11 de fev. de 2022

A Meditação, Primeiro Grau da Oração

A palavra meditação é muita usada nas Sagradas Escrituras então quer dizer outra coisa mais que um pensamento fixo e atento, capaz de produzir efeitos bons ou maus.

No primeiro salmo (Sl 1,1-2), o homem chama-se bem-aventurado porque sua vontade está posta na lei do Senhor, e na sua lei meditará dia e noite; mas em outro Salmo diz-se: Porque razão se embraveceram as nações e os povos meditaram coisas vãs? (Sl 2,1-2) A meditação, pois, pode tender para o bem ou para o mal; mas, como na Sagrada Escritura é ordinariamente empregada para exprimir a atenção que prestamos às coisas divinas, para nos excitarmos a amá-las, quando falamos de meditação, entendemos a que é santa e início da teologia mística.

Toda meditação é pensamento, mas nem todo pensamento é meditação. Muitas vezes temos pensamentos a que o espírito se prende por simples passatempo, sem qualquer intenção ou pretensão, à semelhança das moscas que voam por aqui e por ali, sobre as flores, sem delas tirarem coisa alguma; esta espécie de pensamento, por atento que seja, não pode ter o nome de meditação, mas deve-se chamar simplesmente pensamento. Algumas vezes pensamos atentamente numa coisa para entender as suas causas, os seus efeitos, as suas qualidades; este pensamento chama-se estudo, e nele o espírito faz como os besouros que esvoaçam indistintamente sobre as flores e a folhas, para as comerem e delas se nutrirem.

Quando, porém, pensamos nas coisas divinas, não para as apreender, mas para lhes dar o nosso afeto, chama-se a isto meditar, a este exercício, meditação; o nosso espírito aplica-se a tarefa, não como mosca que se diverte, ou besouro que só procura comer e encher-se, mas como abelha, que pousa aqui e ali sobre as flores dos santos mistérios, para deles extrair o mel do divino amor. 

Assim muitos devaneiam em pensamentos inúteis, sem as vezes saberem em que pensam, entregando-se a cogitações que martirizam a sua alma e que quereriam não ter, como testemunha o Santo Patriarca Jó: Passaram os meus dias, desvaneceram-se os meus pensamentos que flagelaram o meu coração (Jó 17,11).

Muitos entregam-se ao estudo, e nesta ocupação laboriosa enchem-se de vaidade, não podendo resistir ao veemente desejo de saber, mas poucos são os que meditam para aquecer o coração no santo amor de Deus.

Numa palavra, o pensamento e o estudo incidem sobre qualquer espécie de assunto, mas a meditação só se refere aos assuntos cuja consideração nos pode tornar bons e devotos; de sorte que a meditação não é outra coisa mais que um pensamento atento, reiterado ou conservado voluntariamente no espírito, a fim de excitar a vontade de afetos e resoluções santas e salutares.

A Sagrada Bíblia explica admiralvelmente em que consiste a meditação com uma excelente comparação. Ezequias descreve num cântico a atenção que presta às suas dores, dizendo: Clamarei como o filhinho da andorinha, gemerei como a pomba (Is 38,14). De fato, os filhinhos das andorinhas abrem desmedidamente o bico, quando chilreiam, e as pombas, ao contrário, conservam o bico fechado, cadenciando a voz na garganta e peito, tanto para exprimir a alegria como a tristeza. Ezequias, pois, para mostrar que no meio das suas mágoas fazia muitas orações vocais, diz: Clamarei como filhinho da andorinha, isto é, abrindo a boca  para soltar diante de Deus muitas vozes plangentes. Por outro lado, querendo atestar que empregava a santa oração mental, continua: Gemerei como a pomba, volvendo e revolvendo os meus pensamentos dentro do coração para bendizer e louvar a soberana misericórdia do meu Deus, que me tirou das portas da morte (Is 38,10), tendo compaixão das minhas misérias. 

Assim diz Isaías (Is 38,14): Rugiremos como ursos, e meditando gemeremos como pombas. O rugido dos ursos refere-se às exclamações e aos brados que se empregam na oração vocal, e o gemidos das pombas à santa meditação.

E para que se saiba que as pombas não fazem o seu arrulho só nas ocasiões tristes, mas também nas alegres, o Esposo sagrado, descrevendo a primavera natural para exprimir as graças da primavera espiritual, diz (Ct 2,12): Ouviu-se na terra a voz da rola; porque na primavera é que a pomba começa a apaixonar-se do amor, como manifesta nos frequentes arrulhos. E logo depois (Ct 2,14): Pomba minha, mostra-me a tua face; soe a tua voz dentro dos meus ouvidos; porque a tua voz é doce e graciosa é a tua face.

Quer dizer que a alma devota lhe é muito grata, quando se apresenta diante dele e medita para se animar ao santo amor espiritual, como fazem as pombas para se excitarem aos seus amores naturais.

Do mesmo modo aquele que tinha dito: Gemerei como a pomba, exprimindo-se doutra forma, afirma: Relembrarei diante de ti todos os meus anos com amargura da minha alma (Is 38, 15), porque meditar e relembrar para excitar os afetos é uma e mesma coisa.

Moisés advertindo o povo que relembrasse os favores recebidos de Deus: Guardarás os mandamentos do Senhor teu Deus, e andarás nos seus caminhos, e O temerás (Dt 8,6); e Deus dá também este mesmo preceito a Josué (1, 8): Não se aparte da tua boca o livro desta lei; mas meditarás nele dia e noite, para observares e cumprires tudo o que nele está escrito.

O que numa das passagens é expresso pela palavra meditar é na outra enunciado pela palavra relembrar. E para mostrar que o pensamento refletido e a meditação tendem a mover-nos aos afetos, resoluções e ações, diz-se numa e noutra passagem, que é necessário relembrar e meditar a lei para observar e praticar. Neste sentido o Apóstolo exorta-nos desta forma (Hb 12, 3): Meditai atentamente n'Aquele que sofreu tal contradição da parte dos pecadores contra a sua pessoa, para que não desfaleçais, faltando-vos a coragem. 

E porque quer Ele que meditemos na Sagrada Paixão, não para nos tornarmos sábios, mas para sermos pacientes e corajosos no caminho do Céu. Oh Senhor, como tenho amado a vossa Lei!, diz Davi (Sl 118, 97), ela é a minha meditação todo o dia. Medita na lei porque a ama, e ama-a porque a medita.

A meditação não é mais que o ruminar místico, necessário para tirar as impurezas (Lv 11,3-4.8), ao qual nos convida uma das devotas pastoras, que seguiam a sagrada Sulamita; afirmava ela que a santa doutrina é como um vinho precioso, digno não só de ser bebido por pastores e doutores, mas de ser cuidadosamente saboreado, e, por assim dizer, mastigado e ruminado. A tua garganta, diz ela (Ct 7,9-10), é como o melhor vinho, digno de ser bebido pelo meu amado, e saboreado entre os seus lábios e os seus dentes. Do mesmo modo o bem-aventurado Isaac (Gn 24,63), como um cordeiro limpo e puro, saía à tarde para os campos para exercitar o seu espírito com Deus, isto é, para orar e meditar.

A abelha na primavera vai voejando de flor em flor não ao acaso, mas de propósito, não somente para se recrear com o aprazível matiz da paisagem, mas para procurar o mel, e tendo-o achado, suga-o e dele se carrega. Em seguida, leva-o à colméia, dispõe-no artisticamente, separando dele a cera e fazendo com esta o favo no qual conserva o mel para o inverno seguinte.

Tal é a alma devota na meditação: vai de mistério em mistério, não de passagem, nem mesmo só para se consolar com a admirável beleza dessas divinas verdades, mas com o intuito de encontrar motivos de amor e afetos, e, tendo-os encontrado, os atrai a si, os saboreia, e deles se carrega e, resumindo-os e dispondo-os dentro do coração, põe de parte o que vê ser mais apropriado ao seu adiantamento, fazendo resoluções convenientes para o tempo da tentação.

Desta forma a celeste amante, como abelha mística, vai pousando no Cântico dos Cânticos, ora sobre os olhos, ora sobre os lábios, sobre as faces, ou sobre os cabelos do seu Bem-amado, isto é, de Jesus, para aurir dÉle a suavidade de mil afetos apaixonados, de sorte que, toda abrasada no amor divino, fala com Ele, interroga-O, escuata-O, suspira e O admira, ao passo que Ele a enche de alegria inspirando-a, movendo-lhe o coração, abrindo-o para nele difundir luzes, claridades, doçuras sem fim, dum modo tão secreto que bem se pode dizer desta santa conversação da alma com Deus o que a Sagrada Escritura diz de Deus com Moisés (Ex 19,19-20): que Moisés, estando no alto da montanha falava com Deus e Ele lhe respondia.
 

-- São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, livro 6, capítulo 2. (século XVI)

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