se forem numerosas as misericórdias do Senhor, eu muitos méritos terei. Que acontecerá se me torno bem consciente dos meus muitos pecados? Onde abundou o delito, superabundou a graça. E se as misericórdias de Deus são de sempre e para sempre, também eu cantarei eternamente as misericórdias do Senhor. Acaso é minha a justiça? Senhor, lembrar-me-ei unicamente de vossa justiça. Vossa, sim, e minha; porque vós vos fizestes para mim justiça de Deus.

-- Dos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, de São Bernardo, abade (século XII)





22 de fev. de 2011

Uma Alma Precisa de Oração

Não é pequena lástima e confusão que, por nossa culpa, não nos entendamos a nós mesmos, nem saibamos quem somos. Não seria grande ignorância, minhas filhas, que perguntassem a alguém quem era e não se conhecesse, nem soubesse quem foi seu pai, nem sua mãe, nem sua terra? Pois, se isto seria grande estupidez, sem comparação é maior a que há em nós quando não procuramos saber que coisa somos e só nos detemos nestes corpos; e assim, só a vulto sabemos que temos alma, porque o ouvimos e porque no-lo diz a fé. Mas, que bens pode haver nesta alma ou quem está dentro dela, ou o seu grande valor, poucas vezes o consideramos; e assim se tem tão pouco cuidado em conservar sua formosura. 

Dizia-me há pouco um grande letrado, que as almas que não têm oração são como um corpo paralítico ou tolhido que, embora tenha pés e mãos, não os podem mexer; e são assim: há almas tão enfermas e tão habituadas às coisas exteriores, que não há remédio nem parece que possam entrar dentro de si mesmas; porque é tal o costume de tratarem sempre com pessoas servis e inúteis que estão à volta do castelo, que já quase se tornaram como elas e, sendo de natureza tão rica e podendo ter a sua conversação nada menos do que com Deus, não têm remédio. E se estas almas não procuram entender e remediar sua grande miséria, ficarão feitas em estátuas de sal por não voltarem a cabeça para si mesmas, assim como ficou a mulher de Lot por voltar a cabeça para trás.

Porque, tanto quanto eu posso entender, a porta para entrar no castelo de Deus é a oração e reflexão. Para que seja oração, há-de ser com atenção; porque quando a pessoa não está atenta a Quem fala e o que pede e o que está pedindo, não chamo oração, embora muito mexa os lábios. E, se algumas vezes o for, mesmo sem este cuidado, será porque esteve atenta em outras ocasiões; mas, quem tivesse por costume falar com a Majestade de Deus como fala a um seu escravo, que nem repara se diz mal, mas fala o que lhe vem à boca e ou que já decorou, porque já o fez outras vezes, não o tenho por oração e peço a Deus que nenhum cristão assim a considere. Que entre vós, irmãs, espero em Sua Majestade não haverá tal oração, pelo costume que há de tratardes de coisas interiores, e que é muito bom para não cairdes em semelhante bruteza.

-- Do livro Castelo Interior, de Santa Teresa de Ávila (século XVI)

21 de fev. de 2011

Sermão para a Festa da Cátedra de São Pedro

Dentre todos os homens do mundo, Pedro foi o único escolhido para estar à frente de todos os povos chamados à fé, de todos os apóstolos e de todos os padres da Igreja. Embora no povo de Deus haja muitos sacerdotes e pastores, na verdade, Pedro é o verdadeiro guia de todos aqueles que têm Cristo como chefe supremo. Deus dignou-se conceder a este homem, caríssimos filhos, uma grande e admirável participação no seu poder. E se ele quis que os outros chefes da Igreja tivessem com Pedro algo em comum, foi por intermédio do mesmo Pedro que isso lhes foi concedido.

A Festa da Cátedra de São Pedro é celebrada desde o século
V como sinal da unidade da Igreja, fundada sobre o Apóstolo.
A todos os apóstolos o Senhor pergunta qual a opinião que os homens têm a seu respeito; e a resposta de todos revela de modo unânime as hesitações da ignorância humana.

Mas, quando procura saber o pensamento dos discípulos, o primeiro a reconhecer o Senhor é o primeiro na dignidade apostólica. Tendo ele dito: Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo, Jesus lhe respondeu: Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu (Mt 16,16-17). Quer dizer, és feliz, porque o meu Pai te ensinou, e a opinião humana não te iludiu, mas a inspiração do céu te instruiu; não foi um ser humano que me revelou a ti, mas sim aquele de quem sou o Filho unigênito.

Por isso eu te digo, acrescentou, como o Pai te manifestou a minha divindade, também eu te revelo a tua dignidade: Tu és Pedro (Mt 16,18). Isto significa que eu sou a pedra inquebrantável, a pedra principal que de dois povos faço um só (cf. Ef 2,20.14), o fundamento sobre o qual ninguém pode colocar outro. Todavia, tu também és pedra, porque és solidário com a minha força. Desse modo, o poder, que me é próprio por prerrogativa pessoal, te será dado pela participação comigo.

E sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la (Mt 16,18). Sobre esta fortaleza, construirei um templo eterno. A minha Igreja destinada a elevar-se até ao céu deverá apoiar-se sobre a solidez da fé de Pedro.

O poder do inferno não impedirá esse testemunho, os grilhões da morte não o prenderão; porque essa palavra é palavra de vida. E assim como conduz aos céus os que a proclamam, também precipita no inferno os que a negam. Por isso, foi dito a São Pedro: Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra, será desligado nos céus (Mt 16,19).

Na verdade, o direito de exercer esse poder passou também para os outros apóstolos, e o dispositivo desse decreto atingiu todos os príncipes da Igreja. Mas não é sem razão que é confiado a um só o que é comunicado a todos. O poder é dado a Pedro de modo singular, porque a sua dignidade é superior à de todos os que governam a Igreja.

-- Dos Sermões de São Leão Magno, papa (século V)


19 de fev. de 2011

A esposa, sol da família


Maria, mãe de Cristo
A família tem o brilho de um sol que lhe é próprio: a esposa. Ouvi o que a Sagrada Escritura afirma e sente a respeito dela: A graça da mulher dedicada é a delícia do marido. Mulher santa e pudica é graça primorosa. Como o sol que se levanta nas alturas do Senhor, assim o encanto da boa esposa na casa bem-ordenada (Eclo 26,16.19.21).

Realmente, a esposa e mãe é o sol da família. É sol por sua generosidade e dedicação, pela disponibilidade constante e pela delicadeza e atenção em relação a tudo quanto possa tornar agradável a vida do marido e dos filhos. Irradia luz e calor do espírito.

Costuma-se dizer que a vida de um casal será harmoniosa quando cada cônjuge, desde o começo, procura não a sua felicidade, mas a do outro. Todavia, este nobre sentimento e propósito, embora pertença a ambos, constitui principalmente uma virtude da mulher.

Por natureza, ela é dotada de sentimentos maternos e de uma sabedoria e prudência de coração que a faz responder com alegria às contrariedades; quando ofendida, inspira dignidade e respeito, à semelhança do sol que ao raiar alegra a manhã coberta pelo nevoeiro e, quando se põe, tinge as nuvens com seus raios dourados.

A esposa é o sol da família pela limpidez do seu olhar e o calor da sua palavra. Com seu olhar e sua palavra penetra suavemente nas almas, acalmando-as e conseguindo afastá-las do tumulto das paixões. Traz o marido de volta à alegria do convívio familiar e lhe restitui a boa disposição, depois de um dia de trabalho ininterrupto e muitas vezes esgotante, seja nos escritórios ou no campo, ou ainda nas absorventes atividades do comércio ou da indústria.

A esposa é o sol da família por sua natural e serena sinceridade, sua digna simplicidade, seu distinto porte cristão; e ainda pela retidão do espírito, sem dissipação, e pela fina compostura com que se apresenta, veste e adorna, mostrando-se ao mesmo tempo reservada e amável.Sentimentos delicados, agradáveis expressões do rosto, silêncio e sorriso sem malícia e um condescendente sinal de cabeça: tudo isso lhe dá a beleza de uma flor rara mas simples que, ao desabrochar, se abre para receber e refletir as cores do sol.

Ah, se pudésseis compreender como são profundos os sentimentos de amor e de gratidão que desperta e grava no coração do pai e dos filhos, semelhante perfil de esposa e de mãe!

-- De uma alocução a um grupo de recém-casados, de Pio XII, papa (século XX)


16 de fev. de 2011

A Sabedoria de Deus preparou a Eucaristia para nós

* O texto é um comentário da passagem Pv 9,1-18

A Sabedoria construiu para si uma casa. O poder por si subsistente de nosso Deus e Pai preparou para si próprio uma casa: o universo onde ele habita por sua virtude. No universo colocou também o homem que ele criou à sua imagem e semelhança, composto de natureza visível e invisível.

Ergueu, então, sete colunas. O Espírito Santo deu os seus sete dons ao homem depois de criado e conformado a Cristo, para que cresse em Cristo e observasse seus mandamentos. Por estes dons, o homem espiritual chega à perfeição e se fortalece, pelo enraizamento na fé, na participação da vida sobrenatural. Sua fortaleza é dinamizada pela ciência, enquanto que sua ciência se manifesta pela fortaleza.

Assim, a natural nobreza do espírito humano é elevada pelo dom da fortaleza, e predisposta a procurar com fervor e a desejar inteiramente as vontades divinas, pelas quais tudo foi criado. Pelo dom do conselho, torna-se capaz de distinguir, entre o que é falso e as santíssimas vontades de Deus, incriadas e imortais. Deste modo tornamo-nos capazes de as meditar, ensinar e cumprir. Pelo dom da prudência, enfim, somos levados a aprovar e aceitar estas mesmas vontades e não outras. Estas três virtudes exaltam o natural esplendor do espírito.

Misturou em sua taça o vinho e preparou a mesa. Neste homem, em quem, como em uma taça, mesclam-se a natureza espiritual e a corpórea, Deus uniu à ciência das coisas o conhecimento dele próprio como o criador de tudo. Este dom da inteligência, tal qual o vinho, faz o homem embriagar-se de tudo quanto se refere a Deus. Sendo assim, graças a ele,que é o pão celeste, nutrindo as almas pela virtude e inebriando e deleitando pela doutrina, a Sabedoria dispõe tudo como as iguarias do celeste banquete para os que dele desejam participar.

Enviou os seus servos, chamando-os em alta voz à sua mesa, dizendo. Enviou os apóstolos, a serviço de sua divina vontade na proclamação do Evangelho, que provindo do Espírito está acima de toda a lei, quer escrita, quer natural, a fim de chamar todos a si. Nele próprio, como numa taça, mediante o mistério da encarnação, fez-se a mistura admirável das naturezas divina e humana, de maneira pessoal, isto é hipostática, sem confusão. Enfim, pelos apóstolos ele proclama: Quem é insensato, venha a mim. Quem é insensato, porque julga em seu coração que Deus não existe, abandone a impiedade, venha a mim pela fé, e saiba que sou eu o criador de tudo e Senhor.

Aos carentes de sabedoria ele diz: Vinde, comei comigo o meu pão e bebei o vinho que misturei para vós. Tanto àqueles que não têm obras da fé quanto aos mais perfeitos em sua doutrina ele chama: “Vinde, comei o meu corpo que à semelhança do pão dos fortes vos nutre; e bebei o meu sangue, que como vinho de doutrina celeste vos deleita e conduz à deificação; pois de modo admirável misturei o sangue à divindade para vossa salvação”.

-- Do Comentário sobre o Livro dos Provérbios, de Procópio de Gaza, bispo (século VI)




15 de fev. de 2011

Deus deu-se a conhecer por Jesus Cristo

Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível (Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e convive com eles (Bar. 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta economia da revelação realiza-se por meio de acções e palavras ìntimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultâneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação.

Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (Jo. 1,3), oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação (Rom. 1, 1-20) e, além disso, decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a Si mesmo, desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Depois da sua queda, com a promessa de redenção, deu-lhes a esperança da salvação (Gén. 3,15), e cuidou contìnuamente do género humano, para dar a vida eterna a todos aqueles que, perseverando na prática das boas obras, procuram a salvação (Rom. 2, 6-7). No devido tempo chamou Abraão, para fazer dele pai dum grande povo (Gén. 12,2), povo que, depois dos patriarcas, ele instruiu, por meio de Moisés e dos profetas, para que o reconhecessem como único Deus vivo e verdadeiro, pai providente e juiz justo, e para que esperassem o Salvador prometido; assim preparou Deus através dos tempos o caminho ao Evangelho.

Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu Filho (Heb. 1, 1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (Jo. 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem para os homens fala, portanto, as palavras de Deus (Jo. 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (Jo. 5,36; 17,4). Por isso, Ele, vê-lo a Ele é ver o Pai (Jo. 14,9), com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna.

Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há-de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (1 Tim. 6,14; Tit. 2,13).

A Deus que revela é devida a obediência da fé (Rom. 16,26; Rom. 1,5; 2 Cor. 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade e prestando voluntário assentimento à Sua revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do entendimento, e dá a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade. Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons.

-- Constituição Dogmática Dei Verbum Sobre a Revelação Divina (capítulo I), Papa Paulo VI, em 18 de Novembro de 1965




14 de fev. de 2011

A Busca da Sabedoria

Trabalhemos pelo alimento que não se perde. Trabalhemos na obra de nossa salvação. Trabalhemos na vinha do Senhor, para merecermos receber o salário de cada dia. Trabalhemos na sabedoria, pois esta diz: Quem trabalha em mim, não pecará. O campo é o mundo, diz a Verdade. Cavemos nele, pois aí está um tesouro escondido.Vamos desenterrá-lo! É assim a sabedoria, que se extrai de coisas ocultas. Todos nós a buscamos, todos nós a desejamos.

Foi dito: se quereis procurá-la, procurai. Convertei-vos e vinde! Queres saber do que te converter? Afasta-te de tuas vontades. Mas se não encontro em minhas vontades, onde então encontrarei a sabedoria? Minha alma deseja-a ardentemente; se vier a encontrá-la, isto não me basta. Cumpre pôr em meu seio uma medida boa, apertada, sacudida e transbordante. Tens razão. Feliz é o homem que encontra a sabedoria e que está cheio de prudência. Procura-a, pois, enquanto podes encontrá-la; e enquanto está perto, chama-a!

Queres saber como está perto a sabedoria? Perto está a palavra, no teu coração e na tua boca; mas somente se a procurares de coração reto. No coração encontrarás a sabedoria, e a prudência fluirá de teus lábios. Cuida, porém, de tê-la em abundância e que não te escape como num vômito.

Na verdade, se encontraste a sabedoria, encontraste mel. Não comas demasiado, para que, saciado, não o vomites. Come de modo a sempre teres fome. A própria sabedoria o diz: Aqueles que me comem, ainda têm fome. Não julgues já teres muito. Não te sacies para que não vomites e te seja retirado aquilo que pareces possuir, por teres desistido de procurar antes do tempo. Pelo fato de a sabedoria poder ser encontrada enquanto está perto, não se deve deixar de buscá-la e invocá-la. De outro modo, como disse ainda Salomão: assim como não faz bem a alguém tomar o mel em demasia, assim quem perscruta a majestade, sente-se oprimido pela glória.

Feliz o homem que encontra a sabedoria. Feliz, ou, antes, muito mais feliz quem mora na sabedoria. Talvez Salomão queira aqui significar a superabundância. São três as razões de fluírem em tua boca a sabedoria e a prudência: se houver nos lábios primeiro a confissão da própria iniqüidade; segundo a ação de graças e o canto de louvor; terceiro apalavra de edificação. Na verdade pelo coração se crê para a justiça, pela boca se confessa para a salvação. De fato, começando a falar, o justo se acusa. Depois, engrandece ao Senhor. Em terceiro, se até este ponto transborda a sabedoria, deve edificar o próximo.

-- Dos Sermões de São Bernardo, abade (século XII)





12 de fev. de 2011

A Arte de Viver Bem

Ilustração de São Roberto Belarmino, na capa do livro
Com a publicação do post anterior, a tradução do livro A Arte de Vivem Bem, escrito São Roberto Belarmino está completa, no melhor da minha capacidade. Por não ser profissional, não ter formação específica, o texto resultante certamente pode ser melhorado. O texto em inglês está aqui.

Os posts seguiram a sequencia do livro, mas alguns capítulos do livro foram divididos em mais de um post.

Este post é o índice, identifica os capítulos do livro e os posts:

Capítulo 1. Quem deseja morrer bem, deve viver bem
Quem vive bem, irá morrer bem


Capítulo 2. O segundo preceito, morrer para o mundo
Para viver bem, deve-se morrer para o mundo

Capítulo 3. O terceiro preceito, sobre as três virtudes teologais
As três virtudes teologais

Capítulo 4. O quarto preceito contêm três conselhos evangélicos
Três Conselhos Evangélicos

Capítulo 5. O quinto preceito, no qual os erros dos ricos deste mundo são expostos
O erro dos ricos deste mundo

Capítulo 6. O sexto preceito, no qual três virtudes morais são explicadas
Três virtudes morais: piedade, justiça e sobriedade.

Capítulo 7. O sétimo preceito, sobre as orações
Por que rezar?
Seis condições para a oração correta

Capítulo 8. O oitavo preceito, sobre o jejum
A importância do jejum
 O Modo de Jejuar

Capítulo 9. O nono preceito, sobre as esmolas
Os frutos da esmola
Como dar esmolas

Capítulo 10. O décimo preceito, sobre o sacramento do Batismo
 O Sacramento do Batismo

Capítulo 11. Sobre o Crisma
O Sacramento do Crisma

Capítulo 12. Sobre a Santa Eucaristia
O Sacramento da Eucaristia

Capítulo 13. O Sacramento da Penitência
 O Sacramento da Confissão

Capítulo 14. O décimo quarto, sobre o sacramento das Santas Ordens
O Sacramento da Ordem


Capítulo 15. O décimo quinto preceito, o Matrimônio
O Sacramento do Matrimônio

Capítulo 16. O décimo sexto preceito, sobre o sacramento da Extrema Unção
O Sacramento da Extrema-Unção - parte I
O Sacramento da Extrema-Unção - parte II
O Sacramento da Extrema-Unção - parte III
O Sacramento da Extrema-Unção - parte IV

O Sacramento da Extrema Unção - parte 4

O sentido do toque é o próximo, dos cinco sentidos é mais vivo e carnal, pelo qual muitos pecados entram na própria alma e na de outras pessoas. Sobre os pecados da carne, São Paulo fala: Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, ... (Gl 5,19). Por estas três palavras o apóstolo inclui todos os tipos de impurezas. Nem há necessidade de aprofundar-se sobre o tamanho destes pecados, dos quais os fiéis devem se manter distantes e cujos nomes nem devem ser ouvidos entre eles. São Paulo assim escreveu na Epístola aos Efésios: Quanto à fornicação, à impureza, sob qualquer forma, ou à avareza, que disto nem se faça menção entre vós, como convém a santos (Ef 5,3).

De novo, contra estes crimes, o que segue parece-me ser excelentes remédios, e como tais, são remendados por médicos para curar seus pacientes. Primeiro, os doentes devem jejuar e se abster de carne ou vinho. Da mesma forma, todos devem fazer o mesmo com relação à luxúria, abster-se de comer e beber em excesso.

Assim o apóstolo aconselha Timóteo: Não continues a beber só água, mas toma também um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas freqüentes indisposições (1Tm 5,23). Ou seja, tome vinho para ajudar com os problemas de estômago, mas apenas moderamente para evitar bebedeiras, pois muito vinho é luxúria. Também, médicos receitam remédios amargos, fazem incisões, tirar sangue, e outros atos dolorosos por natureza. Os santos repetem os apóstolos: Ao contrário, castigo o meu corpo e o mantenho em servidão, de medo de vir eu mesmo a ser excluído depois de eu ter pregado aos outros (1Cor 9,27). Já os mais antigos eremitas e anacoretas mantinham uma vida oposta aos prazeres e deleites da carne, em jejuns e vigílias, deitando-se no chão, vestidos de sacos. Assim faziam para não acostumar o corpo às delicias e concupiciências da carne.

Jesus Cristo, o filho do carpinteiro


Menciono um exemplos entre muitos. São Jerônimo menciona ao narrar a vida de Santo Hilário, que este ao sentir-se tentado com pensamentos impuros, dizia para seu corpo: "não deixarei fortalecer-se, nem alimentar-se com milho, mas apenas com palha; te farei sentir fome e sede, carregar pesos, acostumar ao calor e frio, para que pense mais em simples alimentos e menos em prazeres". Para fortalecer o corpo, médicos indicam caminhadas, jogar bola ou qualquer atividade física semelhante. Para fortalecer a alma, mantê-la saudável, se desejamos salvar nossa alma, gastar mais tempo todos os dias meditando os mistérios da redenção ou outros assuntos piedosos. Se não conseguimos nos concentrar nestas meditações, podemos ler as Sagradas Escrituras, as vidas de santos ou outros livros semelhantes.

Em suma, um poderoso remédio contra as tentações da carne e todos os pecados da impureza, é afastar-se das fraquezas, pois ninguém é mais exposto a tais tentações que os desocupados, que passam o tempo a fofocar, observar outros de suas janelas ou conversando com seus amigos. Ao contrário, ninguém é mais livre de tais tentações que os trabalhadores que passam o dia em trabalhos braçais ou outras artes.

Para nosso exemplo, o Salvador nasceu em uma família pobre, que dependia do seu próprio trabalho para alimentar-se, e antes de começar sua missão, era chamado de filho do carpinteiro, a quem ele ajudava. De Cristo foi dito: Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria? (Mc 6,3) E posso acrescentar, que os trabalhadores podem se dar por satisfeitos uma vez que a sabedoria de Deus escolheu para Si, Sua mãe e Seu pai esta situação; não porque precisassem de tais remédios, mas para nos advertir sobre os perigos da ociosidade, se quisermos evitar muitos pecados.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)


-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português.

10 de fev. de 2011

Nossa Senhora falou comigo

Certo dia, fui com duas meninas às margens do Rio Gave buscar lenha. Ouvi um barulho, voltei-me para o prado, mas não vi movimento nas árvores. Levantei a cabeça e olhei para a gruta. Vi, então, uma senhora vestida de branco; tinha um vestido alvo com uma faixa azul celeste na cintura e uma rosa de ouro em cada pé, da cor do rosário que trazia com ela.

Santa Maria Bernarda Soubirous
Ao vê-la, esfreguei os olhos, julgando estar sonhando. enfiei a mão no bolso do meu vestido onde encontrei o rosário. Quis ainda fazer o sinal da cruz, porém, não consegui levar a mão à testa. Entretanto, quando aquela Senhora fez o sinal da cruz, tentei fazê-lo também; a mão tremia, mas consegui. Comecei a rezar o rosário, embora não movesse os lábios. Quando terminei, a visão logo desapareceu.

Perguntei às duas meninas se tinham visto alguma coisa; disseram que não, e quiseram saber o que eu tinha para lhes contar. Garanti-lhes que vira uma Senhora vestida de branco, mas não sabia quem era, e pedi-lhes que não contassem a ninguém. Elas então me aconselharam a não voltar mais àquele lugar, porém não concordei. Voltei pois no domingo, porque me sentia interiormente chamada.

Somente na terceira vez, a Senhora me falou e perguntou-me se eu queria voltar ali durante quinze dias. Respondi-lhe que sim. Mandou-me dizer aos sacerdotes que construíssem uma capela naquele lugar. Em seguida, ordenou-me que bebesse da fonte. Como não vi fonte alguma, dirigi-me ao rio Gave. Ela disse-me que não era lá, e fez-me um sinal com o dedo, indicando-me o lugar onde estava a fonte. Dirigi-me para lá, mas só vi um pouco de água lamacenta; quis encher a mão e beber, mas não consegui nada. Comecei a cavar, e logo pude tirar um pouco de água. Joguei-a fora por três vezes, até na quarta pude beber. Em seguida, a visão desapareceu e fui-me embora. 

Durante quinze dias lá voltei e a Senhora apareceu-me todos os dias, com exceção de uma segunda e uma sexta-feira. Repetiu-me, vária vezes, que dissesse aos sacerdotes para construir, ali, uma capela. Ela mandava que fosse à fonte para lavar-me e que rezasse pela conversão dos pecadores. Muitas e muitas vezes perguntei-lhe quem era, mas ela apenas sorria com bondade. Finalmente, com braços e olhos erguidos para o céu, disse-me que era a Imaculada Conceição.

Durante esses quinze dias, também me revelou três segredos, proibindo-me de dizê-los a quem quer que fosse; até o presente os tenho guardado com toda fidelidade.

-- De uma carta de Santa Maria bernarda Soubirous, virgem (século XIX)


9 de fev. de 2011

Santa Escolástica, aquela que mais amou

Escolástica, irmã de São Bento, consagrada ao Senhor desde a infância, costumava visitar o irmão uma vez por ano. O homem de Deus descia e vinha encontrar-se com ela numa propriedade do mosteiro, não muito longe da porta. Certo dia veio ela como de costume, e seu venerável irmão com alguns discípulos foi ao seu encontro. Passaram o dia inteiro em louvores a Deus e em santas conversas, de tal modo que já se aproximavam as trevas da noite quando se sentaram à mesa para tomar a refeição.

Como durante as santas conversas o tempo fosse passando, a santa monja rogou-lhe: “Peço-te, irmão que não me deixes esta noite, para podermos continuar falando até de manhã sobre as alegrias da vida celeste”. Ao que ele respondeu: “Que dizes tu, irmã? De modo algum posso passar a noite fora de minha cela”.
Santa Escolástica e São Bento

A santa monja ao ouvir a recusa do irmão, pôs sobre a mesa as mãos com os dedos entrelaçados e sobre elas inclinou a cabeça para suplicar o Senhor onipotente.Quando levantou a cabeça, rebentou uma grande tempestade, com tão fortes relâmpagos, trovões e aguaceiro, que nem o venerável Bento, nem os irmãos que tinham vindo em sua companhia puderam pôr um pé fora do lugar onde estavam.

Então o homem de Deus, vendo que não podia regressar ao mosteiro, começou a lamentar-se, dizendo: “Que Deus onipotente te perdoe irmã! Que fizeste?” Elas respondeu: “Eu te pedi e não quiseste atender-me. Roguei ao meu Deus e ele me ouviu. Agora, pois, se puderes, vai-te embora, despede-te de mim e volta para o mosteiro”.

E Bento que não quisera ficar ali espontaneamente, teve que permanecer contra a vontade. Assim, passaram a noite toda acordados, animando-se um ao outro com santas conversas sobre a vida espiritual.

Não nos admiremos que a santa monja tendo tido mais poder do que ele. Se, na verdade, como diz São João, Deus é amor (1Jo 4,8), com justíssima razão, teve mais poder aquela que mais amou.

Três dias depois, estando o homem de Deus na cela, levantou os olhos para o alto e viu a alma de sua irmã liberta do corpo, em forma de pomba, penetrar no interior da morada celeste. Cheio de júbilo por tão grande glória que lhe havia sido concedida, deu graças a Deus onipotente com hinos e cânticos de louvor. Deus enviou dois irmãos a fim de trazerem o corpo para o mosteiro, onde foi depositado num túmulo que ele mesmo preparara para si.

E assim, nem o túmulo separou aqueles que sempre tinham estado unidos em Deus.

-- Dos Diálogos de São Gregório Magno, papa (bispo VI)

8 de fev. de 2011

Primícias da ressurreição em Cristo

O Verbo de Deus se fez homem. O Filho de Deus tornou-se Filho do homem para que o homem, unido ao Verbo de Deus, recebesse a adoção e se tornasse filho de Deus.

Nunca poderíamos obter a incorrupção e a imortalidade a não ser unindo-nos à incorrupção e à imortalidade. Mas como poderíamos realizar esta união sem que antes a incorrupção e a imortalidade se tornassem aquilo que somos, a fim de que o corruptível fosse absorvido pela incorrupção e o mortal pela imortalidade e,deste modo, pudéssemos receber a adoção de filhos?

O Filho de Deus, nosso Senhor, Verbo do Pai, tornou-se Filho do homem. Filho do Homem porque pertencia ao gênero humano, tendo nascido de Maria, que era filha de pais humanos e ela mesma uma criatura humana.

O próprio Senhor nos deu um sinal que se estende do mais profundo da terra ao mais alto dos céus. Um sinal que não foi pedido pelo homem,pois nem sequer ele poderia pensar que uma virgem, permanecendo virgem, pudesse conceber e dar à luz um filho. Nem mesmo supor que este filho, Deus-conosco, descesse ao mais baixo da terra, em busca da ovelha perdida – que ele próprio criara – e subisse às alturas para oferecer ao Pai aquele mesmo homem que viera encontrar, realizando, deste modo, em si próprio, as  primícias de ressurreição do homem. De fato, assim como a cabeça ressuscitou dos mortos, assim todo o corpo (dos homens que participam de sua vida, passado o tempo do castigo da desobediência) ressuscitará, unido por suas junturas e articulações, firme no crescimento em Deus, possuindo cada membro sua posição adequada. São muitas as mansões na casa do Pai porque muitos são os membros do corpo.

Tendo falhado o homem, Deus foi magnânimo, pois previa a vitória que pelo Verbo lhe seria restituída. Porque a força se perfez na fraqueza, revelou-se então a benignidade de Deus e seu esplêndido poder.

-- Do Tratado contra as heresias, de Santo Irineu, bispo (século II)



O Sacramento da Extrema Unção - parte 3

O terceiro sentido é o olfato, do qual não há nada a ser dito, pois os odores possuem pouco poder para corromper a alma; e os odores das flores são inofensivos.

Eu agora chego ao quarto sentido, o sentido do paladar. Os pecados que entram na alma e a corrompem através desta porta, são dois grandes: glutonia e bebedeira, e todos os pecados que os seguem. Contra estes dois vícios, temos a admoestação de Nosso Senhor no Evangelho segundo São Lucas: Velai sobre vós mesmos, para que os vossos corações não se tornem pesados com o excesso do comer, com a embriaguez e com as preocupações da vida (Lc 21, 34). Outra admoestação é feita por São Paulo, na Epístola aos Romanos: Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira (Rm 13,13). Estes dois pecados são listados nas Sagradas Escrituras junto com outros crimes graves, como menciona São Paulo: Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem,  idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos,  invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus! (Gl 5, 19-21)

Mas este não é a única punição para tais pecados: ele não apenas matam a alma, como também a tornam totalmente incapaz de contemplar os assuntos divinos. Isto nos ensina o Salvador; e São Basílio em seu sermão sobre o jejum utiliza duas comparações muito interessantes.

A primeira utiliza o Sol e seus efeitos: "Como aqueles vapores que podemos ver em pântanos e lugares úmidos, cobrem os céus com nuvens e não permitem os raios do Sol nos alcançarem, da mesma forma glutonaria e bebedeira, como a fumaça, obscurecem nossa razão e privam-nos dos raios da luz divina." A outra comparação baseia-se em abelhas e fumaça: "as abelhas são expulsas de suas colméias com fumaça, assim a sabedoria de Deus é expulsa por orgias e bebedeiras; e a sabedoria é como uma abelha em nossas alma, produzindo o mel da virtude, da graça e toda consolação divina."

Além do mais, bebedeiras prejudicam a saúde do corpo. Um doutor chamado Antífanes, profissional muito capacitado, afirmou, como Clemente de Alexandria nos informa em seu livro "Pedagogus", que a causa de quase todas as doenças era muita comida ou muita bebida. Por outro lado, São Basílio nos conta ter pensado que "abstinência" era sinônimo de saúde. E, no entanto, médicos recomendam aos pacientes se abster de carne e vinho para restaurar a saúde de um corpo.

Bebedeiras e orgias não apenas afetam a saúde da alma e do corpo, mas também nossos interesses domésticos: quantos homens ricos tornaram-se pobres, quantos mestres tornaram-se servos, e todos pelas bebedeiras! Este vício também priva muitos pobres de enriquecerem; pois aqueles que não se contentam em ser moderados com a comida e bebida, facilmente gastam todos seus bens com os próprios prazeres, pois nada resta para outras necessidades. Assim, as palavras do Apóstolo se cumprem: enquanto uns têm fome, outros se fartam (1Cor 11,21).

Agora mencionarei alguns remédios. O exemplo dos santos nos serve como um remédio contra estes pecados. Omito eremitas e monges que São Jerônimo menciona em sua Carta para Eustóquio: ele conta que qualquer coisa "cozida" era considerada luxúria. Eu não vou alongar-me em Santo Ambrósio que, segundo contado por seus contemporâneos, jejuava todos os dias exceto Domingos e festas solenes. Não vou falar de Santo Agostinho, que usava apenas ervas e legumes para alimentar-se, e tinha refeições somente com estrangeiros e convidados. Mas se atentamente considerarmos como o Senhor de todas as coisas agiu em relação a si mesmo, como no deserto alimentou uma multidão com muito pouco, deveríamos, sem dúvida, termos sobriedade.

Deus, o todo-poderoso, o mais sábio, o mais generoso, que podia e desejava oferecer o melhor para seu amado povo, por quarenta anos os alimentou somente com maná e água de uma rocha. Maná era uma comida não muito diferente de farinha misturada com mel, com relata o livro do êxodo. Prestemos atenção em como Deus alimentou seu povo: sua comida, bolo; sua bebida, água; e eles continauram com boa saúde, até ele clamarem por carne.
Mosaico na Igreja da Multiplicação dos Pães, localizada
nas proximidades do local em que o milagre foi realizado,
em Tabga, ao norte do Mar da Galiléia.

Cristo Jesus, o Filho de Deus, seguiu o exemplo de seu Pai, no qual estão todos os tesouros de sabedoria e conhecimento, quando alimentou milhares do seu povo, colocou a frente deles somente alguns pães e peixes, além de água para beber. E não apenas quando nosso Salvador estava conosco, mas também após a sua Ressurreição, quando encontrou seus discípulos a beira-mar, dividiu com eles pão e peixe, de maneira muito frugal.

Quão diferentes são as maneiras de Deus das maneiras dos homens. O Rei dos Céus rejubila na simplicidade e sobriedade, é solícito para alimentar, enriquecer e animar a alma. Mas os homens preferem a concupiciência do inimigo de Deus. Assim, podemos dizer com o apóstolo, que o deus do homem carnal é sua barriga.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)



-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português. O texto em inglês está disponível aqui.

-- como o capítulo é bastante longo, e a tradução demanda tempo, publiquei esta segunda parte enquanto trabalho no restante do texto.

5 de fev. de 2011

O Martírio de São Paulo Miki e companheiros

Quando as cruzes foram levantadas, foi coisa admirável ver a constância de todos, à qual eram exortados pelo Padre Passos e pelo Padre Rodrigues. O Padre Comissário permaneceu sempre de pé, sem se mexer e com os olhos fixos no céu. O Irmão Martinho cantava salmos de ação de graças à bondade divina. aos quais acrescentava o versículo Em vossas mãos, Senhor (Sl 30,6). Também o irmão Francisco Branco dava graças a Deus com voz clara. O Irmão Gonçalo recitava em voz alta o Pai Nosso e a Ave Maria.

O nosso Irmão Paulo Miki, vendo-se elevado diante de todos a uma tribuna como nunca tivera, começou por afirmar aos presentes que era japonês e pertencia à Companhia de Jesus, que ia morrer por haver anunciado o Evangelho, e que dava graças a Deus por lhe conceder tão imenso benefício. E por fim disse estas palavras:

"Agora que cheguei a este ponto extremo da minha vida, nenhum de vós há-de acreditar que eu queira esconder a verdade. Declaro-vos portanto que não há outro caminho para a salvação do que aquele que possuem os cristãos. E como este caminho me ensina a perdoar aos inimigos e a todos os que me ofenderam, eu livremente perdoo ao imperador e a todos os autores da minha morte e peço a todos que recebam o batismo cristão".
São Paulo Miki nasceu no Japão, ingressou na Companhia de
Jesus e pregou o Evangelho com muito fruto. Na perseguição
contra os católicos, foi preso com 25 companheiros. Depois
torturados, foram levados a Nagasaki, onde os crucificaram
a 5 de fevereiro de 1597.

Então, voltando os olhos para os companheiros, começou a animá-los. Nos rostos de todos transparecia uma grande alegria, mas Luís era aquele em que isso se via de modo mais claro: quando outro cristão o animou gritando que em breve estaria com ele no paraíso, fez com as mãos e todo o corpo um gesto tão cheio de contentamento que os olhos de todos os presentes se fixaram nele.

António estava ao lado de Luís, com os olhos fitos no céu. Depois de invocar o Santíssimo Nome de Jesus e de Maria, entoou o salmo Louvai o Senhor, servos do Senhor (Sl 122), que tinha aprendido em Nagasaki no catecismo; é que no catecismo costumam ensinar alguns salmos às crianças.

Alguns repetiam com rosto sereno: «Jesus, Maria»; outros exortavam os presentes a levarem uma vida digna de cristãos; e por estas e outras ações semelhantes demonstravam que estavam prontos para a morte.

Então os quatro carrascos começaram a tirar as espadas daquelas bainhas que costumam usar os japoneses. Ao verem o seu aspecto terrível todos os fiéis gritaram «Jesus, Maria», e soltaram um grito de tristeza que chegou ao céu. E os carrascos, com dois golpes, em pouco tempo os mataram a todos.

3 de fev. de 2011

Sermão da Festa de Santa Águeda

A comemoração do aniversário de Santa Águeda nos reúne a todos neste lugar, como se fôssemos um só. Bem conheceis, meus ouvintes, o combate glorioso desta mártir, uma das mais antigas e ao mesmo tempo tão recente que parece estar agora mesmo lutando e vencendo, através dos divinos milagres com os quais diariamente é coroada e ornada.
Santa Águeda foi martirizada em Catânia, na Sicília,
provavelemente na perseguição de Décio. Teve os seios
arrancados por tenazes. Curada milagrosamente, no dia
seguinte foi submetida ao suplício das brasas ardentes.

A virgem Águeda nasceu do Verbo de Deus imortal e seu único Filho, que também padeceu a morte por nós. Com efeito, João, o teólogo, assim se exprime: A todos aqueles que o receberam, deu-lhes a capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12).

É uma virgem esta mulher que nos convidou para o sagrado banquete; é a mulher desposada com um único esposo, Cristo, para usar as mesmas expressões do apóstolo Paulo, ao falar da união conjugal.

É uma virgem que pintava e enfeitava os olhos e os lábios com a luz da consciência e a cor do sangue do verdadeiro e divino Cordeiro; e que, pela meditação contínua, trazia sempre em seu íntimo a morte daquele que tanto amava. Deste modo, a mística veste de seu testemunho fala por si mesma a todas as gerações futuras, porque traz em si a marca indelével do sangue de Cristo e o tesouro inesgotável da sua eloqüência virginal.

Ela é uma imagem autêntica da bondade, porque, sendo de Deus, vem da parte de seu Esposo nos tornar participantes daqueles bens, dos quais seu nome traz o valor e o significado: Águeda (que quer dizer “boa”) é um dom que nos foi concedido por Deus, verdadeira fonte de bondade.

Qual a causa suprema de toda a bondade, senão aquela que é o Sumo Bem? Por isso, quem encontrará algo mais que mereça, como Águeda, os nossos elogios e louvores?

Águeda, cuja bondade corresponde tão bem ao nome e à realidade! Águeda, que pelos feitos notáveis traz consigo um nome glorioso, e no próprio nome demonstra as ilustres ações que realizou! Águeda, que nos atrai com o nome, para que todos venham ao seu encontro, e com o exemplo nos ensina a corrermos sem demora para o verdadeiro bem, que é Deus somente!

-- Do Sermão da festa de Santa Águeda, de São Metódio da Sicília, bispo (século IX)


2 de fev. de 2011

O Mistério da Apresentação do Senhor

No episódio da apresentação de Jesus no Templo, São Lucas ressalta o destino messiânico de Jesus. Objetivo imediato da viagem da Sagrada Família, de Belém a Jerusalém, é, segundo o texto lucano, o cumprimento da Lei: Quando se cumpriu o tempo da sua purificação, segundo a lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para O apresentarem ao Senhor, conforme está escrito na lei de Deus: Todo o primogênito varão será consagrado ao Senhor  para oferecerem em sacrifício, como se diz na lei do Senhor, um par de rolas ou duas pombinhas (Lc. 2, 22-24).

Com este gesto, Maria e José manifestam o propósito de obedecer fielmente à vontade de Deus, rejeitando qualquer forma de privilégio. A vinda deles ao templo de Jerusalém assume o significado de uma consagração a Deus, no lugar da Sua presença.

Induzida pela sua pobreza a oferecer rolas ou pombinhas, Maria dá na realidade o verdadeiro Cordeiro, que deverá redimir a humanidade, antecipando com o seu gesto quanto era prefigurado nas ofertas rituais da Antiga Lei.

 Enquanto a Lei requeria apenas à Mãe a purificação após o parto, Lucas fala do “tempo da sua purificação” (Lc.2, 22), querendo, talvez, indicar ao mesmo tempo as prescrições relativas à Mãe e ao Filho primogênito.

A expressão “purificação” pode surpreender-nos, porque é referida a uma Mãe que obtivera, por graça singular, ser imaculada desde o primeiro instante da sua existência, e a um Menino totalmente santo. É preciso porém, recordar que não se tratava de purificar a consciência de alguma mancha de pecado, mas somente de readquirir a pureza ritual, a qual, segundo as idéias do tempo, era atingida pelo simples fato do parto, sem que houvesse alguma forma de culpa.

O evangelista aproveita a ocasião para sublinhar o vínculo especial que existe entre Jesus, enquanto “primogênito” (Lc. 2, 7.23) e a santidade de Deus, bem como para indicar o Espírito de humilde oferenda que animava Maria e José (cf. Lc. 2, 24). Com efeito, o “par de rolas ou duas pombinhas” era a oferta dos pobres" (Lv. 12, 8).

No Templo José e Maria encontram-se com Simeão, homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel (Lc. 2, 25).

A narração lucana nada diz do seu passado e do serviço que exerce no Templo; fala de um homem profundamente religioso, que cultiva no coração desejos grandes e espera o Messias, consolador de Israel. Com efeito, o Espírito Santo estava nele e tinha-lhe... revelado... que não morreria antes de ter visto o Messias do Senhor (Lc 2, 26).

Simeão convida-nos a contemplar a ação misericordiosa de Deus, o Qual efunde o Espírito nos seus fiéis para realizar o Seu misterioso projeto de amor.

Simeão, modelo do homem que se abre à ação de Deus, impelido pelo Espírito (Lc. 2, 27), vai ao Templo onde encontra Jesus, José e Maria. Tomando o Menino nos braços, bendiz a Deus: Agora, Senhor, podes deixar o Teu servo partir em paz, segundo a Tua palavra (Lc. 2, 29).

Expressão do Antigo Testamento, Simeão experimenta a alegria do encontro com o Messias e sente ter alcançado o objetivo da sua existência; pode, então, pedir ao Altíssimo que lhe conceda a paz da outra vida.

No episódio da apresentação pode divisar o encontro da esperança de Israel com o Messias. Pode-se também ver nele um sinal profético do encontro do homem com Cristo. O Espírito Santo torna-o possível, suscitando no coração humano o desejo desse encontro salvífico e favorecendo a sua realização.

Nem podemos descurar o papel de Maria, que entrega o Menino ao santo varão Simeão. Por vontade divina, é a Mãe que dá Jesus aos homens.

Ao revelar o futuro do Salvador, Simeão faz referência à profecia do Servo, enviado ao Povo eleito e às nações. A Ele o Senhor diz: Formei-Te e designei-Te como aliança do povo e luz das nações (Is. 42, 6). E ainda: É pouco que sejas Meu servo para restaurares as tribos de Jacó e reconduzires os sobreviventes de Israel. Vou fazer de ti luz das nações, a fim de que a Minha salvação chegue até aos confins da terra (Is. 49, 6).

No seu cântico Simeão inverte a perspectiva, pondo em evidência o universalismo da missão de Jesus: Os meus olhos viram a Salvação, que preparaste em favor de todos os povos: Luz para iluminar as nações e glória de Israel, Teu povo (Lc. 2, 30-32).

Como não maravilhar-se diante de tais palavras? O pai e a Mãe de Jesus estavam admirados com o que se dizia d’Ele (Lc. 2, 23). Mas José e Maria, com esta experiência, compreendem de modo mais claro a importância do seu gesto de oferta: no Templo de Jerusalém apresentam Aquele que, sendo a glória do Seu povo, é também a salvação da humanidade inteira.

-- Catequese sobre a Apresentação do Senhor (publicada no L'Osservatorio Romano, em 14/12/1996), de João Paulo II, papa (século XX)


 



Sermão na Festa de Apresentação do Senhor


Quarenta dias após o nascimento de Jesus, em obediência à lei de Moisés (Ex. 13, 11-13), Maria leva o Menino ao templo, a fim de ser oferecido ao Senhor. Toda a oferta implica uma renúncia. Por isso, a Apresentação do Senhor não é um mistério gozoso, mas doloroso. O gesto de Maria, que «oferece», traduz-se em gesto litúrgico, quando ao celebrarmos a Eucaristia, oferecemos «os frutos da terra e do trabalho do homem», símbolo da nossa vida. Antes da Missa, está prevista no Missal a procissão das velas, acesas em honra de Cristo que vem como luz das nações, e ao encontro de quem a Igreja caminha guiada já por essa mesma luz.
Recebamos a luz clara e eterna Todos nós que celebramos e veneramos com tanta piedade o mistério do Encontro do Senhor, corramos para Ele com todo o fervor do nosso espírito. Ninguém deixe de participar neste Encontro, ninguém se recuse a levar a sua luz.

Levemos em nossas mãos o brilho das velas, para significar o esplendor divino d’Aquele que Se aproxima e ilumina todas as coisas, dissipando as trevas do mal com a sua luz eterna, e também para manifestar o esplendor da alma, com o qual devemos correr ao encontro de Cristo.

Assim como a Virgem Mãe de Deus levou ao colo a luz verdadeira e a comunicou àqueles que jaziam nas trevas, assim também nós, iluminados pelo seu fulgor e trazendo na mão uma luz que brilha diante de todos, devemos acorrer pressurosos ao encontro d’Aquele que é a verdadeira luz.

Na verdade a luz veio ao mundo (cf Jo 1,9) e, dispersando as trevas que o envolviam, encheu-o de esplendor; visitou-nos do alto o Sol nascente (cf Lc 1,78) e derramou a sua luz sobre os que se encontravam nas trevas: este é o significado do mistério que hoje celebramos. Caminhemos empunhando as lâmpadas, acorramos trazendo as luzes, não só para indicar que a luz refulge já em nós, mas também para anunciar o esplendor maior que dela nos há-de vir. Por isso, vamos todos juntos, corramos ao encontro de Deus.

Eis que veio a luz verdadeira, que ilumina todo o homem que vem a este mundo (Jo 1,9). Todos nós, portanto, irmãos, deixemo-nos iluminar, para que brilhe em nós esta luz verdadeira.

Nenhum fique excluído deste esplendor, nenhum persista em continuar imerso na noite, mas avancemos todos resplandecentes; iluminados por este fulgor, vamos todos juntos ao seu encontro e com o velho Simeão recebamos a luz clara é eterna; associemo-nos à sua alegria e cantemos com ele um hino de acção de graças ao Pai da luz, que enviou a luz verdadeira e, afastando todas as trevas, nos fez participantes do seu esplendor.

A salvação de Deus, com efeito, preparada diante de todos os povos, manifestou a glória que nos pertence a nós, que somos o novo Israel; e nós próprios, graças a Ele, vimos essa salvação e fomos absolvidos da antiga e tenebrosa culpa, tal como Simeão, depois de ver a Cristo, foi libertado dos laços da vida presente.

Também nós, abraçando pela fé a Cristo Jesus que vem de Belém, nos convertemos de pagãos em povo de Deus (Jesus é com efeito a Salvação de Deus Pai) e vemos com os nossos próprios olhos Deus feito carne; e porque vimos a presença de Deus e a recebemos, por assim dizer, nos braços do nosso espírito, nos chamamos novo Israel. Com esta festa celebramos cada ano de novo essa presença, que nunca esquecemos.

-- Dos Sermões de São Sofrônio, bispo (século VII)

O Sacramento da Extrema Unção - parte 2


Após o sentido da visão, temos a audição, que não deve ser guardado com menos atenção e diligência. E com os ouvidos, a língua também deve ser guardada, pois é o instrumento da fala: pois as palavras, boas ou más, não são ouvidas exceto após serem pronunciadas utilizando a língua. E esta, se não for cuidadosamente guardada, é a causa de muitos males, como diz São Tiago: Assim também a língua é um pequeno membro, mas pode gloriar-se de grandes coisas. Considerai como uma pequena chama pode incendiar uma grande floresta. Também a língua é um fogo, um mundo de iniqüidades (Tg 3,5).

Nesta passagem o apóstolo nos ensina três coisas: primeiro, que guardar a língua cuidadosamente é algo muito difícil; por isso muito poucos, senão apenas os perfeitos, podem efetivamente fazê-lo; segundo, que de uma língua má, as maiores injurias e maldades podem surgir em um curto período de tempo. Isto é explicado pela comparação com uma fagulha, que se não for imediatamente extinta, pode consumir a floresta inteira. Assim, uma palavra descuidada, pode provocar suspeitas de outras culpas, de onde podem surgir disputas, brigas, homicídios e a ruína de famílias. São Tiago, em verdade, ensina que a língua não é meramente algo ruim por si mesma, mas ela pode incluir uma multitude de problemas; ele até mesmo a chama de "mundo de iniquidades". Isto por que quase todos os crimes, como adultérios e assaltos, são planejados utilizando a língua; outros como perjúrios e falsos testemunhos, são perpetrados pela língua; e todos são defendidos, através de desculpas rotas ou falsas, também pela língua.

Assim, a língua pode ser chamada de "mundo de iniquidades", por que através dela muitos pecados contra Deus são cometidos, por blasfêmia e perjúrio; contra o próximo, por difamação e fofoca; e contra si mesmo, mentindo sobre boas obras que de fato não tenha realizado.

Em acréscimo ao testemunho de São Tiago, lembro o profeta Davi: Senhor, livrai minha alma dos lábios mentirosos e da língua pérfida (Sl 119,2). Se este rei tinha medo de uma língua pérfida e mentirosa, o que podem pessoas comuns fazer; e pior ainda, e se forem pessoas pobres, fracas e obscuras? Davi ainda diz: Que ganharás, qual será teu proveito, ó língua pérfida? (Sl 119,3) As palavras são obscuras devido a peculiaridade da estrutura da língua hebraica, mas o sentido parece ser este: não é sem sentido que eu temo uma língua pérfida e mentirosa, por que ela pode causar grande mal, de tal modo que nenhuma outra maldade pode ser acrescida. Davi continua: Flechas agudas de guerreiro, carvões ardentes de giesta (Sl 119,4). Nestas palavras, em elegante comparação, ele define quão grande mal uma língua pode ser, como uma flecha pontiaguda ns mãos de um guerreiro. Flechas são atiradas à distância, e com uma velocidade tão grande que é dificil desviar. E com tais flechas a língua é comparada, e dita que são enviadas por um forte guerreiro. E também, estas flechas são afiadas, ou seja, foram trabalho das mãos de um trabalhador hábil e dedicado. A língua é como um carvão ardente, com poder para queimar tudo, mesmo o que é forte. Portanto, uma língua pérfida e mentirosa é mais perigosa do que as flechas feitas pelo homem; em verdade, lembram as flechas enviadas pelo céu, raios aos quais ninguém pode resistir. Esta descrição de Davi, de uma língua pérfida e mentirosa, é tal que nenhum mal pode ser maior.

Para que esta verdade possa ser claramente compreendida, menciono dois exemplos da Escritura. O primeiro, a perfídia de Doeg, que acusou o sacerdote Aquimelec de ter conspirado com Davi para atingir o Rei Saul (1Sm 22). Era uma calunia e impostura. Mas como Saul, naquele tempo, estava perseguindo Davi, facilmente acreditou em Doeg e ordenou matar imediatamente não apenas Aquimelec, mas todos os outros sacerdotes, oitenta e cinco que não haviam cometido uma única ofensa ao rei. E Saul, não contente com esta matança, ordenou que fossem mortos também todos moradores da cidade de Nobe; e não apenas estendeu sua crueldade contra homens e mulheres, também às crianças, bebês e animais. Da língua pérfida de Doeg, é provável que seja sobre ela que Davi fala no Salmo 119. Deste exemplo podemos ver como pode ser produtiva para o mal uma língua pérfida e mentirosa.

Outro exemplo é do Evangelho segundo São Marcos: quando a filha de Herodíades dançou em frente a Herodes Tetrarca e sua corte, ela ganhou seus favores de tal modo que ele jurou em frente a todos que lhe daria o que pedisse, mesmo que fosse metade do seu reino. Mas a filha se aconselhou com a mãe, e esta lhe disse para pedir a cabeça de São João Batista. Feito o pedido, a cabeça logo lhe foi entregue em uma bandeja.

A cabeça de São João Batista é entregue em uma bandeja.
Quantos crimes cometidos! A mãe pecou mais gravemente, pedindo a mais injusta coisa; Herodes pecou não menos gravemente, ao ordenar a morte de um homem inocente, que era o precursor de Jesus e mais que um simples profeta; sem que sua causa fosse ouvida, sem julgamento, o pedido de uma menina foi atendido durante um banquete festivo. Pouco tempo após, Herodes foi removido do seu governo pelo imperador romano, enviado para um perpétuo banimento. Aquele que jurou dar metade do seu reino, trocou aquele reino pelo banimento. Josefus menciona que a filha de Herodíades, cuja dança causou a morte de São João Batista, ao cruzar uma área congelada, o gelo quebrou sob seu peso e ela caiu com todo seu corpo, mas sua cabeça foi separada do corpo, rolando pelo gelo. Assim todos puderam ver a causa de tão miserável morte. Herodíades morreu pouco depois pela tristeza e a seguiu nos tormentos do inferno. Nicéforo Calisto Xantópulo relata os detalhes desta tragédia no seu livro História Eclesiástica, confirmando os crimes e punições que seguiram o juramento bobo do Tetrarca.

Agora mencionaremos os remédios que um homem prudente deve usar para evitar os pecados da língua. O Rei Davi, no início do Salmo 38, fala: Velarei sobre os meus atos, para não mais pecar com a língua (Sl 38,1). Isto significa que seu eu desejo me guardar dos pecados da língua, devo estar atento aos meus atos; pois não devo falar, nem pensar, nem fazer nada, sem antes examinar e pesar o que farei e direi.

Estes é o caminho pelo qual um homem deve caminhar em sua vida, que é o remédio contra más palavras, e não apenas contra elas, mas também contra más ações, pensamentos e desejos: é pensar antes o que fará, falará ou desejará. Isto define o caráter de um homem: não fazer nada de modo precipitado, mas sempre considerar o que deve ser feito, e se isto concordar com a razão, realizá-lo; se não concordar, deixar de fazê-lo. Assim como as ações devem ser pensadas, também as palavras, desejos e outras ações de uma inteligência. Mas se alguém não puder considerar previamente suas ações e palavras, certamente não é um homem prudente, desejoso da salvação eterna. Um homem que a cada manhã, todos os dias, antes de procurar seus negócios e interesses, se aproxima do seu Deus em oração e suplica para que Ele direcione suas decisões, ações, desejos e pensamentos para a grande glória de Deus e salvação de sua alma. E, ao final do dia, antes de repousar, o homem deve examinar sua consciência e perguntar se acaso ofendeu a Deus em pensamentos, palavras ou atos; e caso encontre máculas, especialmente pecados mortais, não deve fechar seus olhos antes de reconciliar-se com Deus e consigo, verdadeiramente arrepender-se, e fazer firme resolução de guardar seus modos e não cometer os mesmos pecados no dia seguinte.

Sobre o sentido da audição, algumas observações devem ser feitas. Quando uma língua é controlada pela razão, impedindo-a de falar palavras vãs, nada deve ofender o sentido da audição. Há quatro tipos de palavras, em especial, contras as quais nossa audição deve manter-se fechada, pois através de más palavras o pecado pode entrar no coração e corrompê-lo.

Por primeiro, as palavras contra a fé, que a curiosidade muitas vezes ouve com prazer: e se estas penetram no coração, retiram daí a fé, a raiz e o início de todas as boas ações. Nenhuma das palavras dos infiéis é mais perniciosa que aquelas que negam, seja a providência divina ou a imortalidade da alma. Estas afirmações tornam o homem não apenas herético, mas ateístas, abrindo a porta para todo tipo de maldades.

Outra classe de palavras é a difamação, muito ouvidas por todos, mas que destroem a caridade fraternal. Davi, que era um homem de acordo com a vontade de Deus, diz nos Salmos: Em resposta ao meu afeto me acusaram. Eu, porém, orava (Sl 108,4). E como a difamação é muitas vezes ouvida na mesa de refeições, Santo Agostinho mandou gravar estes versos sobre a mesa da sala de jantar:

"Quisquis amat dictis absentftm rodero vitam,
Hanc mensam iiidignam noverit esse sibi."

"Esta mesa não é lugar para detratores,
cuja língua ama os ausentes para causar desgraças".

A terceira espécie de palavras más consiste em bajulação, agradavelmente ouvidas pelos homens; e produzem orgulho e vaidade, a última delas é a rainha de todos os vícios e muito detestada por Deus.

O quarto tipo são aquelas palavras indecentes e canções lascivas; para os amantes deste mundo nada é mais doce, embora nada possa ser mais perigoso, que tais palavras e canções. Canções lascivas são como os cantos das sereias, que encantam os homens, os mergulham no mar e devoram-nos.

Contra todos estes perigos há um remédio salutar. Homens, quando na presença de pessoas que nunca tenham visto antes, ou que não lhe sejam familiares, não tenham a ousadia de difamar o próximo, utilizar palavras heréticas, bajuladoras ou expressões lascivas. Salomão, no início do Livro dos Provérbios, expressa assim este preceito: Ouve, meu filho, a instrução de teu pai: Meu filho, se pecadores te quiserem seduzir, não consintas; se te disserem: Vem conosco, faremos emboscadas, para (derramar) sangue, armaremos ciladas ao inocente, sem motivo, como a região dos mortos devoremo-lo vivo, inteiro, como aquele que desce à cova. Nós acharemos toda a sorte de coisas preciosas, nós encheremos nossas casas de despojos. Tu desfrutarás tua parte conosco, uma só será a bolsa comum de todos nós! Oh, não andes com eles, afasta teus passos de suas sendas, porque seus passos se dirigem para o mal, e se apressam a derramar sangue. Eles mesmos armam emboscadas contra seu próprio sangue e se enganam a si mesmos (Pv 1,8.10-16.18). Este conselho os homens sábios seguem para manter o sentido da audição longe de palavras corruptas; especialmente se estas palavras do Nosso Senhor forem acrescentadas: os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa (Mt 10,36).

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)
-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português. O texto em inglês está disponível aqui.
-- como o capítulo é bastante longo, e a tradução demanda tempo, publiquei esta segunda parte enquanto trabalho no restante do texto.







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