30 de nov. de 2012

São João Batista - referências bíblicas

JOÃO BATISTA foi filho de Zacarias e Isabel; JOÃO significa em hebraico "Iahweh é benigno"; e BATISTA por ser aquele que batizava. Lc 1 narra a história de seu nasciento: o anúncio a Zacarias por parte do anjo Gabriel, a idade avançada de seus pais, o mutismo de Zacarias, a escolha do nome, o reconhecimento de Jesus ainda no ventre de Maria, enquanto João também estava no ventre de sua mãe. Os temas do nascimento de um filho de pais em idade avançada  do anúncio por meio de um anjo e do nome escolhido de modo extraordinário constituem ecos dos relatos de Abraão, Isaac, Sansão e Samuel. O relato da concepção e nascimento de João parece conter também elemento de um midraxe, no qual a história expressa simbolicamente a antecipação do acontecimento salvífico no Evangelho. Mas "simbolismo" não quer dizer "criação fantástica": o parentesco entre João e Jesus provavelmente faz parte da tradição autêntica. 

Mais tarde, João aparece (Mt 3,1-10; Mc 1,4-6; Lc 3,1-9) no deserto de Judá anunciando o reino, o dia do juízo e conclamando ao batismo e penitência. João vestia-se de um modo que recorda o profeta Elias; sua vida também é um eco do modo de vida de Elias. Lc acrescenta alguns detalhes sobre o seu ensinamento moral (3,10-14); generosidade para com os pobres e renúncia à violência e à opressão. João anunciava a vinda do Messias como juiz (Mt 3,11s; Mc 1, 7s; Lc 3,15-18). O Messias batizaria com o Espírito Santo e com o fogo, razão pela qual o batismo de João - que era símbolo de arrependimento ao qual conclamava - constituia apenas uma preparação. Os evangelhos sinóticos dão testemunho do grande número de pessoas que iam vê-lo e ouvi-lo (Mt 3,5.7; Mc 1,5). Quando Jesus uniu-se àqueles que queriam ser batizados por João, este o reconheceu como Messias (Mt3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21s). 

A apresentação de João Batista no evangelho de São João não é muito diferente dos sinóticos. João Batista foi enviado por Deus para "dar testemunho da luz" (Jo 1,6-15). Jo 1,19-36 narra que negou ser o Messias (Lc 3,15s; Jo 3,25-30), indicando Jesus como "Cordeiro de Deus". Depois dessa indicação, Jesus começou a fazer os seus primeiros discípulos.

João foi preso por Herodes Antipas, que ele censurara publicamente por seu matrimônio adúltero e incestuoso com Herodíades (Mt 4,12; Mc 1,14; Lc 3, 19s). No relato dos sinóticos, Jesus não começa seu ministério antes da prisão de João Batista. Ao final, João foi executado devido a uma tola promessa feita por Herodes durante uma orgia (Mt 14,1-12; Mc 6,14-28; Lc 9,7-9). A morte de João é atestada também pelo historiador Josefo, que testemunha a popularidade e prestígio entre o povo. 

Jo 5,33-36 acrescenta que Jesus disse ser João uma "testemunha da verdade"e "facho ardente e luminoso", destacando sua influência sobre o povo (Jo 10,41). Pergunta-se a Jesus por que seus discípulos não jejuavam como faziam os de João (Mt 9,14ss; Mc 2,18ss; Lc 5, 33ss). Em outra passagem Jesus a atenção sobre o contraste entre a austeridade de vida de João e seu próprio modo comum de viver (Mt 11,18; Lc 7,33). A resposta de Jesus, expressa nos termos do Servo de Isaías, foi muito clara para quem conhecia o AT. Não há motivos para pensar que se tratasse de um procedimento teatral da parte de João, não para convencer-se a si mesmo, mas sim para convencer seus discípulos; não é improvável que João houvesse perdido um pouco da certeza demonstrada em seu primeiro testemunho e quissesse estar seguro. A resposta de Jesus não apenas o tranquiliza, mas define o caráter de sua messianidade. O testemunho de Jesus a respeito de João faz dele o maior dentre os nascidos de mulher (Mt 11,7-19; Lc 7, 24-35). Em João se concretizou a crença judaica de que Elias retornaria antes do Messias (Mt 17, 13; Mc 9,13). Alguns chegaram a pensar que Jesus fosse João ressuscitado da morte (Mt 16, 14; Mc 8,28; Lc 9,19). Jesus reduziu os fariseus ao silêncio perguntando-lhes se o batismo de João era "do céu ou dos homens"(Mt 21,25-27; Mc 11,30-33; Lc 20,4-8); a fama popular de João como profeta era tão grande que os fariseus não ousavam por em dúvida a autenticidade da sua missão. 

Desde os primeiros tempos considerava-se que o batismo de João marcou o início da vida pública de Jesus (At 1,22; 10,37). A própria antitese de João entre o seu batismo e o batismo do Espírito Santo e no fogo é repetida em At 1,5;11,16. O testemunho de João em relação a Jesus nos evangelhos retorna no discurso de Paulo em Antioquia (At 13,24s). Os discípulos de João sobreviveram como um grupo singular vários anos depois de sua morte, até mesmo em lugares distantes como Éfeso (At 19,3): Apolo, originário de Alexandria, que se tornou cristão em Éfeso conhecia apenas o batismo de João (At 18 18,25).

* extraído do Dicionário Bíblico, de John Mackenzie, Edições Paulinas.



27 de nov. de 2012

Salmo 35: Malícia do pecador, bondade do Senhor


Cada vez que tem início um dia de trabalho e de relacionamentos humanos, duas são as atitudes fundamentais que cada homem pode assumir: escolher o bem ou ceder ao mal. O Salmo 35, que acabamos de ouvir, apresenta precisamente estes dois perfis opostos. Por um lado, há quem desde o seu "leito", de onde está para se levantar, medita projetos iníquos; por outro, ao contrário, há quem procura a luz de Deus, "fonte da vida" (v. 10). O abismo da malícia do ímpio opõe-se ao abismo da bondade de Deus, nascente viva que sacia e luz que ilumina o fiel.

Por isso, dois são os tipos de homem descritos pela oração salmista, que acaba de ser proclamada, e que a Liturgia das Horas nos propõe para as Laudes de quarta-feira da primeira Semana.

O primeiro retrato que o Salmista nos apresenta é o do pecador (cf. vv. 2-5). No seu interior como diz o original hebraico encontra-se o "oráculo do pecado" (cf. v. 2). A expressão é forte. Faz pensar numa palavra satânica que, em contraste com a palavra divina, ressoe no coração e na linguagem do ímpio.

Nele o mal parece com a sua íntima realidade, de maneira a manifestar-se em palavras e atos (cf. vv. 3-4). Ele passa os seus dias a escolher "maus caminhos", desde muito cedo, quando ainda está "no seu leito" (v. 5), até à noite, quando está prestes a adormecer. Esta escolha constante do pecador deriva de uma opção que empenha toda a sua existência e gera a morte.

Mas o Salmista está totalmente orientado para o outro retrato em que ele deseja refletir-se: o do homem que procura o rosto de Deus (cf. vv. 6-13). Ele eleva um verdadeiro e próprio cântico ao amor divino (cf. vv. 6-11) ao qual faz seguir, no final, uma suplicante invocação para ser libertado do fascínio obscuro do mal e imbuído para sempre pela luz da graça.

Neste cântico desenvolve-se uma verdadeira e própria ladainha de termos, que celebram os lineamentos do Deus de amor: graça, fidelidade, justiça, juízo, salvação, sombra protetora, abundância, delícia, vida e luz.

Salientem-se, em particular, quatro destes traços divinos, expressos com vocábulos hebraicos que têm um valor mais intenso do que é demonstrado pela tradução nas línguas modernas.

Em primeiro lugar há o termo hésed, "graça", que é fidelidade e, ao mesmo tempo, amor, lealdade e ternura. Constitui um dos termos fundamentais para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo. E é significativo que ele ressoe por 127 dos Salmos, mais de metade de todas as vezes que esta palavra aparece no restante do Antigo Testamento. Além disso, há o termo 'emunáhque deriva da mesma raiz do amen, a palavra da fé, e significa estabilidade, segurança e fidelidade inabalável. A seguir, vem a palavra sedaqáh, a "justiça", que tem um significado sobretudo salvífico: é a atitude santa e providencial de Deus que, através da sua intervenção na história, liberta do mal e da injustiça os seus fiéis. Enfim, eis a mishpát, o "juízo" com que Deus governa as suas criaturas, debruçando-se sobre os pobres e os oprimidos, e derrubando os arrogantes e os prepotentes.

Quatro palavras teológicas, que o orante repete na sua profissão de fé, enquanto se encaminha pelas sendas do mundo, convicto de ter ao seu lado o Deus amoroso, fiel, justo e salvador.

Aos vários títulos com que exalta a Deus, o Salmista acrescenta duas imagens sugestivas. Por um lado, a abundância de alimentos: ela faz pensar, em primeiro lugar, no banquete sagrado, que se celebrava no templo de Sião, com a carne das vítimas sacrificiais. Há também a fonte e a torrente, cujas águas saciam não apenas a garganta sedenta, mas também a alma (cf. vv. 9-10; Sl 41, 2-3; 62, 2-6). O Senhor sacia o orante, tornando-o partícipe da sua vida plena e imortal.

A outra imagem é representada pelo símbolo da luz:  "Na vossa Luz é que vemos a luz" (v. 10). Trata-se de uma luminosidade que se irradia como que "a cântaros" e é um sinal da revelação de Deus ao seu fiel. Assim aconteceu com Moisés no Sinai (cf. Êx 34, 29-30) e assim acontece com o cristão, na medida em que, "com o rosto descoberto, com o rosto refletindo a glória do Senhor, como um espelho, é transformado nessa mesma imagem" (cf. 2 Cor 3, 18).

Na linguagem dos Salmos, "ver a luz do rosto de Deus" significa concretamente encontrar o Senhor no templo, onde se celebra a oração litúrgica e se escuta a palavra divina. Também o cristão vive esta experiência, quando celebra  os  louvores  do  Senhor  na  aurora do dia, antes de se encaminhar pelas sendas nem sempre lineares da vida quotidiana.

-- Papa João Paulo II, na audiência de 22 de Agosto de 2012

24 de nov. de 2012

O mistério de Cristo em nós e na Igreja

São João Eudes, doutor e apóstolo
do Sagrado Coração

Cabe-nos imitar e completar em nós os estados e mistérios de Cristo e pedir-lhe continuamente que os leve a termo e os perfaça em nós e na Igreja inteira.

Porque os mistérios de Jesus ainda não estão totalmente levados à sua perfeição e realizados. Na pessoa de Jesus, sim, não, porém, em nós, seus membros, nem na Igreja, seu Corpo místico. Por querer o Filho de Deus comunicar, estender de algum modo e continuar seus mistérios em nós e em toda a sua Igreja, determinou tanto as graças que nos concederá,quanto os efeitos que quer produzidos em nós por esses mistérios. Por esta razão deseja completá-los em nós.

Por isso, São Paulo diz que Cristo é completado na Igreja e que todos nós colaboramos para sua edificação e para a plenitude de sua idade (cf. Ef 4,13), isto é, a idade mística que tem em seu Corpo místico, mas que só no dia do juízo será plena. Em outro lugar, diz o mesmo Apóstolo que completa em sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1,24).

Deste modo, o Filho de Deus decidiu que seus estados e mistérios seriam completados e levados à perfeição em nós. Quer levar à perfeição em nós o mistério de sua encarnação, nascimento, vida oculta, quando se forma e renasce em nossa alma pelos sacramentos do santo batismo e da divina eucaristia e nos dá vivermos a vida espiritual e interior, escondida com ele em Deus (Cl 3,3).

Quer ainda levar à perfeição em nós o mistério de sua paixão, morte e ressurreição que nos fará padecer, morrer e ressurgir com ele. E, finalmente, quer completar em nós o estado de vida gloriosa e imortal, quando nos fará viver com ele e nele a vida gloriosa e perpétua nos céus. Assim quer consumar e completar seus outros estados, outros mistérios em nós e em sua Igreja; deseja comunicá-los a nós e partilhá-los conosco e por nós continuá-los e propagá-los.

Assim, os mistérios de Cristo não estarão completos antes daquele tempo que marcou para o término destes mistérios em nós e na Igreja, isto é,  antes do fim do mundo.

-- Do Tratado sobre o Reino de Jesus, de São João Eudes, presbítero (século XVI)

22 de nov. de 2012

Reino dos Céus, Reino de Deus e Reino de Cristo


A missão da Igreja é a de anunciar o Reino de Cristo e de Deus e de instaurá-lo entre todos os povos; desse Reino ela é na terra o germe e o início. Por um lado, a Igreja é sacramento, isto é, sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade do género humano; ela é, portanto, sinal e instrumento do Reino: chamada a anunciá-lo e a instaurá-lo. Por outro, a Igreja é o povo reunido pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo; ela é portanto o Reino de Cristo já presente em mistério, constituindo assim o seu germe início. O Reino de Deus tem, de fato, uma dimensão escatológica: é uma realidade presente no tempo, mas a sua plena realização dar-se-á apenas quando a história terminar ou se consumar.

Dos textos bíblicos e dos testemunhos patrísticos, bem como dos documentos do Magistério da Igreja, não se tiram significados unívocos para as expressões Reino dos CéusReino de Deus Reino de Cristo, nem para a relação das mesmas com a Igreja, sendo esta um mistério que não se pode encerrar totalmente num conceito humano. Podem existir, portanto, diversas explicações teológicas dessas expressões, mas nenhuma dessas possíveis explicações pode negar ou esvaziar de maneira nenhuma a conexão íntima entre Cristo, o Reino e a Igreja. Pois, o Reino de Deus, que conhecemos pela Revelação não pode ser separado de Cristo nem da Igreja... Se separarmos o Reino, de Jesus, ficaremos sem o Reino de Deus, por Ele pregado, acabando por se distorcer quer o sentido do Reino, que corre o risco de se transformar numa meta puramente humana ou ideológica, quer a identidade de Cristo, que deixa de aparecer como o Senhor, a quem tudo se deve submeter (cf. 1 Cor 15,27). De igual modo, não podemos separar o Reino, da Igreja. Com certeza que esta não é fim em si própria, uma vez que se ordena ao Reino de Deus, do qual é princípio, sinal e instrumento. Mesmo sendo distinta de Cristo e do Reino, a Igreja todavia está unida indissoluvelmente a ambos.

Afirmar a relação inseparável entre Igreja e Reino não significa porém esquecer que o Reino de Deus — mesmo considerado na sua fase histórica — não se identifica com a Igreja na sua realidade visível e social. Não se deve, de fato, excluir a obra de Cristo e do Espírito fora dos confins visíveis da Igreja. Daí que se deva também considerar que o Reino diz respeito a todos: às pessoas, à sociedade, ao mundo inteiro. Trabalhar pelo Reino significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino, que está presente na história humana e a transforma. Construir o Reino quer dizer trabalhar para a libertação do mal, sob todas as suas formas. Em resumo, o Reino de Deus é a manifestação e a atuação do seu desígnio de salvação, em toda a sua plenitude.

Ao considerar as relações entre Reino de Deus, Reino de Cristo e Igreja hão-de evitar-se sempre as acentuações unilaterais, como são as concepções que propositadamente colocam o acento no Reino, auto-denominando-se de “reino-cêntricas”, pretendendo com isso fazer ressaltar a imagem de uma Igreja que não pensa em si, mas dedica-se totalmente a testemunhar e servir o Reino. É uma “Igreja para os outros” — dizem — como Cristo é o “homem para os outros”. Ao lado de aspectos positivos, essas concepções revelam frequentemente outros negativos. Antes demais, silenciam o que se refere a Cristo: o Reino, de que falam, baseia-se num “teo-centrismo”, porque — como dizem — Cristo não pode ser entendido por quem não possui a fé n'Ele, enquanto que povos, culturas e religiões se podem encontrar na mesma e única realidade divina, qualquer que seja o seu nome. Pela mesma razão, privilegiam o mistério da criação, que se reflete na variedade de culturas e crenças, mas omitem o mistério da redenção. Mais ainda, o Reino, tal como o entendem eles, acaba por marginalizar ou desvalorizar a Igreja, como reação a um suposto eclesiocentrismo do passado, por considerarem a Igreja apenas um sinal, aliás passível de ambiguidade. Tais teses são contrárias à fé católica, por negarem a unicidade da relação de Cristo e da Igreja com o Reino de Deus.

-- Declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja - Congregação para a Doutrina da Fé, em 6 de Agosto de 2000, Festa da Transfiguração do Senhor, quando o Prefeito era o então Cardeal Joseph Ratzinger.

21 de nov. de 2012

Capítulo 24 - Do juízo e das penas dos pecadores


O Juízo Final - Michelangelo.
Pintado no altar da Capela Sistina.

  1. Em todas as coisas olha o fim, e de que sorte estarás diante do severo Juiz a quem nada é oculto, que não se deixa aplacar com dádivas, nem aceita desculpas, mas que julgará segundo a justiça. Ó misérrimo e insensato pecador! Que responderás a Deus, que conhece todos os teus crimes, se, às vezes, te amedronta até o olhar dum homem irado? Por que não te acautelas para o dia do juízo, quando ninguém poderá ser desculpado ou defendido por outrem, mas cada um terá assaz que fazer por si? Agora o teu trabalho é frutuoso, o teu pranto aceito, o teu gemer ouvido, satisfatória a tua contrição.
  2. Grande e salutar purgatório tem nesta vida o homem paciente: se, injuriado, mas se dói da maldade alheia, que da ofensa própria; se, de boa vontade, roga por seus adversários, e de todo o coração perdoa os agravos; se não tarda em pedir perdão aos outros; se mais facilmente se compadece do que se irrita; se constantemente faz violência a si mesmo, e se esforça por submeter de todo a carne ao espírito. Melhor é expiar já os pecados e extirpar os vícios, que adiar a expiação para mais tarde. Com efeito, nós enganamos a nós mesmos pelo amor desordenado que temos à carne.
  3. Que outra coisa há de devorar aquele fogo senão os teus pecados? Quanto mais te poupas agora e segues a carne, tanto mais cruel será depois o tormento e tanto mais lenha ajuntas para a fogueira. Naquilo em que o homem mais pecou, será mais gravemente castigado. Ali os preguiçosos serão incitados por aguilhões ardentes, e os gulosos serão atormentados por violenta fome e sede. Os impudicos e voluptuosos serão banhados em pez ardente e fétido enxofre, e os invejosos uivarão de dor, à semelhança de cães furiosos.
  4. Não há vício que não tenha o seu tormento especial. Ali, os soberbos serão acabrunhados de profunda confusão, e os avarentos oprimidos com extrema penúria. Ali será mais cruel uma hora de suplício do que cem anos aqui da mais rigorosa penitência. Ali não há descanso nem consolação para os condenados, enquanto aqui, às vezes, cessa o trabalho e nos consolam os amigos. Relembra agora e chora teus pecados, para que no dia do juízo estejas seguro entre os escolhidos. Pois erguer-se-ão, naquele dia, os justos com grande força contra aqueles que os oprimiram e desprezaram (Sab 5,1). Então se levantará, para julgar, Aquele que agora se curvou humildemente ao juízo dos homens. Então terá muita confiança o pobre e o humilde, mas o soberbo estremecerá de pavor.
  5. Então se verá que foi sábio, neste mundo, quem aprendeu a ser louco e desprezado, por amor de Cristo. Então dará prazer toda tribulação, sofrida com paciência, e a iniquidade não abrirá a sua boca (Sl 106,42). Então se alegrarão todos os piedosos e se entristecerão todos os ímpios. Então mais exultará a carne mortificada, que se fora sempre nutrida em delícias. Então brilhará o hábito grosseiro e desbotarão as vestimentas preciosas. Então terá mais apreço o pobre tugúrio que o dourado palácio. Mais valerá a paciente constância que todo o poderio do mundo. Mais será engrandecida a singela obediência que toda a sagacidade do século.
  6. Mais satisfação dará a pura e boa consciência que a douta filosofia. Mais valerá o desprezo das riquezas que todos os tesouros da terra. Mais te consolará a lembrança duma devota oração que a de inúmeros banquetes. Mais folgarás de ter guardado silêncio, do que de ter falado muito. Mais valor terão as boas obras que as lindas palavras. Mais agradará a vida austera e árdua penitência que todos os gozos terrenos. Aprende agora a padecer um pouco, para poupar-te mais graves sofrimentos no futuro. Experimenta agora o que podes sofrer mais tarde. Se não podes agora sofrer tão pouca coisa, como suportarás os eternos suplícios? Se tanto te repugna o menor incômodo, que te fará então o inferno? Certo é que não podes fruir dois gozos: deleitar-se neste mundo, e depois reinar com Cristo.
  7. Se até hoje tivesses vivido sempre em honras e delícias, que te aproveitaria isso se tivesses que morrer neste instante? Logo, tudo é vaidade, exceto amar a Deus e só a ele servir. Pois quem ama a Deus, de todo o coração, não teme nem a morte, nem o castigo, nem o juízo, nem o inferno, porque o perfeito amor dá seguro acesso a Deus. Mas quem ainda se delicia no pecado, não é de estranhar que tema a morte e o juízo. Todavia, é bom que, se do mal não te aparta o amor, te refreie ao menos o temor do inferno. Aquele, porém, que despreza o temor de Deus, não poderá por muito tempo perseverar no bem, e depressa cairá nos laços do demônio.
-- Do livro "Imitação de Cristo"(século XV)

20 de nov. de 2012

Acreditou pela fé e concebeu pela fé


* Hoje celebramos a Apresentação de Nossa Senhora. A memória que a Igreja celebra não encontra fundamentos explícitos nos Evangelhos Canônicos, mas algumas pistas no chamado proto-evangelho de Tiago, livro de Tiago, ou ainda, História do nascimento de Maria. A validade do acontecimento que lembramos possui real alicerce na Tradição que a liga à Dedicação da Igreja de Santa Maria Nova, construída em 543, perto do templo de Jerusalém.
Apresentação da Virgem Maria, ícone russo
do século XVI

Os manuscritos não canônicos, contam que Joaquim e Ana, por muito tempo não tinham filhos, até que nasceu Maria, cuja infância se dedicou totalmente, e livremente a Deus, impelida pelo Espírito Santo desde sua concepção imaculada. Tanto no Oriente, quanto no Ocidente observamos esta celebração mariana nascendo do meio do povo e com muita sabedoria sendo acolhida pela Liturgia Católica, por isso esta festa aparece no Missal Romano a partir de 1505, onde busca exaltar a Jesus através daquela muito bem soube isto fazer com a vida, como partilha Santo Agostinho, em um dos seus Sermões. 

Peço-vos que repareis no que diz o Senhor ao estender a mão para os seus discípulos: Estes são minha mãe e meus irmãos e Quem fizer a vontade de meu Pai, que Me enviou, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe (Mt 12,49-50). Porventura não fez a vontade do Pai a Virgem Maria, que acreditou pela fé e concebeu pela fé, que foi escolhida para que d’Ela nascesse a salvação entre os homens e que foi criada por Cristo antes de Cristo ter sido criado n’Ela? Maria cumpriu, e cumpriu perfeitamente, a vontade do Pai; e, por isso, Maria tem mais mérito por ter sido discípula de Cristo do que por ter sido mãe de Cristo; mais ditosa é Maria por ter sido discípula de Cristo do que por ter sido mãe de Cristo. Portanto, Maria era bem aventurada, porque, antes de dar à luz o Mestre, trouxe O no seio.

Vê se não é como digo. Passava o Senhor, acompanhado da multidão e fazendo milagres divinos. E uma mulher exclamou: Bem aventurado o ventre que Te trouxe. Ditoso o ventre que Te trouxe (Lc 11,27). E o Senhor, para que se não buscasse a felicidade na natureza material da carne, que respondeu? Mais felizes os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática (Mt11,28). Por isso também Maria era feliz porque ouviu a palavra de Deus e a pôs em prática; guardou mais a verdade de Cristo na sua mente do que o corpo de Cristo no seu seio. Cristo é verdade; Cristo é carne. Cristo é verdade no espírito de Maria, Cristo é carne no seio de Maria; é mais o que está no espírito do que o que se traz no seio.

Maria é santa, Maria é bem aventurada. Mas é mais importante a Igreja do que a Virgem Maria. Porquê? Porque Maria é uma parte da Igreja, membro santo, membro excelente, membro supereminente, mas apesar disso membro do corpo total. Se é membro do corpo, é certamente mais o corpo do que o membro. A cabeça é o Senhor, e Cristo total é a cabeça e o corpo. Que mais direi? Temos no corpo da Igreja uma cabeça divina, temos a Deus por cabeça.

Reparai portanto em vós mesmos, irmãos caríssimos. Também vós sois membros de Cristo, também vós sois corpo de Cristo. Vede como o sois, quando Ele diz: Eis minha mãe e meus irmãos. Como sereis mãe de Cristo? Todo aquele que ouve e pratica a vontade de meu Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. Quando diz "irmãos" e "irmãs", fala evidentemente da mesma e única herança.

É uma só, na verdade, a herança. Por isso, a misericórdia de Cristo, que sendo único não quis ficar só, fez de nós herdeiros do Pai e herdeiros consigo.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

16 de nov. de 2012

Convertamo-nos a Deus que nos chamou

A Descida da Cruz, Rembrandt.
Penso não ter dado um conselho sem importância sobre a temperança; se alguém o seguir, não se arrependerá e salvará a si mesmo e a mim que dei o conselho. Não é pequena a recompensa de quem reconduzir à salvação o que se extraviara e se perdera. Podemos retribuir a Deus, nosso criador, se aquele que dize o que escuta disser e escutar com fé e caridade.

Permaneçamos, pois, justos e santos em nossa fé e oremos com confiança a Deus que afirmou: Ainda estarás a falar e te responderei: Eis-me aqui (cf. Is 58,9). Esta palavra é sinal de grande promessa; porque o Senhor se mostra mais pronto a dar do que o suplicante a pedir. Participantes de tão grande benignidade, não invejemos um ao outro por ter recebido bens tão excelentes. Estas palavras enchem de tanto gozo aos que as realizam, quanto de reprovação aos rebeldes.

Irmãos, tendo assim uma boa ocasião de nos arrepender, enquanto temos tempo e há quem nos receba, convertamo-nos para o Senhor que nos chamou. Se renunciamos a nossas paixões desregradas, dominamos nossa alma. Negando-lhe seus desejos maus, participaremos da misericórdia de Jesus. Sabei, pois, já vem o dia do juízo qual fornalha ardente e parte dos céus se desfará (cf. Ml 3,19) e toda a terra será liquefeita como chumbo ao fogo. Neste momento, ficarão patentes as obras dos homens, as ocultas e as manifestas.

Por isso, a esmola é boa como penitência pelo pecado. Melhor o jejum do que a oração; esmola mais que estes dois: a caridade cobre uma multidão de pecados (1Pd 4,8). Contudo, a oração, feita de consciência pura, livra da morte. Feliz quem for reconhecido perfeito nestas coisas; porque a esmola afasta o pecado. 

Façamos, portanto, penitência de todo o coração, para que nenhum de nós pereça. Se temos a obrigação de afastar os outros do culto dos ídolos e instruí-los, quanto mais devemos nos empenhar na salvação de todas as almas, que já gozam do verdadeiro conhecimento de Deus! Ajudemo-nos, então, um ao outro, de modo a reconduzir ao bem mesmo os fracos; para salvarmo-nos todos, não só cada um se converta, mas exortemo-nos mutuamente.

-- Da Homilia de um autor desconhecido do século segundo


14 de nov. de 2012

Santo Hilário de Arles

Santo Hilário de Arles, imagem de um manuscrito do século XIV
Hilário, nascido em 401, foi um jovem de familia nobre, bem educado e com uma carreira tendendo ao sucesso. Era aparentado de Santo Honorato, que estava determinado em convertê-lo para Cristo e fazê-lo também monge. Já velho, Santo Honorato empreendeu uma viagem até Arles para convencer Hilário a acompanhá-lo, mas este fez ouvidos de surdo, restando ao santo entregar o caso nas mãos de Deus. Hilário conta o que aconteceu:

Embora eu lembre os grandes serviços de Honorato para com todos, devo falar do infinito cuidado para comigo, pois certamente me trouxeram a salvação em Cristo. Mesmo naqueles anos quando eu era muito amigo do mundo e obstinado contra Deus, como um honesto sedutor, com sua gentil mão, ele conduziu-me ao amor de Cristo.

Quando suas palavras piedosas causaram pouca impressão em mim, buscou o melhor refúgio que conhecia: a oração. Seus apelos amorosos entraram nos mais sagrados ouvidos de Deus apelando por misericórdia.

Mas naquele tempo eu obtive uma vitória desastrosa. Então a mão direita de Deus passou a atormentar-me, pois Honorato havia pedido para Ele colocá-la sobre mim. Que tempestades de desejos conflitantes atormentavam meu coração! Quantas vezes concordância e discordância alternavam-se em minha mente! Assim, enquanto Honorato estava longe de mim, Cristo trabalhava em mim. Pelas suas orações, minha obstinação foi conquistada.

Enquanto o Senhor me chamava, todos os prazeres do mundo se apresentavam, minha mente ponderava qual caminho seguir, qual abandonar. Graças a Deus, meu Bom Jesus entranhou-se no seu servo, quebrou os laços com o mundo e forjou laços de amor. Se eu continuar a me sustentar nestes, os laços dos pecados jamais ganharão novamente suas forças.

Hilário foi então ao encontro de Santo Honorato e tornou-se monge. Quando Honorato foi eleito bispo de Arles, pediu que Hilário o acompanhasse; e, após a sua morte, assumiu o bispado em 429. Enquanto serviu como bispo, manteve os hábitos monásticos, fazia trabalhos braçais para arrecadar dinheiro para os pobres e também vendeu ornamentos e riquezas para pagar pela libertação de escravos. Fundou vários monastérios e revitalizou outros que já existiam.

No entanto, possuia um espírito um tanto autocrático e impaciente nas questões administrativas. Além disso, seu exemplo de austeridade causava problemas com outros bispos que tinham preocupações mais terrenas. Certa feita, ao saber que um bispo estava por morrer, aproveitou a ocaisão para indicar um sucessor mais ao seu estilo. Mas o bispo recuperou a saúde, criando uma situação de conflito. Outra feita, num Concílio da Igreja Francesa, depôs um Bispo que não seguia suas orientações. Ambos casos foram parar em Roma. Depois de muitas negociações, o Papa Leão Magno decidiu por afirmar sua autoridade sobre Hilário e os demais metropolitas quanto a nomeação de novos bispos e ainda dividiu a diocese de Arles em outras menores. 

Santo Hilário entrou em obediência, publicamente submetendo-se ao Papa e passou a dedicar-se a pregações e catequeses. Percebendo que a morte se aproximava, pois as pesadas penitências que se submetia lhe enfraqueciam o corpo, escreveu ao Papa sugerindo um nome para seu sucessor, deixando claro que reconhecia a autoridade do Bispo de Roma. Segundo a maioria das fontes, morreu em 5 de Maio de 449, mas São Roberto Belarmino cita 445 e Alberto de Mire, 446. Sabe-se com certeza que a carta do Papa elegendo Ravenio como seu sucessor é datada em Agosto de 449, quando certamente Santo Hilário já estava morto.










11 de nov. de 2012

Salmo 32: Hino à providência de Deus

1. Distribuído em 22 versículos, tantos quanto é o número de letras do alfabeto hebraico, o Salmo 32 é um cântico de louvor ao Senhor do universo e da história. Um frémito de alegria invade-o desde as primeiras expressões:  "Exultai, ó justos, no Senhor, aos rectos de coração pertence o louvor. Louvai o Senhor com a cítara:  cantai-lhe salmos com a harpa decacorde. Cantai-lhe um cântico novo, tocai os instrumentos com arte, entre orações" (vv. 1-3). Por conseguinte, esta aclamação (tern'ah) é acompanhada pela música e é expressão de uma voz interior de fé e de esperança, de felicidade e de confiança. O cântico é "novo", não só porque renova a certeza da presença divina no âmbito da criação e das vicissitudes humanas, mas também porque antecipa o louvor perfeito que se entoará no dia da salvação definitiva, quando o Reino de Deus chegar à sua actuação gloriosa.

É precisamente para a realização final em Cristo que olha São Basílio, o qual explica este trecho da seguinte forma:  "Habitualmente, chama-se "novo" o que é inusitado ou o que acaba de nascer. Se pensas no modo maravilhoso e superior a qualquer imaginação da encarnação do Senhor, cantas necessariamente um cântico novo e extraordinário. E se percorres com a mente a regeneração e a renovação de toda a humanidade, envelhecida pelo pecado, e anuncias os mistérios da ressurreição, também cantas um cântico novo e extraordinário" (Homilia sobre o Salmo 32, 2: PG 29, 327). Em síntese, segundo São Basílio o convite do salmista que diz:  "Cantai-lhe um cântico novo", para os crentes em Cristo significa:  "Honrai a Deus, não segundo o antigo costume da "letra", mas na novidade do "espírito". De facto, quem não compreende a Lei sob o aspecto exterior, e todavia reconhece o seu "espírito", canta um "cântico novo"" (ibid.).

2. No seu corpo central, o hino divide-se em três partes que se compõem como uma trilogia de louvor. Na primeira (cf. vv. 6-9) celebra-se a palavra criadora de Deus. A admirável arquitectura do universo, semelhante a um templo cósmico, desabrochou e cresceu não através de uma luta entre deuses, como sugeriam algumas cosmogonias do antigo Próximo Oriente, mas apenas com base na eficaz palavra divina. Precisamente como ensina a primeira página do Génesis (cf. cap. 1):  "Deus disse... e tudo foi feito". De fato, o Salmista repete:  "Porque Ele falou e as coisas existiram. Ele mandou e as coisas subsistiram" (v. 9). O orante reserva um relevo especial ao controle das águas do mar porque, na Bíblia, elas são o sinal do caos e do mal. Apesar dos seus limites, o mundo é contudo mantido no seu ser pelo Criador que, como recorda o livro de Jó, ordena que o mar se detenha no litoral:  "Chegarás até aqui, mas não irás mais além; aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas" (38, 11).

3. O Senhor também é o soberano da história humana, como está escrito na segunda parte do Salmo 32, nos versículos 10-15. Com uma vigorosa antítese, opõem-se os projetos dos poderes terrenos e o desígnio admirável que Deus está a traçar na história. Quando querem ser alternativos, os programas humanos introduzem a injustiça, o mal e a violência, pondo-se contra o projecto divino de justiça e salvação. E apesar dos êxitos transitórios ou aparentes, limitam-se a simples conjuras, que se destinam a dissolver-se e a falir. No livro bíblico dos Provérbios declara-se sinteticamente:  "Há muitos projetos no coração do homem, mas é a vontade do Senhor que prevalece" (19, 21). De maneira análoga, o Salmista recorda-nos que, do céu, sua habitação transcendente, Deus acompanha todos os itinerários da humanidade, mesmo os que são insensatos e absurdos, e intui todos os segredos do coração humano.

"Onde quer que tu vás, tudo o que tu realizas, quer nas trevas, quer à luz do dia, o olhar de Deus observa-te", comenta São Basílio (Homilia sobre o Salmo 32, 8:  PG 29, 343). Feliz será o povo que, acolhendo a revelação divina, seguir as suas indicações de vida, percorrendo as suas veredas nos caminhos da história. No final só permanece uma coisa:  "Somente o plano do Senhor subsiste para sempre, os desígnios do Seu coração, por todas as idades" (v. 11).

4. A terceira e última parte do Salmo (cf. vv. 16-22) retoma de dois pontos de vistas novos o tema do senhorio único de Deus sobre as vicissitudes humanas. Em primeiro lugar, por parte dos poderosos, convidados a não se iludirem no que se refere à força militar dos exércitos e das cavalarias. Depois, por parte dos fiéis, muitas vezes oprimidos, famintos e à beira da morte:  são convidados a ter esperança no Senhor que não os deixará precipitar no abismo da destruição.

Revela-se, desta forma, também a função "catequética" deste Salmo. Ele transforma-se num apelo à fé num Deus que não é indiferente à arrogância dos poderosos e que está próximo das debilidades da humanidade, elevando-a e apoiando-a se tem esperança, se n'Ele confia,  se  a  Ele  eleva  a  súplica  e  o louvor.
"A humildade dos que servem a Deus explica ainda São Basílio mostra que eles esperam na sua misericórdia. De fato, quem não tem confiança nos seus grandes empreendimentos, nem espera ser justificado pelas suas obras, tem como única esperança de salvação a misericórdia de Deus"(Homilia sobre o Salmo 32).

5. O Salmo termina com uma antífona que foi inserida no final do conhecido hino Te Deum: "Venha sobre nós, Senhor, o Vosso amor, pois esperamos em Vós" (v. 22). Graça divina e esperança humana encontram-se e abraçam-se. Aliás, a fidelidade amorosa de Deus (segundo o valor da palavra hebraica original usada aqui, hésed), semelhante a um manto, envolve-nos, aquece-nos e protege-nos, oferecendo-nos serenidade e dando um fundamento certo à nossa fé e esperança.

-- Papa João Paulo II, na audiência de 8 de Agosto de 2012

8 de nov. de 2012

Oração à Trindade


* A Oração à Trindade foi composta pela Beata Isabel da Trindade (1880-1906), monja carmelita, cuja memória litúrgica é celebrada em 9 de Novembro. 

Beata Isabel aos 23 anos, pouco tempo após
fazer a sua profissão de fé.
Ó meu Deus, Trindade que eu adoro, fazei com que eu me esqueça totalmente de mim, para me fixar em Vós: imóvel, pacífica, como se a minha alma já estivesse na eternidade. Que nada perturbe a minha paz, nem me leve a abandonar-vos, ó meu Imutável, mas que, em cada momento, possa penetrar cada vez mais na profundidade do vosso Mistério. Pacificai a minha alma, fazei dela o Vosso céu, a Vossa morada e o lugar de Vosso repouso. Fazei que nunca Vos deixe só, que esteja totalmente atenta a Vós, acordada em minha fé... uma adoradora perfeita, totalmente entregue à Vossa Ação criadora. 

Ó meu Cristo amado, crucificado por amor, como eu gostaria de ser a esposa do Vosso Coração! Encher-Vos de glória e amar-Vos até morrer de amor! Porém sinto a minha incapacidade. Por isso vos peço que me "revistais de Vós mesmo", para identificar a minha alma com todos os movimentos da Vossa, para mergulhar, preencher e transformar-me em Vós, a fim de que a minha vida não seja senão uma irradiação da Vossa. Vinde a mim como Adorador, Reparador e Salvador.


Ó Verbo eterno, Palavra do meu Deus, quero passar a minha vida a escutar-Vos. Quero ser totalmente dócil aos Vossos ensinamentos, a fim de aprender tudo de Vós. E no meio da noite, do nada, da incapacidade, quero fixar-Vos sempre e permanecer sob a Vossa admirável luz. Ó meu astro amado, fascinai-me para que nunca mais me separe da Vossa irradiação. 

Ó Fogo consumidor, Espírito de amor, vinde a mim, para que se faça na minha alma como que uma encarnação do Verbo: que eu seja para Ele uma humanidade na qual renove todo o Seu Mistério. E Vós, ó Pai, inclinai-Vos para esta Vossa pobre e pequena criatura, cobri-a com a Vossa sombra, não vejais nela senão o Bem Amado no qual pusestes todas as Vossas complacências. 

Ó meus Três, meu Tudo, minha Beatitude, solidão infinita, imensidade em que me perco, entrego-me a Vós como uma presa. Sepultai-Vos em mim para que eu me sepulte em Vós, esperando vir a contemplar na Vossa luz a imensidão das Vossas grandezas.

7 de nov. de 2012

Capítulo 23 - Da meditação da morte




A morte de uma irmã da caridade - Isidore Pils
  1. Mui depressa chegará teu fim neste mundo; vê, pois, como te preparas: hoje está vivo o homem, e amanhã já não existe. Entretanto, logo que se perdeu de vista, também se perderá da memória. Ó cegueira e dureza do coração humano, que só cuida do presente, sem olhar para o futuro! De tal modo te deves haver em todas as tuas obras e pensamentos, como se fosse já a hora da morte. Se tivesses boa consciência não temerias muito a morte. Melhor fora evitar o pecado que fugir da morte. Se não estás preparado hoje, como o estarás amanhã? O dia de amanhã é incerto, e quem sabe se te será concedido?
  2. Que nos aproveita vivermos muito tempo, quando tão pouco nos emendamos? Oh! nem sempre traz emenda a longa vida, senão que aumenta, muitas vezes, a culpa. Oxalá tivéssemos, um dia sequer, vivido bem neste mundo! Muitos contam os anos decorridos desde a sua conversão; freqüentemente, porém, é pouco o fruto da emenda. Se for tanto para temer o morrer, talvez seja ainda mais perigoso o viver muito. Bem-aventurado aquele que medita sempre sobre a hora da morte, e para ela se dispõe cada dia. Se já viste alguém morrer, reflete que também tu passarás pelo mesmo caminho.
  3. Pela manhã, pensa que não chegarás à noite, e à noite não te prometas o dia seguinte. Por isso anda sempre preparado e vive de tal modo que te não encontre a morte desprevenido. Muitos morrem repentina e inesperadamente; pois na hora em que menos se pensa, virá o Filho do Homem (Lc 12,40). Quando vier àquela hora derradeira, começarás a julgar mui diferentemente toda a tua vida passada, e doer-te-á muito teres sido tão negligente e remisso.
  4. Quão feliz e prudente é aquele que procura ser em vida como deseja que o ache a morte. Pois o que dará grande confiança de morte abençoada é o perfeito desprezo do mundo, o desejo ardente do progresso na virtude, o amor à disciplina, o rigor na penitência, a prontidão na obediência, a renúncia de si mesmo e a paciência em sofrer, por amor de Cristo, qualquer adversidade. Mui fácil é praticar o bem enquanto estás são; mas, quando enfermo, não sei o que poderás. Poucos melhoram com a enfermidade; raro também se santificam os que andam em muitas peregrinações.
  5. Não confies em parentes e amigos, nem proteles para mais tarde o negócio de tua salvação, porque mais depressa do que pensas te esquecerão os homens. Melhor é providenciar agora e fazer algo de bem, do que esperar pelo socorro dos outros. Se não cuidas de ti no presente, quem cuidará de ti no futuro? Mui precioso é o tempo presente: agora são os dias de salvação, agora é o tempo favorável (2Cor 6,2). Mas, ai! Que melhor não aproveitas o meio pelo qual podes merecer viver eternamente! Tempo virá de desejares, um dia, uma hora sequer, para a tua emenda, e não sei se a alcançarás.
  6. Olha, meu caro irmão, de quantos perigos te poderias livrar e de quantos terrores fugir, se sempre andasses temeroso e desconfiado da morte. Procura agora de tal modo viver, que na hora da morte te possas antes alegrar que temer. Aprende agora a desprezar tudo, para então poderes voar livremente a Cristo. Castiga agora teu corpo pela penitência, para que possas então ter legítima confiança.
  7. Ó louco, que pensas viver muito tempo, quando não tens seguro nem um só dia! Quantos têm sido logrados e, de improviso, arrancados ao corpo! Quantas vezes ouviste contar: morreu este a espada; afogou-se aquele; este outro, caindo do alto, quebrou a cabeça; um morreu comendo, outro expirou jogando. Estes se terminaram pelo fogo, aqueles pelo ferro, uns pela peste, outros pelas mãos dos ladrões, e de todos é o fim a morte, e, depressa, qual sombra, acaba a vida do homem (Sl 143,4).
  8. Quem se lembrará de ti depois da morte? E quem rogará por ti? Faze já, irmão caríssimo, quanto puderes; pois não sabes, quando morrerás nem o que te sucederá depois da morte. Enquanto tens tempo, ajunta riquezas imortais. Só cuida em tua salvação, ocupa-te só nas coisas de Deus.  Granjeia agora amigos, venerando os santos de Deus e imitando suas obras, para que, ao saíres desta vida, te recebam nas eternas moradas (Lc 16,9).
  9. Considera-te como hóspede e peregrino neste mundo, como se nada tivesses com os negócios da terra. Conserva livre teu coração, e erguido a Deus, porque não tens aqui morada permanente. Para lá dirige tuas preces e gemidos, cada dia, com lágrimas, a fim de que mereça tua alma, depois da morte, passar venturosamente ao Senhor. Amém.
-- Do livro "Imitação de Cristo"(século XV)

5 de nov. de 2012

Capítulo 22 - Da consideração da miséria humana


A volta do filho pródigo - Rembrandt

  1. Miserável serás, onde quer que estejas e para onde quer que te voltes, se não te voltares para Deus. Por que te afliges, quando não te correm as coisas a teu gosto e vontade? Quem é que tem tudo à medida de seu desejo? Nem eu, nem tu, nem homem algum sobre a terra. Ninguém há no mundo sem nenhuma tribulação ou angústia, quer seja rei quer Papa. Quem é que vive mais feliz? Aquele, de certo, que sabe sofrer alguma coisa por Deus.
  2. Dizem muitos mesquinhos e tíbios: Olhai, que boa vida tem este homem: quão rico é, quão grande e poderoso, de que alta posição! Olha tu para os bens do céu, e verás que nada são os bens corporais, mas muito incertos e onerosos, pois nunca vive sem temor e cuidado quem os possui. Não consiste a felicidade do homem na abundância dos bens temporais; basta-lhe a mediania. O viver na terra é verdadeira miséria. Quanto mais espiritual quer ser o homem, mais amarga lhe será a vida presente, porque conhece melhor e mais claramente vê os defeitos da humana corrupção. Porque o comer, beber, velar, dormir, descansar, trabalhar e estar sujeito a todas as demais grandes misérias e aflições para o homem espiritual que deseja estar isento disto e livre de todo pecado.
  3. Sim, muito oprimido se sente o homem interior com as necessidades corporais neste mundo. Por isto roga o profeta a Deus, devotamente, que o livre delas, dizendo: Livrai-me, Senhor, das minhas necessidades (Sl 24,17). Mas, ai daqueles que não conhecem a sua miséria, e, outra vez, ai daqueles que amam esta miserável e corruptível vida! Porque há alguns tão apegados a ela - posto que mal arranjem o necessário com o trabalho ou com a esmola - que, se pudessem viver aqui sempre, nada se lhes daria do reino de Deus.
  4. Ó insensatos e duros de coração, que tão profundamente jazem apegados à terra, que não gostam senão das coisas carnais. Infelizes! Lá virá o tempo em que hão de sentir, muito a seu custo, como era vil e nulo aquilo que amaram. Os santos de Deus, e todos os fiéis amigos de Cristo, não tinham em conta o que agradava à carne nem o que neste mundo brilhava, mas toda a sua esperança e intenção se fixavam nos bens eternos. Todo o seu desejo se elevava para as coisas invisíveis e perenes, para que o amor do visível não se arrasta a desejar as coisas inferiores. Não percas, irmão meu, a confiança de fazer progressos na vida espiritual; ainda tens tempo e ocasião. 
  5. Por que queres adiar tua resolução? Levanta-te, começa já e dize: Agora é tempo de agir, agora é tempo de pelejar, agora é tempo próprio para me emendar. Quando estás atribulado e aflito, é tempo de merecer. Importa que passes por fogo e água, antes que chegues ao refrigério (Sl 65,12). Se não te fizeres violência, não vencerás os vícios. Enquanto estamos neste frágil corpo, não podemos estar sem pecado, nem viver sem enfado e dor. Bem quiséramos descanso de toda miséria; mas como pelo pecado perdemos a inocência, perdemos também a verdadeira felicidade. Por isso devemos ter paciência, e confiar na divina misericórdia, até que passe a iniqüidade (Sl 52,6), e a vida absorva esta mortalidade (2Cor 5,4).
  6. Como é grande a fragilidade humana, inclinada sempre ao mal! Hoje confessas os teus pecados, e amanhã cometes outra vez os mesmos que confessaste. Resolves agora te acautelar, e daqui a uma hora de portas como quem nada se propôs. Com muita razão nos devemos humilhar e não nos ter em grande conta, já que tão frágeis somos e tão inconstantes. Assim, facilmente se pode perder pela negligência o que tanto nos custou a adquirir com a divina graça.
  7. Que será de nós no fim, se já tão cedo somos tíbios? Ai de nós, se assim procuramos repouso, como se já estivéssemos em paz e segurança, quando nem sinal aparece em nossa vida de verdadeira santidade. Bem necessário nos fora que nos intruíssemos de novo, como bons noviços, nos bons costumes; talvez que assim houvesse esperança de alguma emenda futura e maior progresso espiritual.

-- Do livro "Imitação de Cristo"(século XV)

3 de nov. de 2012

A promoção da paz


A paz não é mera ausência de guerra, nem se reduz a um equilíbrio entre as forças adversárias nem se origina de um domínio tirânico, mas com toda a propriedade se chama obra da justiça (Is 32,17). É fruto da ordem, inserida na sociedade humana por seu divino fundador e a ser realizada de modo sempre mais perfeito pelos homens que têm sede de justiça. Em seus fundamentos o bem comum do gênero humano é regido pela lei eterna. Contudo, nas contingências concretas, está sujeito a incessantes mudanças com o decorrer dos tempos. Por isso a paz nunca é conquistada de uma vez para sempre; deve ser continuamente construída. Além disto, sendo a vontade humana volúvel e marcada pelo pecado, a busca da paz exige de cada um o constante domínio das paixões e a atenta vigilância da autoridade legítima.

Isto, porém, não basta. Aqui na terra não se pode obter a paz a não ser que seja salvaguardado o bem das pessoas e que os homens comuniquem entre si, com confiança e espontaneidade, suas riquezas de coração e de inteligência. Vontade firme de respeitar a dignidade dos outros homens e povos, ativa fraternidade na construção da paz, são coisas absolutamente necessárias. Deste modo a paz será também fruto do amor, que vai além do que a justiça é capaz de proporcionar. Pois a paz terena, oriunda do amor ao próximo, é figura e resultado da paz de Cristo, provinda de Deus Pai. Seu Filho encarnado, príncipe da paz, pela cruz reconciliou os homens com Deus. E recompondo a unidade de todos em um só povo e um só corpo, em sua carne destruiu o ódio (cf. Ef 2,16; Cl 1,20.22),  e exaltado pela ressurreição, infundiu nos corações o Espírito da caridade.

É a razão por que todos os cristãos são insistentemente chamados a que, vivendo a verdade na caridade (cf. Ef 4,15), se unam aos homens verdadeiramente pacíficos, a fim de implorar e estabelecer a paz. Movidos pelo mesmo espírito, queremos louvar calorosamente aqueles que renunciam à ação violenta para reivindicar seus direitos e recorrem aos meios de defesa, que de resto estão ao alcance dos mais fracos também, contanto que isto não venha lesar os direitos e deveres de outros ou da comunidade.

-- Da Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo de hoje, do Concílio Vaticano II (século XX)

1 de nov. de 2012

Hino de Tobit: Deus castiga e salva

Tobit e Ana com o bode, Rembrandt, 1626.
Rijksmuseum (Amsterdam)

1. "De toda a minha alma louvarei o meu Deus, Rei do céu" (Tb 13, 9). Quem pronuncia estas palavras, no cântico agora proclamado, é o velho Tobit, do qual o Antigo Testamento traça uma breve história edificante, no livro que toma o nome do filho, Tobias.

Para compreender plenamente o sentido deste hino, é preciso considerar as páginas narrativas que o precedem. A história passa-se entre os israelitas exilados em Nínive. O autor sagrado olha para eles, escrevendo muitos séculos depois, para os apontar aos irmãos e irmãs de fé, dispersos no meio de um povo estrangeiro e tentados a abandonar as tradições de seus pais. O retrato de Tobit e da sua família é oferecido como um programa de vida. Ele é o homem que, apesar de tudo, permanece fiel à lei e, em particular, à prática da esmola. Sobre ele se abate a infelicidade com a chegada inesperada da pobreza e da cegueira, mas não lhe falta a fé. E a resposta de Deus não tarda a chegar, através do anjo Rafael, que guia o jovem Tobias numa viagem perigosa, preparando-o para um matrimónio feliz e, enfim, curando o pai Tobit da cegueira.

A mensagem é clara:  quem faz o bem, sobretudo abrindo o coração à necessidade do próximo, agradará ao Senhor e, ainda que seja posto à prova, experimentará, por fim, a Sua benevolência.

2. É sobre este fundo que tomam todo o seu realce as palavras do nosso hino. Ele convida a olhar para o alto, para "Deus que vive eternamente", para o seu reino que "dura por todos os séculos". A partir deste olhar voltado para Deus se desenvolve um breve esboço de teologia da história, em que o Autor sagrado procura responder à interrogação que o Povo de Deus, disperso e provado, apresenta a si mesmo:  porque é que Deus nos trata assim? A resposta faz um apelo conjunto à justiça e à misericórdia divina:  "castiga-vos por causa das vossas iniquidades, mas a seguir, compadece-se de vós" (cf v. 5). O castigo aparece assim como uma espécie de pedagogia divina, onde, todavia, a última palavra é sempre reservada à misericórdia:  "Ele castiga e compadece-se, conduz ao sepulcro e dele faz sair; nada existe que escape à sua mão" (v. 2 ).

Podemos, pois, confiar de modo absoluto em Deus, que nunca abandona a sua criatura. Aliás, as palavras do hino conduzem-nos a uma perspectiva, que atribui um significado salvífico à própria situação de sofrimento, fazendo do exílio uma ocasião para testemunhar as obras de Deus:  " louvai-O, filhos de Israel, diante dos gentios, porque Ele dispersou-vos no meio deles, para proclamar a sua grandeza" (vv. 3-4).

3. Deste convite a ler o exílio como chave providencial, a nossa meditação pode alargar-se na consideração do sentido misteriosamente positivo que assume a condição de sofrimento, quando é vivida no abandono à vontade de Deus. Algumas passagens no Antigo Testamento, esboçam já este tema. Basta pensar na história narrada pelo livro do Génesis, sobre José vendido pelos irmãos (cf. Gn 37, 2-36) e destinado a ser, no futuro, o seu salvador. E como esquecer o livro de Jó? Aqui, é verdadeiramente o homem inocente que sofre e não encontra explicação para o seu drama, senão confiando na grandeza e sabedoria de Deus (cf. Job 42, 1-6).

Para nós, que lemos cristãmente estas passagens do Antigo Testamento, o ponto de referência não pode deixar de ser a Cruz de Cristo, na qual se encontra uma resposta profunda para o mistério da dor no mundo.

4. Aos pecadores que são julgados pelas suas injustiças (cf. v. 5), o hino de Tobit dirige um apelo à conversão e abre a perspectiva maravilhosa de uma "recíproca" conversão de Deus e do homem:  "Convertei-vos a Ele, com todo o vosso coração e com toda a vossa alma, para praticar a verdade na sua presença. Ele voltar-Se-á para vós e não vos ocultará a Sua face" (v. 6). É muito eloquente este uso da mesma palavra "conversão" para a criatura e para Deus, embora com significado diverso.

Se o autor do Cântico pensa, porventura, nos benefícios que acompanham o "regresso" de Deus, ou seja, o seu renovado favor para com o povo, nós devemos pensar sobretudo, à luz do mistério de Cristo, no dom que consiste no próprio Deus. O homem tem necessidade dele, mesmo mais do que dos seus dons. O pecado é uma tragédia não tanto porque nos atrai os castigos de Deus, mas porque O repele do nosso coração.

5. Por isso, é para o rosto de Deus considerado como Pai que o Cântico dirige o nosso olhar, convidando-nos à bênção e ao louvor:  "Ele é o nosso Senhor e o nosso Deus, é o nosso Pai" (v. 4). Descobre-se que o sentido desta especial "filiação" que Israel experimenta como dom de aliança e que prepara o mistério da encarnação do Filho de Deus. Então, em Jesus, resplandecerá o rosto do Pai e será revelada a sua misericórdia sem limites.

Bastaria pensar na parábola do Pai misericordioso narrada pelo evangelista Lucas. À conversão do filho pródigo não corresponde só o perdão do Pai, mas um abraço de infinita ternura, acompanhado da alegria e da festa:  "Ainda estava longe quando o pai o viu e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos" (Lc 15, 20). As expressões do nosso Cântico estão na linha desta comovente imagem evangélica. E dela nasce a necessidade de louvar e agradecer a Deus:  "Contemplai, agora, o que fez por nós, rendei-lhe graças com a vossa boca:  bendizei o Senhor da justiça e exaltai o Rei dos séculos" (v. 7).

-- Papa João Paulo II na audiência de 25 de Julho de 2001.

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