19 de jun. de 2021

A Penitência é um sacramento?


 Há alguns parece que a Penitência não é um sacramento, embora a Igreja considere como um dos sete sacramentos.

Primeira objeção:
Segundo está nos primeiros decretos da Igreja, os sacramentos são o Batismo, Crisma e o Corpo e Sangue de Cristo. Eles se chamam sacramentos por que, através de sinais visíveis, Deus opera invisivelmente a salvação. Isto não ocorre com a Penitência, por que Deus realiza a salvação sem necessitar de sinais visíveis.

Resposta: É verdade que um sacramento consiste em uma cerimônia feita de tal modo que nela recebamos simbolicamente o que devemos receber santamente. Ora, na Penitência, o ato praticado tem um significado santo, tanto da parte do pecador penitente, pelo que faz e diz, mostra abandonar o pecado no seu coração; também o sacerdote, pelo que faz e diz, significa a obra de Deus, isto é, o perdão dos pecados.

Por sinais visíveis deve-se entender todos os gestos realizados por um homem, assim como derramar a água no Batismo ou ungir com óleo o crismando. Um sacramento dispensa graças excelentes, superiores a toda capacidade humana, assim, no Batismo, todos pecados são redimidos, na Crisma, se confere a plenitude do Espírito Santo, na extrema-unção, a perfeita saúde espiritual, proveniente da virtude de Cristo. Os atos humanos envolvidos em tais sacramentos não são sua essência, são apenas a maneira de realizá-los. 

Além disso, no caso da Penitência e do Casamento, são os próprios atos humanos daqueles que recebem o sacramento, que tornam visíveis seus efeitos.

Segunda objeção:
Os sacramentos da Igreja são realizados pelos ministros de Cristo, que dispensam os mistérios de Deus. A Penitência não é realizada pelo ministro, nem conta com a sua participação, mas é inspirada aos homens por Deus, segundo diz a Escritura: Depois que me converteste, fiz penitência (Jr 31,17).

Resposta: nos sacramentos que incluem matéria visível, como a água e o óleo, é necessário que sejam aplicados pelo ministro da Igreja, representante da pessoa de Cristo, um sinal de que o sacramento vem de Cristo mesmo. Como dissemos, na Penitência os atos humanos são realizados pelo pecador penitente, atos provenientes de uma inspiração interna. Assim, não há matéria aplicada pelo ministro, mas Deus que age interiormente; o ministro dá somente o complemento do sacramento, absolvendo o penitente.

Terceira objeção:
Nos sacramentos, como Batismo e Crisma, temos que distinguir os atos visíveis e sua realidade espiritual não visível. Nada disto ocorre na Penitência, assim a Penitência não seria um sacramento por não ter a mesma estrutura.

Resposta:
Também na Penitência podemos distinguir o que é só visível, os atos praticados tanto pelo pecador penitente quanto pelo padre, e o arrependimento interno do pecador.

-- São Tomás de Aquina, Suma Teológica, Questão 84, artigo I.

-- Este post é parte da série Suma Teológica Reescrita, na qual reorganizo e "traduzo" para uma linguagem mais moderna questões discutidas por São Tomás de Aquino na monumental e fundamental Suma Teológica.

17 de jun. de 2021

Verdades fundamentais sobre o Sacramento da Penitência

 
O Sacramento da Penitência baseia-se em algumas convicções de fé que a seguir enuncio e à volta das quais se reúnem todas as outras afirmações da doutrina católica sobre o Sacramento da Penitência.

Sacramento da Penitência é a via ordinária para obter o perdão 

A primeira convicção é que, para um cristão, o Sacramento da Penitência é a via ordinária para obter o perdão e a remissão dos seus pecados graves cometidos depois do Batismo. O divino Salvador e a sua ação salvífica, certamente, não estão ligados a um sinal sacramental, de maneira a não poderem em qualquer tempo e circunstância da história da salvação agir fora e acima dos Sacramentos. Mas na escola da fé aprendemos que o mesmo Salvador quis e dispôs que os humildes e preciosos Sacramentos da fé sejam ordinariamente os meios eficazes, pelos quais passa e opera o seu poder redentor. Seria portanto insensato, além de presunçoso, querer prescindir arbitrariamente dos instrumentos de graça e de salvação que o Senhor dispôs e, no caso específico, pretender receber o perdão, pondo de lado o Sacramento, instituído por Cristo exatamente para o perdão.

O Sacramento da Penitência é um tribunal de misericória e cura espiritual

A segunda convicção diz respeito à função do Sacramento da Penitência para aqueles que a ele recorrem. Segundo a mais antiga concepção da Tradição trata-se de uma espécie de ato judicial; mas este ato decorre junto de um tribunal mais de misericórdia, do que de estrita e rigorosa justiça, pelo que não é comparável aos tribunais humanos, (178) senão por analogia; ou seja, na medida em que o pecador aí descobre os seus pecados e a sua própria condição de criatura sujeita ao pecado; se compromete a renunciar e a combater o pecado; aceita a pena (penitência sacramental) que o confessor lhe impõe e dele recebe a absolvição.

Ao refletir, porém, sobre a função deste Sacramento, a consciência da Igreja vislumbra nele, além do carácter judicial, no sentido acima aludido, um carácter terapêutico ou medicinal. E isto relaciona-se com o fato, frequente no Evangelho, da apresentação de Cristo como médico, (179) enquanto a sua obra redentora é muitas vezes chamada, desde a antiguidade cristã, "remédio da salvação". "Eu quero curar, não acusar", dizia Santo Agostinho, referindo-se ao exercício da pastoral penitêncial, (180) e é graças ao remédio da confissão que a experiência do pecado não degenera em desespero. (181) O Ritual da Penitência alude a este aspecto medicinal do Sacramento, (182) ao qual o homem contemporâneo é talvez mais sensível, vendo no pecado o que ele comporta de erro, obviamente, e mais ainda aquilo que ele indica relacionado com a fraqueza e enfermidade humanas.

Tribunal de misericórdia ou lugar de cura espiritual, sob ambos os aspectos o Sacramento exige um conhecimento do íntimo do pecador, para o poder julgar e absolver, para tratar dele e o curar. E precisamente por isto, implica, da parte do penitente, a acusação sincera e completa dos pecados, que tem assim uma razão de ser, não só inspirada em fins ascéticos (como exercício de humildade e de mortificação), mas inerente à própria natureza do Sacramento.

O Sacramento da Penitência é composto por sinais visíveis

A terceira convicção que desejo aqui salientar, diz respeito as realidades ou partes que compõem o sinal sacramental do perdão e da reconciliação. Algumas destas realidades são atos do penitente, de importância diversa, mas cada um deles indispensável ou para a validade ou para a integridade ou para o fruto do sinal.

Uma condição indispensável, primeiro que tudo, é a retidão e a limpidez da consciência do penitente. Um homem não se põe a caminho para uma verdadeira e genuína penitência, enquanto não perceber que o pecado contrasta com a norma ética, inscrita no íntimo do próprio ser; (183) enquanto não reconhecer ter feito a experiência pessoal e responsável de uma tal oposição; enquanto não disser não apenas "o pecado existe", mas "eu pequei"; enquanto não admitir que o pecado introduziu na sua consciência uma divisão, que avassala todo o seu ser e o separa de Deus e dos irmãos. O sinal sacramental desta limpidez da consciência é o acto tradicionalmente chamado exame de consciência, acto que deveria ser sempre, não tanto uma introspecção psicológica ansiosa, mas o confronto sincero e sereno com a lei moral interior, com as normas evangélicas propostas pela Igreja, com o próprio Jesus Cristo, que é para nós mestre e modelo de vida e com o Pai celeste que nos chama ao bem e à perfeição. (184)

Mas o ato essencial da Penitência, da parte do penitente, é a contrição, ou seja, um claro e decidido repúdio do pecado cometido, juntamente com o propósito de não o tornar a cometer, (185) pelo amor que se tem a Deus e que renasce com o arrependimento. Entendida deste modo a contrição é, pois, o princípio e a alma da conversão, daquela metánoia evangélica que reconduz o homem a Deus, como o filho pródigo que volta ao pai, e que tem no Sacramento da Penitência o seu sinal visível e aperfeiçoador da própria atrição. Por isso, "desta contrição do coração depende a verdade da penitência". (186)

Supondo e chamando a atenção para tudo aquilo que a Igreja, inspirada pela palavra de Deus, ensina acerca da contrição, está-me particularmente a peito, neste ponto, salientar um aspecto de tal doutrina, para que seja melhor conhecido e mais tido presente. Não raro se considera a conversão e a contrição sob o aspecto das inegáveis exigências que elas comportam e da mortificação que impõem em ordem a uma radical mudança de vida. Mas é bom recordar e acentuar que contrição e conversão são, sobretudo, uma aproximação da santidade de Deus, um reencontro da própria verdade interior, obscurecida e transtornada pelo pecado, um libertar-se no mais profundo de si próprio e, por isso, um reconquistar a alegria perdida, a alegria de ser salvado, (187) que a maioria dos homens do nosso tempo já não sabe saborear.

Compreende-se, assim, que desde os primeiros tempos cristãos, em ligação com os Apóstolos e com Cristo, a Igreja tenha incluído no sinal sacramental da Penitência a acusação dos pecados. Esta aparece como tão relevante que, desde há séculos, o nome usual do Sacramento foi e é ainda agora o de confissão. Acusar os próprios pecados é exigido, antes de mais, pela necessidade do pecador ser conhecido por aquele que no Sacramento exerce o papel de juiz, o qual deve avaliar, quer a gravidade dos pecados, quer o arrependimento do penitente; e, simultaneamente, o papel de médico, que deve conhecer o estado do enfermo para tratar dele e o curar. Mas a confissão individual tem também o valor de sinal: sinal do encontro do pecador com a mediação eclesial na pessoa do ministro; sinal do seu pôr-se a descoberto diante de Deus e da Igreja como pecador, do esclarecer-se a si mesmo sob o olhar de Deus. A acusação dos pecados, portanto, não pode ser reduzida a qualquer tentativa de autolibertação psicológica, ainda que esta corresponda a uma necessidade legítima e natural de abrir-se com alguém, o que é algo ínsito no coração do homem. Trata-se de um gesto litúrgico, solene na sua dramaticidade, humilde e sóbrio na grandeza do seu significado. É o gesto do filho pródigo que volta para junto do pai e por ele é acolhido com o beijo da paz; gesto de lealdade e de coragem; gesto de entrega de si mesmo, passando além do pecado, à misericórdia que perdoa. (188)

Compreende-se, então, por que é que a acusação dos pecados deve ser ordinariamente individual e não coletiva, tal como o pecado é um fato profundamente pessoal. Ao mesmo tempo, porém, esta acusação arranca, de certo modo, o pecado do segredo do coração e, por conseguinte, do âmbito da pura individualidade, pondo em relevo o seu caráter social, uma vez que, mediante o ministro da Penitência, é a Comunidade eclesial, lesada pelo pecado, que acolhe de novo o pecador arrependido e perdoado.

O outro momento essencial do Sacramento da Penitência, compete, por sua vez, ao confessor juiz e médico, imagem de Deus Pai que acolhe aquele que regressa e lhe perdoa: é a absolvição. As palavras que a exprimem e os gestos que a acompanham no antigo e no novo Ritual da Penitência, revestem-se de uma significativa simplicidade na sua grandeza. A fórmula sacramental: «Eu te absolvo...», a imposição das mãos e o sinal da cruz traçado sobre o penitente manifestam que naquele momento o pecador contrito e convertido entra em contacto com o poder e a misericórdia de Deus. É em tal momento que, em resposta ao penitente, a Santíssima Trindade se torna presente para apagar o seu pecado e restituir-lhe a inocência; e a força salvífica da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus é comunicada ao mesmo penitente, como «misericórdia mais forte do que a culpa e a ofensa», como a designei na Encíclica Dives in Misericordia. Deus é sempre o principal ofendido pelo pecado — "Pequei só contra Vós!"  — e só Deus pode perdoar. Por isso, a absolvição que o Sacerdote, ministro do perdão, embora também ele pecador, concede ao penitente, é o sinal eficaz da intervenção do Pai em cada absolvição e da ressurreição da morte espiritual que se renova todas as vezes que é actuado o Sacramento da Penitência. Só a fé pode assegurar que naquele momento todos e cada um dos pecados são perdoados e apagados pela misteriosa intervenção do Salvador.

A satisfação é o ato final que coroa o sinal sacramental da Penitência. Em alguns países, o que o penitente perdoado e absolvido aceita cumprir depois de ter recebido a absolvição, chama-se precisamente penitência. Qual é o significado desta satisfação que se dá ou desta penitência que se faz? Não é certamente o preço que se paga pelo pecado absolvido e pelo perdão alcançado: nenhum preço humano pode equivaler ao que se obteve, fruto do preciosíssimo Sangue de Cristo. As obras de satisfação — que, embora conservando um carácter de simplicidade e de humildade, deveriam tornar-se mais expressivas de tudo aquilo que significam — querem dizer algo de precioso: são o sinal docompromisso pessoal que o cristão assumiu com Deus, no Sacramento, de começar uma existência nova (e por isso não deveriam reduzir-se somente a algumas fórmulas a recitar, mas consistir em obras de culto, de caridade, de misericórdia e de reparação); incluem a ideia de que o pecador perdoado é capaz de unir a sua própria mortificação física e espiritual, procurada ou ao menos aceite, à Paixão de Jesus que lhe alcançou o perdão; recordam que, mesmo depois da absolvição, permanece no cristão uma zona de sombra devida as feridas do pecado, à imperfeição do amor no arrependimento, ao enfranquecimento das faculdades espirituais em que continua ainda activo um foco infeccioso de pecado, que é preciso combater sempre com a mortificação e a penitência. Tal é o significado da humilde mas sincera satisfação. (189)

--  São João Paulo II, Recconciliatio et Paenitentia (seção 31),  2 de Dezembro de 1984.

 

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