29 de jun. de 2012

O sétimo artigo do Creio (Compêndio da Doutrina Católica)


Que nos ensina o sétimo artigo: donde há de vir a julgar os vivos e os mortos?
- Que o mesmo Cristo Nosso Senhor no fim do mundo virá do céu, cheio de glória e majestade para julgar todos os homens, dando a cada um o prêmio e castigo que tiver merecido.

Se cada um logo depois da morte tem de ser julgado por Jesus Cristo no juízo particular, porque havemos de ser julgados no Juízo Universal?
- Por muitas razões: (1) para glória de Deus; (2) para glória de Jesus Cristo; (3) para glória também dos santos; (4) para confusão dos maus; (5) finalmente para que o corpo, com a alma, tenha a sua sentença de glória ou de pena.

Porque será esse juízo para a glória de Deus?
- Para que saibam todos, com quanta justiça Deus governa o mundo, posto que agora se vê algumas vezes os bons em aflição e os maus em prosperidade.

Porque para glória de Jesus Cristo?
- Porque tendo ele sido injustametne condenado pelos homens, lhe é devido o aparecer uma vez como Juiz Supremo de todos na face de todo o mundo.

Porque será também esse Juízo para a glória dos santos?
- Porque muitos deles morreram difamados pelos maus; e pede a razão que em presença do mundo sejam glorificados.

E qual será a confusão dos maus?
- Grandíssima será a sua confusão, principalmente daqueles que em vida pretenderam ser estimados como bons e virtuosos, vendo manifesto a todo mundo os seus pecados, ainda os mais ocultos.

-- Compêndio da Doutrina Cristã, por São Roberto Belarmino (século XVI)

28 de jun. de 2012

Deus é um rochedo inacessível


O que costuma acontecer a quem do alto de um monte olha para o vasto mar lá embaixo, isto mesmo se dá com o meu espírito em relação à altíssima palavra do Senhor: dessa altura olho para a inexplicável profundidade de seu sentido.

A mesma vertigem que se pode sentir em alguns lugares da costa, quando se olha desde uma grande elevação a cavaleiro das ondas para o mar profundo, do alto saliente de um penhasco que, do lado do mar, parece cortado pelo meio do vértice até a base mergulhada nas profundezas, sobrevém a meu espírito suspenso à grande palavra proferida pelo Senhor: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a DeusDeus se oferece à visão daqueles que têm o coração purificado. Deus, ninguém jamais o viu, diz o grande João. Confirma esta asserção, Paulo, aquele espírito sublime: A quem homem algum vê nem pode ver. Eis aqui o penhasco, escorregadio, despenhadeiro sem fundo, talhado a pique, que não oferece em si nenhum ponto de apoio para a inteligência da criatura! O próprio Moisés sentiu-se esmagado pela palavra: Não há, diz ele, quem veja a Deus e continue a viver. Ele sentenciou que este penhasco é inacessível, porque nunca nossa mente pode lá chegar, por mais que se esforce por alcançá-lo, erguendo-se até ele.

Ora, ver a Deus é gozar a vida eterna. No entanto, que Deus não possa ser visto, as colunas da fé, João, Paulo e Moisés, o afirmam. Percebes a vertigem que arrasta logo o espírito para as profundezas do conteúdo desta questão? De fato, se Deus é a vida, quem não vê a Deus não vê a vida. Mas que não se possa ver a Deus, tanto os profetas quanto os apóstolos, levados pelo Espírito divino, o atestam. Em que angústias, portanto, se debate a esperança dos homens?

Contudo, o Senhor vem erguer e sustentar a esperança vacilante, assim como fez a Pedro, a ponto de afundar, firmando-o na água tornada resistente ao caminhar, para que ele não se afogasse.

Portanto, se a mão do Verbo se estender para nós, que vacilamos no abismo de nossas especulações, colocando-nos em outra perspectiva, perderemos o medo e, já seguros, abraçaremos o Verbo que nos conduz como que pela mão, dizendo: Bem-aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus.

-- Das Homílias de São Gregório de Nissa, bispo (século IV)

24 de jun. de 2012

Oração pela liberdade religiosa

O governo americano, liderado pelo Presidente Obama, e como vimos no discurso da Secretaria Hillary Clinton na última senta-feira, é favorável ao aborto. Com o apoio da maioria democrata no congresso, conseguiu arpovar uma lei que obriga todos os empregadores a pagarem seguro-saude para seus empregados que inclua aborto e outras técnicas reprodutivas que várias igrejas cristãos são contrárias. Portanto, de acordo com esta lei, escolas, universidades, hospitais e outras instituições católicas serão obrigadas a pagar aborto para seus funcionários. 

Obviamente os bispos posicionaram-se contrários, já avisaram que não cumprirão a tal lei por dever de consciência e estão dispostos a serem presos por seguirem a sua consciência. Na prática, várias pontos polêmicos da lei terão sua constitucionalidade avaliada pela Suprema Corte nos próximos dias, incluindo este ponto específico: se o governo pode obrigar instituições religiosas a agirem contrariamente a sua fé. 

A Confederação de Bispos Americana pediu que as pessoas rezem a oração abaixo em defesa da liberdade religiosa no país, na quinzena que começou com a festa de São Tomas Moore até o Dia da Independência (4 de Julho) - e que será exemplo para todo mundo, incluindo Brasil.

Oração pela liberdade religiosa:
Ó Deus, todo Poderoso e Pai de todas as nações, vós que nos libertastes em Jesus Cristo para vivermos na liberdade (Gl 5,1). Nós vos louvamos e bendizemos pelo dom da liberdade religiosa, que é a base dos direitos humanos, da justiça e do bem comum. Concedei aos nossos dirigentes a sabedoria para proteger e promover nossa liberdade. Que por vossa graça tenhamos força para defendê-la, tanto para nós, como para todos que vivem nessa terra abençoada. Isto vos pedimos pela intercessão de Maria Imaculada, nossa Padroeira, e em nome de vosso Filho, Jesus Cristo Nosso Senhor, na Unidade do Espírito Santo que vive e reina num só Deus, para sempre. Amém. 

22 de jun. de 2012

São Tomás More


De uma carta de São Tomás More, escrita no cárcere a sua filha Margarida

(The English Works of Sir Thomas More, London, 1557, p.1454)
(Sec. XVI)

Ponho-me inteiramente nas mãos de Deus com toda a esperança e confiança.
Embora eu tenha plena consciência, minha Margarida, de que os pecados da minha vida passada mereceram justamente que Deus me abandone, nunca deixarei de confiar na sua imensa bondade e de esperar com toda a minha alma. Até agora a sua santíssima graça deu-me forças para tudo desprezar do íntimo do coração – riquezas, rendimentos e a própria vida – antes que prestar juramento contra a voz da minha consciência. Foi Deus que, benignamente, levou o rei a privar-me até ao presente, só da liberdade. Com isto, em vez de me fazer mal, sua Majestade concedeu-me para proveito espiritual da minha alma, assim o espero, um benefício maior do que com todas aquelas honras e bens que antes me dispensava. E espero confiadamente que a mesma graça divina há-de continuar a favorecer-me, ou acalmando o ânimo do rei para que não me imponha tormento mais grave, ou dando-me a força necessária para suportar tudo, seja o que for, com paciência, fortaleza e boa vontade.
O meu sofrimento, unido aos méritos da dolorosíssima paixão do Senhor – infinitamente acima de tudo quanto eu venha a padecer – aliviará as penas que mereço no Purgatório e, graças à bondade divina, acrescentará também um pouco a minha recompensa no Céu.
Não quero desconfiar, minha Margarida, da bondade de Deus, por mais débil e fraco que eu me sinta. Mais ainda: se, no meio do terror e da consternação, eu me visse em perigo de ceder, lembrar-me-ia então de São Pedro, que, à primeira rajada de vento, começou a afundar-se, por causa da sua pouca fé, e procuraria fazer o que ele fez: gritar a Cristo: Salvai-me, Senhor. Espero que Ele estenderá a sua mão para me segurar e não me deixará afogar.
Mas se Deus permitisse que a minha semelhança com Pedro fosse mais longe, a ponto de eu me precipitar e cair totalmente, jurando e abjurando (que Deus, por sua misericórdia, afaste para bem longe de mim tal calamidade e que dessa queda me venha antes castigo do que benefício), ainda em tal caso, espero que o Senhor me dirigiria, tal como a Pedro, um olhar cheio de misericórdia e me levantaria de novo para eu voltar a defender a verdade, para descarregar a consciência e suportar corajosamente o castigo e a vergonha da minha anterior negação.
Finalmente, minha Margarida, estou inteiramente convencido de que, sem culpa minha, Deus não me abandonará. Por isso com toda a esperança e confiança me entregarei totalmente nas mãos de Deus. Se, por causa dos meus pecados, Deus permitisse a minha queda, ao menos brilharia em mim a sua justiça. Espero, porém, e espero com inteira certeza, que a sua clementíssima bondade guardará fielmente a minha alma e fará que em mim brilhe mais a sua misericórdia do que a sua justiça.
Está, pois, tranquila, minha filha, e não te preocupes comigo, seja o que for que me aconteça neste mundo. Nada pode acontecer-me que Deus não queira. E tudo o que Ele quer, por muito mau que nos pareça é, em verdade, muito bom.

20 de jun. de 2012

O sexto artigo do Creio (Compêndio da Doutrina Católica)


Que nos ensina o sexto artigo do Credo: subiu aos céus e está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso?

- Que Jesus Criso subiu aos céus à vista dos seus discípulos no quadragésimo dia depois da sua Ressurreição; e que sendo como Deus, igual ao Pai na glória, como homem foi exaltado sobre todos os anjos e Santos, constituído Senhor de todas as coisas.

Porque demorou por quarenta dias a sua subida aos céus?
- Para estabelecer com várias aparições o mistério da sua Ressurreição e para instruir sempre mais e confirmar os apóstolos nas verdades da fé.

Subiu Ele aos céus enquanto Deus ou enquanto homem?
- Subiu enquanto homem, porque enquanto Deus já está presente em todo lugar.

Porque se diz que Cristo subiu aos céus; e de sua mão santíssima, que foi assunta aos céus, isto é, levada?
- Porque Cristo, sendo Deus e homem, por virtude própria subiu aos céus, mas sua mãe, como criatura, ainda que entre todas a mais digna, subiu ao céu por virtude de Deus.

Que querem dizer aquelas palavras: está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso? Tem Deus por ventura mão direita ou esquerda?
- O Pai não tem mão direita, nem esquerda; mas assim se diz para que possamos compreender a Glória que Jesus Cristo enquanto homem recebeu sobre todas as criaturas; pois assim dizemos no mundo e entendemos que a pessoa ocupa o lugar mais honorífico. 

Porque se diz que Cristo está sentado? Por ventura esta ele realmente sentado no céu?
- Diz-se que está sentado para fazermos entender que ele está na posse pacífica da sua Glória, como soberano e absoluto Senhor de todas as coisas.

19 de jun. de 2012

São Jerônimo e o Leão



Em Vita Divi Hieronymi, livro que conta a vida de São Jerônimo, encontra-se as razões pelas quais o santo é pintado com um leão ao seu lado. A história parece ser uma lenda medieval, incluída na versão original do livro escrito pelo croata Marulic, em torno de 1500. No início do livro, Marulic diz que escrevia para organizar várias hagiografias já existentes e teria se baseado também nas cartas do santo. Pois bem, vamos à história:

Uma tarde, no monastério em Jerusálem,  São Jerônimo sentou-se com outros monges para ouvirem a lição do dia quando um gigantesco leão aproximou-se andando em três patas, com a quarta pata levantada. Imaginem o caos que se seguiu quando todos os monges correram, cada um para um lado. Mas São Jerônimo calmamente levantou-se e foi ao encontro do hóspede inesperado. Naturalmente o leão não podia falar, mas ofereceu a pata ferida ao bom padre. Jerônimo examinou-a, notou que havia alguns espinhos, e pediu ao monge menos medroso que trouxesse um balde com água para lavar a ferida do leão. Jerônimo retirou com cuidados os espinhos e aplicou uma pomada. O ferimento rapidamente sarou. O gentil cuidado amansou o leão que ia e vinha pacificamente onde estava São Jerônimo como se fosse um animal doméstico. Sobre este episódio, o santo  disse "Pensem sobre isto e vocês encontrarão varias respostas. Eu creio que não foi tanto para a cura de sua pata que Deus o enviou, pois Ele curaria a pata sem a nossa ajuda, mas enviou o leão para mostrar quanto Ele estava ansioso para prover o que necessitamos para o nosso bem."

Os irmãos sugeriram que o leão poderia ser usado para proteger o jumento que carregava a lenha para o monastério. E assim foi por muito tempo. O leão guardava o jumento enquanto este ia e vinha. Um dia, entretanto, o leão estava muito cansado e dormiu enquanto o jumento pastava. Foi quando egípcios mercadores de óleo levaram o jumento.

O leão lá pelas tantas acordou e passou a procurar o jumento. Com incrível ansiedade procurou-o dia. No final do dia voltou e ficou no portão do monastério parado, consciente de sua culpa o leão não tinha mais o seu andar orgulhoso.

Os outros monges logo concluíram que o leão tinha na verdade comido o jumento, e  recusaram-se a alimentar o leão, enviando-o de volta para comer o resto da sua matança. Mas ainda havia uma certa dúvida se o leão havia ou não matado o jumento e assim Jerônimo mandou que eles procurassem pela carcaça do jumento. Não encontraram a carcaça, nem outro sinal de violência. Os monges levaram a noticia para São Jerônimo que disse "Eu fico triste pela perda do asno, mas não façam isto com o leão. Tratem dele como antes, dêem comida e ele fará o serviço do jumento. Façam com que ele traga em seu lombo algumas das peças de lenha." E assim aconteceu.

O leão regularmente fazia a sua tarefa, mas continuava a procurar o seu velho companheiro. Um dia, do alto de uma colina, viu na estrada homens montados em camelos e em um jumento. Ele então foi ao encontro deles. Ao se aproximar, reconheceu o amigo e começou a rugir. Os mercadores assustados correram como puderam, deixando o jumento, os camelos e sua carga para atrás.

O leão conduziu os animais para o mosteiro. Quando os monges viram aquela cena inusitada, um leão liderando um jumento e camelos, logo chamaram São Jerônimo. Ele abriu os portões e disse: "Tirem a carga dos camelos e do jumento, lavem suas patas e dêem comida e esperem para ver o que Deus tinha em mente quando nos deu o leão".

Suas instruções foram seguidas, o leão começou a rugir de novo e balançar o rabo alegremente. Os irmãos, com remorso da calúnia que haviam pensado do pobre leão, disseram uns aos outros "Irmão, confie na sua ovelha mesmo se por um tempo ela parecer um ganancioso rufião e Deus fará um milagre para curar o seu caráter".

Neste meio tempo, Jerônimo sabendo o que viria disse: "Meus irmãos, preparem refrescos porque novos hóspedes estão chegando e deverão ser tratados dignamente".

Assim se preparam para receber as visitas e em breve os mercadores estavam no portão. Foram bem-vindos, mas vendo os camelos, o jumento e o leão, prostraram-se aos pés de São Jerônimo e pediram perdão pelas sua falhas. Gentilmente Jerônimo disse "dêem os refrescos a eles e deixem partir com os seu camelos e suas cargas". Os mercadores ofereceram metade do óleo que carregavam e mais alguns alimentos para os monges.

O chefe dos mercadores estão disse "Nós daremos todo óleo que vocês precisarem durante o ano e nossos filhos e netos serão instruídos a seguirem esta ordem, e ainda nada de sua propriedade será jamais tocado por qualquer de nós".

São Jerônimo aceitou a oferta e os mercadores partiram com sua benção, voltando alegres para o seu povo. São Jerônimo então disse "vejam, meus irmãos, o que Deus tinha em mente quando nos mandou o seu leão"!


18 de jun. de 2012

Sobre o culto aos santos e mártires

São Jerônimo e o Leão, cerâmica de Carlos Casalvara

Contudo, quanto a questão das velas, ao contrário do que você (Vigilâncio) em vão nos acusa, nós não as acendemos durante o dia, mas para conforto podemos alegrar a escuridão da noite, enquanto aguardamos o amanhecer, para que não sejamos cegos como você e cochilemos nas trevas. 

E se algumas pessoas, leigos simples e rudes, ou quase sempre mulheres religiosas - de quem podemos realmente dizer: Eu admito que eles tem zêlo por Deus, ainda que não seja conforme a razão (Rm 10,2) -, adotam tal prática em honra dos mártires, que mal isto causa a você? 

Já houve uma vez que os próprios Apóstolos suplicaram que o ungüento não fosse desperdiçado e acabaram sendo repreendidos pela voz do Senhor. Cristo não precisava do ungüento assim como os mártires não precisam da luz das velas. Ainda assim, aquela mulher que derramou o ungüento em honra de Cristo teve a devoção do seu coração aceita [pelo Senhor]. Todos aqueles que acendem essas velas têm sua recompensa de acordo com a sua fé, como disse o Apóstolo: "Que cada um abunde em sua própria intenção". 

Você chama estes homens de idólatras? Eu não nego que todos nós que cremos em Cristo deixamos de lado o erro da idolatria. Nós não nascemos cristãos, mas nos tornamos cristãos ao renascermos [pelo Batismo]. E porque [um dia] já adoramos ídolos se conclui agora que nós não podemos adorar a Deus, pois parece que prestamos honra a Ele e aos ídolos? Um caso é prestar [honra] aos idólos e, neste caso, o culto é detestável; outro caso é a veneração dos mártires, sendo seu culto permitido. 

Em todas as igrejas do Oriente, mesmo quando alguma delas não possui relíquias dos mártires, o Evangelho é lido e os castiçais são acesos, ainda que a aurora esteja avermelhando o céu, não para dispersar as trevas, mas para evidenciar o nosso júbilo. E, conforme o Evangelho, as virgens carregam sempre acesas as suas lâmpadas (Mt 25,1). E dos Apóstolos diz-se que tinham de cingiam seus lombos e acender suas lâmpadas (Lc 12,35). E de João Batista lemos que Ele possui a lâmpada que arde e ilumina (Jo 5,35). Assim, através da figura da luz corpórea, é representada aquela luz que lemos no Saltério: Tua Palavra é uma lâmpada para os meus pés, ó Senhor, e uma luz para os meus caminhos

Estaria o bispo de Roma equivocado quando oferece sacrifícios ao Senhor sobre os veneráveis ossos dos falecidos Pedro e Paulo, do modo como já dissemos, mas de acordo com você (Vigilâncio), sobre um punhado de poeira sem valor, julgando que seus túmulos não são dignos de ser altares de Cristo? E não seria este o único bispo de uma cidade a estar equivocado, mas os bispos de todo o mundo já que, ao contrário do sustentador de tavernas Vigilâncio, entram nas basílicas dos mortos, onde "um punhado de poeira e cinzas sem valor encontram-se envoltos em um pedaço de pano" encardido ou encardindo. 

Assim, segundo você, os templos sagrados são como os sepulcros dos fariseus, caiados por fora, enquanto que por dentro resta a imundície, estando cheios de podridão e odores fétidos. E então ele (Vigilâncio) atreve-se a vomitar suas porquices sobre esta questão e afirma: "Será que as almas dos mártires amam tanto suas cinzas que acabam permanecendo em torno delas, para que, estando sempre presentes não fiquem tristes por surgir ali alguém para rezar, pois se estivessem ausentes, não conseguiriam ouvir?" Ó, monstro, que merece ser banido para os confins da terra! 

Você (Vigilâncio) ri das relíquias dos mártires e na companhia de Eunômio, pai desta heresia, calunia as igrejas de Cristo? Você não se preocuopa em andar com tal companhia e prega contra nós as mesmas coisas que ele levanta contra a Igreja? Todos os seus seguidores se recusam a entrar nas basílicas dos Apóstolos e mártires, porém, contraditoriamente, eles adoram o falecido Eunômio, cujos livros eles consideram de maior autoridade que os Evangelhos. E eles também crêem que a luz da verdade estava nele assim como alguns outros hereges sustentavam que o Paráclito teria vindo em Montano ou que o próprio Maniqueu era o Paráclito. 

Você não pode mesmo encontrar uma ocasião de orgulho para supor que é o inventor dessa nova espécie de maldade, sendo que essa sua heresia já foi outrora levantada contra a Igreja. Ela encontrou, porém, um oponente em Tertuliano, um homem de grande sabedoria, que escreveu um famoso tratado que ele corretamente intitulou "Scorpiacum", porque assim como o escorpião dobra-se como um arco para infligir o ferimento, também o que era formalmente conhecido como "a heresia de Caim" infere veneno no corpo da Igreja. Tal acusação repousou, ou melhor, ficou sepultada por um longo tempo, mas agora ressurge graças a Dormilâncio. 

Eu fico surpreso de ver você (Vigilâncio) omitir então que não deveria haver martírios, já que Deus, que não quer o sangue de bezerros e bois, muito menos poderia querer o sangue dos homens. É exatamente esta a sua conlusão, ou melhor, se você não afirma isso [explicitamente], ao menos é esta a conclusão que [implicitamente] se chega. E se [você] mantiver a idéia de que as relíquias dos mártires devem ser pisoteadas, acabará também por concluir que o derramamento de sangue que sofreram não é digno de qualquer honra. 

-- Da Carta contra Vigilâncio, de São Jerônimo (século 

15 de jun. de 2012

O que há de mais agradável que um salmo?

Gerrit van Honthorst (1590-1656),
King David Playing the Harp (1611),
Centraal Museum, Utrecht, Holland
Davi já bem dizia: Louvai ao Senhor, porque é bom o salmo; a nosso Deus, alegre e belo louvor. E é verdade! O salmo é bênção para o povo, a glória de Deus, o louvor da multidão, o aplauso de todos, a palavra do universo, a voz da Igreja, a canora confissão da fé, a devoção cheia de valor, a alegria da liberdade, o clamor do regozijo, a exultação da alegria. O salmo abranda a ira, desfaz a preocupação, consola na tristeza. Ele é a proteção noturna, o diurno ensinamento, um escudo no temor, uma festa na santidade, a imagem da tranqüilidade, o penhor de paz e de concórdia, fazendo, à semelhança da cítara, um só cântico de muitas e diferentes vozes. Na aurora do dia, ressoa o salmo. Repercute o salmo ao cair da noite. Rivalizam no salmo a doutrina e a graça: ao mesmo tempo canta-se para deleite e aprende-se para instrução. O que é que não te ocorre ao ler os salmos?

Neles leio: Cântico para o amado e logo me inflamo de desejo da sagrada caridade. Neles encontro a graça das revelações, os testemunhos da ressurreição, os dons da promessa. Por eles aprendo a evitar o pecado, desaprendo de envergonhar-me da penitência pelas minhas faltas.

O que é o salmo senão o instrumento das virtudes com que o venerável Profeta, tangendo-o com a palheta do Espírito Santo, faz ressoar pelo mundo a doçura da música celeste? Ao mesmo tempo em que ele, coordenando por meio de liras e cordas, isto é, das coisas mortas, a distinção dos diversos sons, dirigia o cântico do divino louvor para as realidades supremas. Ensinava com isso, em primeiro lugar, que devíamos morrer ao pecado e, em seguida, discernir em nossa vida mortal as várias obras de virtude pelas quais nossa gratidão se eleva até Deus.

Davi ensinou que devemos cantar no íntimo de nós mesmos, salmodiar no íntimo, como Paulo cantava, pois dizia: Orarei com o espírito, orarei com a mente; salmodiarei com o espírito, salmodiarei com a mente. Ensinou também que devíamos ordenar nossa vida e seus atos para a visão das realidades superiores, a fim de que o gosto pela doçura não excite os instintos do corpo, com os quais não se redime nossa alma, ao contrário se torna pesada. E, no entanto, o santo Profeta lembra-se de salmodiar para a redenção de sua alma, quando diz: Salmodiarei a ti, ó Deus, na cítara, Santo de Israel; ao cantar a ti jubilarão meus lábios e minha alma que remiste.

-- Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Ambrósio, bispo (século IV)

13 de jun. de 2012

Santa Germana Cousin

Santa Germana Cousin, padroeira da crianças
abandonadas, deficientes e pastores.

Germana Cousin foi a última filha de Lourenço Cousin, pequeno proprietário agrícola de Pibrac, e de sua terceira esposa, Maria Laroche, mulher piedosa e de saúde frágil. Mestre Lourenço chegou a ser alcaide de Pibrac em 1573 e em 1574.

A data de nascimento de Germana não é precisa, mas provavelmente veio ao mundo no ano de 1579. Não chegou a conhecer a mãe, que faleceu pouco tempo depois de seu nascimento. Mais ou menos dois anos após perdeu também o pai. 

Talvez devido a avançada idade dos pais, ela nasceu com uma deformação na mão direita e uma doença chamada escráfulas, que consiste em feridas purulentas que surgem no pescoço e afeta também as juntas. A situação no país também não era melhor, pois estava dividido por uma guerra civil entre católicos e protestantes huguenotes, cada lado apoiado por uma parte da família real. O povo sofria com a fome e muitas igrejas foram atacadas, quando horríveis sacrilégios eram cometidos contra a Eucaristia, imagens, livros sagrados e sacerdotes.

Hugo, seu irmão mais velho, tornou-se o herdeiro dos bens do pai Lourenço e acolheu a pequena órfã. Era casado com Armanda Rajols, que não poupava maus tratos à pequena, talvez devido ao ressentimento por ter perdido seu único filho natural quando ainda era recém-nascido. A madrasta dava-lhe pouco alimento e não zelava por sua saúde, deixando-a aos cuidados de uma criada, Joana Aubian. Essa boa mulher tratava das feridas da criança, dividia com ela a comida e a cama.

Santa Germana passou a viver no paiol, onde aquecia-se dormindo com as ovelhas. Não era admitida dentro de casa por medo que contaminasse a família com alguma doença. Vestia-se sempre com trapos velhos, descalça mesmo no frio do inverno, era tratada com menos afeição que o cachorro da família. Pela manhã espera no lado de fora da casa seu alimento, normalmente as sobras e pão velho. Estes fatos foram testemunhados pelos vizinhos, que os narraram em documentos incluídos no processo de canonização.

Sua tarefa era pastorear as ovelhas pelas montanhas da região. Assim, ficava longe de casa pelo restante do dia. Muitos dias a madrasta lhe enviava a pastorear próximo à Floresta de Bouconne, na esperança que os lobos que se escondiam nas árvores lhe atacassem. Ao retornar para casa, devia ainda fiar lã, não importando se o frio lhe enregelava os dedos da sua mão já deformada. Por fim, a madrasta, certo dia bêbada, jogou-lhe sobre o corpo água fervente. 

O único momento de descanso permitido era ir à missa na Igreja de Santa Maria Madalena, num vilarejo próximo. Prestava atenção à cada palavra do sermão e participava das catequeses dadas após a celebração. Foi então que sua vida começou a fazer sentido, pois sentia que seus sofrimentos eram poucos quando comparados aos do Filho de Deus. Percebeu que a vida é apenas uma rápida passagem para a eternidade com Cristo, se por isso fizesse merecer. 

Embora fosse totalmente analfabeta, guardava os ensinamentos que ouvia no profundo do coração, e durante a semana, nas muitas horas que pastoreava sozinha, repetia as palavras para melhor assimilá-las, ou percorria as contas do rosário, lembrando-se dos mistérios divinos. A Eucaristia passou a ser seu alimento e Jesus a companhia preferida. Não satisfeita em apenas atender à Missa, ficava na Igreja durante todo dia, em contemplação. Na hora do Angelus ajoelhava-se onde estivesse e se punha a rezar. Santa Germana improvisou uma cruz e um pequeno altar, para que pudesse adorá-la durante o dia de trabalho.

Movida pelo Espírito Santo, decidiu-se por um singular método de pastoreio. Quando ouvia o sino da Igreja chamar os fiéis para a Missa diária, cravava seu cajado de pastora em meio ao rebanho e ordenava em alta voz que as ovelhas não se afastassem, esperando o seu retorno. Jamais perdeu uma ovelha, nem mesmo para os lobos. Sabia que melhor Pastor estava a cuidar das suas ovelhas.

As crianças da cidade começaram a ir ao seu encontro após terminarem as aulas. Nestas ocasiões não falava de si, mas do amor de Deus e dos sofrimentos de Jesus Cristo. Estas catequeses eram transmitidas aos pais, que passaram a lhe chamar de "a devota". 

Certo dia estava muito longe da cidade quando ouviu o sino chamando para Missa. De onde estava, devia atravessar um rio, cuja água era muito fria, proveniente do degelo das montanhas. Usar a única ponte lhe obrigaria caminhar grande distância, não seria possível chegar a tempo na Igreja. Foi então que, com o testemunho de dois outros pastores, Santa Germana caminhou até as margens do rio, pediu um favor especial a Deus, e as águas se abriram. Como os judeus fugindo do Egito, Santa Germana passou a pé enxuto. O milagre tornou-a famosa, o que mais atraiu a ira da sua madrasta.

Em outra ocasião, ela arriscou-se a entrar na cozinha da casa, com a idéia de distribuir o alimento para crianças pobres que estavam a passar fome. Sua madrasta a encontrou e acusou-lhe de roubo. Arrastou-a até a prefeitura da cidade e exigiu que fosse presa, a prova era o embrulho que carregava. Ao abrirem o pacote, nele encontrou-se apenas flores do campo. Por fim, seu irmão permitiu que passasse a dormir num quartinho, embaixo da escada da casa. 

Numa noite de junho de 1601, um sacerdote e dois religiosos que estavam viajando, ao cair da noite acomodaram-se nas ruínas de um antigo castelo próximo de Pibrac.  No meio à noite foram despertados pelo som de uma música, viram o céu iluminar-se e um cortejo celeste de virgens descer sobre uma casa rural das redondezas. Em seguida, o mesmo cortejo subiu para o céu acompanhado de uma jovem vestida de luz e coroada de flores silvestres.

Naquela manhã de verão, percebendo que ela não se levantara no horário costumeiro, seu irmão foi chamá-la. Ele encontrou-a morta, com o rosto iluminado e o rosário nas mãos. Ao amanhecer, entrando no povoado, o sacerdote e os religiosos relataram o maravilhoso fato aos habitantes de Pibrac, e constataram que se tratava da casa onde pouco antes fora encontrada morta uma pobre pastora chamada Germana Cousin.
     
Seu corpo foi sepultado em frente ao altar na Igreja de Santa Maria Madalena, mas com o tempo ela ficou esquecida. Numa fria manhã de dezembro de 1644, Guilherme Cassé, coveiro, e seu ajudante Gaillard Baron iniciaram os trabalhos de escavação de um túmulo para enterrar uma defunta, quando estarrecidos descobrem o corpo de uma jovem de uns vinte anos, conservado em sua mortalha um tanto escurecida. O corpo parecia ter sido colocado no túmulo há poucos dias. A jovem apresentava cicatrizes no pescoço e sua mão direita era deformada.
O corpo incorrupto está na Catedral de Pribac, França.

A notícia rapidamente se espalhou pela cidade. Dois anciãos, Pedro Pailhès e Joana Salères, reconheceram-na como sendo Germana Cousin, falecida 43 anos atrás. O corpo foi instalado num caixão perto do púlpito da igreja paroquial, e o povo, que a tinha em conta de santa, logo afluiu para contemplá-la. Outros ridicularizam os ingênuos e exigiram que o caixão fosse transferido para outro lugar. Entre estes estava Maria de Clément Gras, esposa do nobre Francisco de Beauregard.

Pouco tempo depois, esta senhora foi surpreendida por um câncer no seio e a criança que ela amamentava ficou doente. Estavam ambos às portas da morte. O esposo então se lembrou do desprezo que ela demonstrara pela pobre Germana, e cogitou se Deus não ficara ofendido e quisera puni-la. Maria de Clément Gras foi então para junto do corpo de Germana e pediu perdão por sua atitude, suplicando também a sua cura e a de seu filho, prometendo oferecer à igreja um caixão adequado para colocar seu corpo.

Na noite seguinte, ela foi despertada por uma grande claridade em seu quarto: Germana lhe aparece e prediz a cura de seu filho! Após a visão, a chaga do seu seio estava quase fechada. Ela fez vir seu filhinho: ele estava são e sugou longamente o leite que recusava há tempos. O fato é reconhecido como o primeiro milagre realizado pela intercessão da jovem após a descoberta de seus despojos.

Em 1793, durante a Revolução Francesa, os membros do "comitê de salvação pública" decidiram atacar a Igreja e sumir com o corpo da santa. O caixão foi profanado por um certo Toulza, acompanhado de três cúmplices. Eles retiraram o corpo do caixão e o enterraram na sacristia, jogando cal e água sobre ele. Depois da Revolução Francesa, a pedido da população o prefeito Jean Cabriforce, mandou procurar o local onde haviam enterrado o corpo. Uma vez mais Germana foi descoberta: seu corpo estava intacto, apesar de ter permanecido durante anos sob a ação da cal viva.

Foi o Beato Pio IX quem proclamou, no dia 7 de maio de 1854, a beatificação de Germana. E em 29 de junho de 1867, colocou-a entre as virgens santas. Sua festa é celebrada em 15 de Junho. 


12 de jun. de 2012

Conselhos úteis para quem entra num caminho de oração


Santa Teresa de Ávila, pintado por Frei João da Miséria.
Este quadro é considerado o retrato mais fiel da santa,
pois o Frei a conhecia pessoalmente.
1. Parece-me bem falar de algumas tentações que tenho visto haver ao princípio (de um caminho de oração) - algumas tenho-as eu tido - e dar alguns avisos sobre coisas que julgo necessárias. Procure-se andar ao princípio com alegria e liberdade, porque há pessoas a quem parece que se lhes vai a devoção se se descuidam um pouco. Bom é cada qual andar com temor para não se fiar pouco nem muito de si mesmo, pondo-se em ocasiões em que lhe é fácil ofender a Deus. Isto é muito necessário até já se estar muito forte na virtude. E não há muitos que o estejam tanto que, metidos em ocasiões favoráveis ao seu natural, se possam descuidar. Que sempre - enquanto vivemos, e até por humildade - é bom conhecer a nossa miserável natureza. Mas há muitas coisas em que se pode, como já disse, tomar recreação, mesmo para se voltar mais forte à oração. Em tudo é preciso discrição.

2. Ter grande confiança que, se nos esforçamos, pouco a pouco - embora não seja logo - poderemos chegar aonde muitos santos chegaram com o favor de Deus. Se os santos nunca se tivessem determinado a desejá-lo e pouco a pouco realizá-lo, nunca teriam subido a tão alto estado. Quer Sua Majestade que andem com humildade e sem nenhuma confiança em si. Espanta-me o muito que faz neste caminho o animar-se a grandes coisas; porque, embora depois a alma não tenha forças, dá um voo e chega a muito, ainda que - como avezinha que tem fracas penas - se canse e fique mais algum tempo.

Muito me aproveitei daquilo que diz Santo Agostinho: Dá-me, Senhor, o que me mandas e manda o que quiseres. Pensava muitas vezes que S. Pedro nada tinha perdido em se lançar ao mar, embora depois temesse. Estas primeiras determinações são grande coisa, ainda que, neste primeiro estado, seja preciso ir-se detendo e ater-se à discrição e parecer do mestre; mas há de olhar-se que não ensine a andar como sapos nem se contente com que a alma se satisfaça a só caçar lagartixas.

A humildade, no entanto, deve estar sempre à frente para se compreender que não há de vir das nossas forças.

4. Mas é mister entendermos como há-de ser esta humildade, porque penso que o demônio faz muito dano, a fim de que não vão muito adiante almas que tem oração, fazendo-lhes compreender mal a humildade, e que lhes pareça soberba o ter grandes desejos e querer imitar os santos e desejar o martírio. Logo nos diz ou dá a entender que as coisas dos santos são para admirar, mas não para as fazermos nós que somos pecadores.

Isto também o digo eu; mas temos de olhar ao que é de espantar e ao que é de imitar. De fato, não seria bem que uma pessoa fraca e enferma se expusesse a muitos jejuns e penitências ásperas, e fosse para um deserto onde não pudesse dormir nem tivesse que comer, ou coisas semelhantes. Mas sem pensar que nos podemos esforçar com o favor de Deus a ter um grande desprezo do mundo, a não estimar honras, nem estar atento às riquezas. Temos uns corações tão apertados, que parece nos há-de faltar a terra em querendo-nos descuidar um pouco do corpo para darmos ao espírito. Depois nos parece que ajuda ao recolhimento ter muito bem consertado tudo o que é preciso, porque os cuidados inquietam a oração.

A mim, isto me pesa; termos tão pouca confiança em Deus e tanto amor próprio, que nos inquieta este cuidado. E assim é que, onde o espírito está tão pouco acostumado com isto, que umas fazer ninharias nos dá tão grande trabalho como as coisas grandes e de muito tomo. E, a nosso juízo, presumimos de espirituais!

5. Há esta maneira de caminhar, querendo conciliar corpo e alma para não perder cá na terra o descanso e gozar lá no Céu de Deus. E assim será a passo de galinha, se andarmos em justiça mas apegados ao corpo; nunca se chegará à liberdade de espírito. Maneira muito boa de proceder, me parece, para o estado de casados, que hão-de viver conforme a sua vocação; mas para outro estado, de maneira alguma desejo tal maneira de aproveitar, nem me farão crer que é boa. Tenho-a experimentado e sempre me ficaria assim, se o Senhor, por Sua bondade, não me tivesse ensinado outro atalho.

6. Ainda que, nisto de desejos, sempre os tive grandes, procurava isto que tenho dito: ter oração e viver a meu belo prazer. Creio que, se tivesse tido quem me lançasse a voar, mais eu teria me empenhado em que estes desejos fossem com obras. Mas são - por nossos pecados - tão poucos e contados os que não tenham neste caso discrição demasiada, que julgo ser isto causa bastante para os que começam, não chegarem mais depressa a uma grande perfeição. O Senhor nunca falta, nem é por Ele que há falha; nós é que somos os faltosos e miseráveis.

7. Também se podem imitar os santos procurando solidão e silêncio e outras muitas virtudes, que não nos matarão estes negros corpos que tão concertadamente se querem levar para desconcertar a alma. E o demônio ajuda muito a torna-los inaptos; quando vê um pouco de temor. Mais não quer para nos dar a entender que tudo nos há-de matar e tirar a saúde; até o ter lágrimas faz-nos temer de cegar... Passei por isto e por isso o sei, e não sei que melhor vista nem saúde podemos desejar que perdê-la por tal causa.

Como sou tão enferma, até que me determinei a não fazer caso do corpo nem da saúde, sempre estive atada, sem valer para nada; e ainda agora faço bem pouco. Mas quis Deus que eu entendesse este ardil do demônio; e quando ele me ameaçava perder a saúde, dizia: Pouco vai em que eu morra. Quando era o descanso: Não tenho necessidade de descansar, mas sim de cruz. E assim outras coisas. Vi claramente que, em muitas delas, embora eu de fato fosse muito enferma, era tentação do demônio ou frouxidão minha. Desde que não ando com tantos cuidados e não sou tão amimada, tenho muito mais saúde.

Assim vai muito de, nos princípios - ao começar a ter oração - não apequenar os pensamentos. Creiam o que digo, porque sei isto por experiência. E, para que escarmentem em mim, poderá também aproveitar o dizer estas minhas faltas.

8. Outra tentação que há logo muito de ordinário, é desejar que todos sejam muito espirituais, pois começam a saborear o sossego e o lucro que ele traz. Desejar isto não é mal; o procurá-lo é que poderá não ser adequado se não há muita discrição para proceder de modo a não parecer que querem ensinar; porque neste caso, quem quiser fazer algum bem, precisa ter virtudes muito fortes para não causar tentação aos outros.

Aconteceu isto comigo - e por isso o compreendo - quando procurava, como já tenho dito, que outras tivessem oração. Como, por um lado, me viam enaltecer o grande bem que era ter oração e por outro lado me viam com grande pobreza de virtudes, trazia-as eu tentadas e desatinadas, como depois me disseram. E tinham sobrada razão, porque não percebiam como se podia harmonizar uma coisa com a outra. E fui eu causa de não terem por mal o que era mal, por verem que o fazia algumas vezes, parecendo-lhes haver algum bem em mim.

9. E isto faz o demônio: parece ajudar-se das boas virtudes que temos para autorizar - no que pode - o mal que pretende. E assim, em muitos anos, só três aproveitaram do que lhes dizia; mas depois, quando o Senhor me havia já dado mais forças na virtude, em dois ou três anos aproveitaram muitas, como depois direi.

E, além disto, há outro grande inconveniente que é prejudicar a alma; pois o que mais havemos de procurar ao princípio é de cuidar só dela, fazendo de conta que não há na terra senão Deus e ela; e isto é o que muito lhe convem.

-- Do Livro da Vida, capítulo 13, de Santa Teresa de Ávila (século XVI)


11 de jun. de 2012

Jesus veio curar as chagas do pecado


O homem dotado de razão que se prepara para a libertação que lhe trará a vinda de Jesus deve conhecer o que é segundo a sua natureza espiritual. Deus não veio somente uma vez visitar suas criaturas. Desde a origem, a Lei da Aliança encaminhou muitos para o Criador e ensinou-lhes como adorar a Deus convenientemente. 

Mas a extensão do mal, o peso do corpo, as paixões perversas tornaram impotente a Lei da Aliança e deficientes os sentidos interiores. Impossível recobrar o estado da criação primeira. Por isso é que Deus, em sua bondade, proporcionou-lhes aprender, pela Lei escrita, como adorar o Pai. 

O Criador constatou que a chaga se envenenava e que era necessário recorrer a um médico; Jesus, já criador dos homens, vem ainda curá-los. Ele se entregou por todos nós; nossos pecados causaram a sua humilhação; suas chagas, nossa cura. 

Peço-vos, caros amigos no Senhor, considerai este escrito como um mandamento do Senhor. Compete-nos agora trabalharmos em nossa libertação, graças à sua vinda; compreendei bem o que sois, para vos dispordes a vos oferecerdes como vítimas agradáveis a Deus. Preparai- vos, porque ainda temos intercessores para suplicar a Deus que ponha em nosso coração aquele fogo na terra espalhado por Jesus.

-- Dos Escritos de Santo Antão, monge (século IV)

9 de jun. de 2012

Não quero agradar aos homens, mas a Deus


De Inácio, dito Teóforo, à Igreja que alcançou a misericórdia, na magnificência do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único; à dileta Igreja, iluminada pela vontade daquele que tudo quer, segundo a caridade de Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja que preside na região dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de receber felicitações, digna de louvor, digna de ver cumpridos seus votos; à Igreja que preside à universal assembléia da caridade, possuidora da lei de Cristo, assinalada com o nome do Pai. A ela saúdo em nome de Jesus Cristo, Filho do Pai. A todos os que, de corpo e alma, estão unidos pelos preceitos dele, inexaurivelmente repletos pela graça de Deus e limpos de todo matiz estranho, desejo abundante e incontaminada salvação em Jesus Cristo, nosso Deus.

Em minhas preces junto do Senhor, pedia a graça de contemplar vossos rostos dignos de Deus. Agora, acorrentado em Cristo Jesus continuarei pedindo a mesma graça, e espero ir saudar-vos e, se for a vontade de Deus, fazer-me digno de chegar ao fim. Já é, aliás, princípio estabelecido: se conseguir a graça, receberei, seguramente, o meu quinhão. Tenho medo de que vossa caridade me venha a prejudicá-lo. Para vós é fácil fazer o que quereis; para mim é difícil alcançar a Deus, se me não poupardes.

Não quero que agradeis aos homens, mas a Deus, como já o fazeis. Quanto a mim, jamais encontrarei outro tempo mais oportuno de entrar de posse de Deus; quanto a vós, seria o silêncio vossa ação mais meritória. Porque se calardes meu nome, tornar-me-ei palavra de Deus. Se, ao contrário, amardes minha vida carnal, de novo serei apenas som. Não me concedais mais do que ser imolado a Deus, enquanto o altar está preparado. Então, em coro na caridade, cantareis ao Pai em Cristo Jesus, ao Deus que se dignou encontrar o bispo da Síria, chamando-o do nascente ao poente. É bom passar do mundo para Deus, para nele nascer.

-- Início da Carta aos Romanos, de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir (século I)

7 de jun. de 2012

O quinto artigo do Creio (Compêndio da Doutrina Católica)


Que coisa nos ensina o quinto artigo: desceu à mansão dos mortos e essuscitou no terceiro dia?
- Que havendo Jesus Cristo expirado, passou logo a sua Alma ao Limbo dos Santos Padres, para libertá-los, e que ressuscitou ao terceiro dia.

E que faziam no Limbo aquelas almas?
- Estavam ali entretidas, como em repouso, com a esperança da vinda do verdadeiro Messias, Jesus Cristo.

Que esperavam do Messias aquelas almas?
- Serem libertadas, como foram, e introduzidas por Ele no Céu.

E porque não tinham já lá entrado?
- Porque pelo pecado de Adão estava fechado o Céu, e era muito justo que Jesus Cristo, que com sua morte lhes abriu as portas do Céu, fosse o primeiro a entrar lá.

E porque esperar até o terceiro dia para ressuscitar?
- Para mostrar com mais evidência que fora verdadeiramente morto.

A Ressurreição de Jesus Cristo foi como a ressurreição de outros homens?
- Não, porque Jesus Cristo ressurgiu por sua própria virtude, e os outros pelas virtudes de Jesus.

-- Compêndio da Doutrina Cristã, por São Roberto Belarmino (século XVI)

6 de jun. de 2012

Homília de Corpus Christi


Procissão de Corpus Christi, por Carl Emil Doepler
1. A instituição da Eucaristia, sacrifício de Melquisedec e a multiplicação dos pães:  é este o sugestivo tríptico que nos é apresentado pela liturgia da Palavra na solenidade de Corpus Domini.

No centro, a instituição da Eucaristia. Na primeira Carta aos Coríntios, que há pouco escutámos, São Paulo evocou com palavras específicas este evento, acrescentando:  Sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha (1 Cor11, 26). "Sempre", portanto também nesta tarde, no coração do Congresso Eucarístico Internacional, nós, ao celebrarmos a Eucaristia, anunciamos a morte redentora de Cristo e reavivamos no nosso coração a esperança do encontro definitivo com Ele.

Conscientes disto, após a consagração, como que respondendo ao convite do Apóstolo, proclamamos: Anunciamos a vossa morte, Senhor, proclamamos a vossa ressurreição, enquanto aguardamos a vossa vinda.

2. O olhar alarga-se aos outros elementos do tríptico bíblico, posto hoje diante da nossa meditação:  o sacrifício de Melquisedec e a multiplicação dos pães.

A primeira narração, brevíssima mas de grande relevo, é tirada do Livro do Génesis e foi proclamada na primeira Leitura. Ela fala-nos de Melquisedec, "rei de Salém" e "sacerdote do Deus altíssimo", o qual abençoou Abrão e "ofereceu pão e vinho" (Gn 14, 18). A esta passagem faz referência o Salmo 109, que atribui ao Rei-Messias um singular carácter sacerdotal por direta investidura de Deus:  "Tu és sacerdote para sempre / segundo a ordem de Melquisedec" (v. 4).

Na vigília da sua morte na cruz, Cristo instituiu no Cenáculo a Eucaristia. Também Ele ofereceu pão e vinho, que "nas suas mãos santas e veneráveis" (Cânone Romano) se tornaram o seu Corpo e o seu Sangue, oferecidos em sacrifício. Deste modo, Ele cumpria a profecia da antiga aliança, ligada à oferenda sacrifical de Melquisedec. Precisamente por isso recorda a Carta aos Hebreus "Ele... tornou-Se para todos os que Lhe obedecem fonte de salvação eterna, tendo sido proclamado por Deus Sumo Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedec" (5, 7-10).

No Cenáculo é antecipado o sacrifício do Gólgota:  a morte na cruz do Verbo Encarnado, Cordeiro imolado por nós, Cordeiro que tira os pecados do mundo. Na dor de Cristo é remida a dor de todo o homem; no seu sofrimento é o sofrimento humano que adquire um valor novo; na sua morte é vencida para sempre a nossa morte.

3. Fixemos agora o olhar na narração evangélica da multiplicação dos pães que completa o tríptico eucarístico, hoje proposto à nossa atenção. No contexto litúrgico do Corpus Domini, esta perícope do evangelista Lucas ajuda-nos a compreender melhor o dom e o mistério da Eucaristia.

Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os e deu-os aos Apóstolos, para que os distribuíssem ao povo (cf. Lc 9, 16). Todos observa São Lucas comeram e ficaram saciados e ainda se encheram dozes cestos de fragmentos que sobraram (cf.ibid., v. 17).

Trata-se dum prodígio surpreendente, que constitui como que o início de um longo processo histórico:  o constante multiplicar-se na Igreja do Pão da vida nova para os homens de toda a raça e cultura. Este ministério sacramental foi confiado aos Apóstolos e aos seus sucessores. E eles, fiéis à recomendação do divino Mestre, não cessam de partir e de distribuir o Pão eucarístico de geração em geração.

O Povo de Deus recebe-o com devota participação. Deste Pão de vida, remédio de imortalidade, nutriram-se inúmeros santos e mártires, haurindo dele a força para resistir também a duras e prolongadas tribulações. Eles acreditaram  nas  palavras  que  um  dia  Jesus pronunciou em Cafarnaum:  "Eu sou o pão  vivo,  descido  do  céu.  Se  alguém comer deste pão, viverá eternamente" (Jo 6, 51).

Cristo quis unir a sua presença salvífica no mundo e na história ao sacramento da Eucaristia.

4. "Eu sou o pão vivo, descido do céu!".

Depois de termos contemplado o extraordinário "tríptico" eucarístico, constituído pelas Leituras hodiernas, fixemos agora os olhos do espírito directamente no mistério. Jesus define-Se "o Pão da vida", e acrescenta:  "O pão que hei-de dar é a minha carne pela vida do mundo" (Jo 6, 51).

Mistério da nossa salvação! Cristo único Senhor ontem, hoje e sempre quis unir a sua presença salvífica no mundo e na história ao sacramento da Eucaristia. Quis fazer-Se pão partido, para que todo o homem pudesse nutrir-se da sua própria vida, mediante a participação no Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue.

Assim como os discípulos, que escutaram admirados o seu discurso em Cafarnaum, também nós percebemos que esta linguagem não é fácil de ser entendida (cf. Jo 6, 60). Poderíamos às vezes ser tentados a dar-lhe uma interpretação relativa. Mas isto levar-nos-ia para longe de Cristo, como aconteceu para aqueles discípulos que "a partir de então já não andavam com Ele" (Jo 6, 66).

Nós queremos ficar com Cristo e, por isso, dizemos-lhe com Pedro:  "Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna" (Jo 6, 68). Com a mesma convicção de Pedro, ajoelhamo-nos hoje diante do Sacramento do altar e renovamos a nossa profissão de fé na presença real de Cristo.

Este é o significado da celebração, que o Congresso Eucarístico Internacional, no ano do Grande Jubileu, evidencia com força particular. É este também o sentido da solene procissão que, como todos os anos, dentro de pouco se deslocará desta praça até à Basílica de Santa Maria Maior.

Com humilde ufania acompanharemos o Sacramento eucarístico ao longo das ruas da cidade, ao lado dos edifícios onde o povo vive, se alegra, sofre; no meio dos negócios e escritórios nos quais se desenvolve a actividade quotidiana. Levá-lo-emos ao contacto com a nossa vida insidiada por mil perigos, oprimida por preocupações e sofrimentos, submetida ao lento mas inexorável desgaste do tempo.

Levá-lo-emos, fazendo chegar-lhe a homenagem dos nossos cânticos e súplicas:  "Bone Pastor, panis vere... Bom Pastor, verdadeiro pão Dir-Lhe-emos com confiança ó Jesus, tende piedade de nós / nutri-nos e defendei-nos / levai-nos aos bens eternos.
Vós que tudo sabeis e podeis / que nos nutris sobre a terra / conduzi os vossos irmãos / à mesa do céu / na alegria dos vossos santos".


Amém!

-- Homília na Solenidade de Corpus Christi, Papa João Paulo II, em 22 de Junho de 2000.

2 de jun. de 2012

São Carlos Lwanga e companheiros


São Carlos Lwanga morava na região do atual país de Uganda, que era governado pelo Rei Mwanga II. Devido às suas qualidades, foi nomeado chefe dos pajens do palácio real quando ainda era bastante jovem. Sua presença e liderança logo foram reconhecidas pelos demais membros da corte. Seu superior no palácio, Joseph Mukasa, lhe confiou várias tarefas, inclusive a de coordenar a construção de um lago artificial, pedido explícito do Rei. 

Este lago era uma obsessão do Rei, que já obrigara todos os servidores reais a trabalharem na sua construção, basicamente escavando a terra e carregando sacos de areia. Um dos servidores do palácio chamava-se Senkoole, era o Guardador da Chama Sagrada e Chefe dos Executores. Por isso, considerava-se superior a Carlos Lwanga e recusou-se a trabalhar sob suas ordens. Após tentar amigavelmente convencê-lo a colaborar, Carlso Lwanga levou o assunto ao conselho real, que decidiu por punir Senkoole não apenas com o trabalho mas também teve que alimentar os funcionários mais humildes. Na ocasião, Senkoole prometeu vingança.

Outro aspecto importante é que Carlos Lwanga foi preparado pela família para tornar-se um sacerdote do Deus Kabaka. De acordo com a cultura do povo, apenas homens virgens poderiam ser sacerdotes. Seu avó Semaganda não foi escolhido sacerdote exatamente porque não soube manter a castidade. Qualquer coisa contrária à virtude deixava Lwanga muito furioso e infeliz. Seus amigos logo tornaram-se bastante cuidadosos quanto ao que falavam com ele, para não aborrecê-lo.

Por esta época chegaram à cidade alguns missionários. Ao conhecê-los, soube que também guardavam a castidade, mas não consideravam um fardo. Impressionado, procurou Robert Mukasa, líder da comunidade católica e também funcionário no Palácio Real. Mukasa foi quem lhe ensinou os preceitos da fé e o convenceu a abandonar os deuses e ritos tribais. Em 1885, o rei ordenou matar missionários anglicanos, incluindo o Bispo James Hannington. Mukasa tentou convencer o rei de seu erro e também foi morto por decapitação. 

Neste mesmo dia, Carlos Lwanga foi batizado e assumiu a liderança dos cristãos, católicos e anglicanos, pois antes de ser batizado já havia dado exemplos de fé. Na Quaresma de 1884 acidentou-se com um arma. Sabendo que os curandeiros africanos lhe tratariam com um misto de remédios tradicionais e  invocações aos seus deuses e, também, que os missionários católicos encontravam-se ausentes, procurou o Reverendo Anglicano Ashe. Enquanto tratava a ferida, o Reverendo resolveu testá-lo. Travou-se então um pequeno diálogo:

Ashe: É verdade que vocês católicos jejuam?
Lwanga: Sim, é verdade.
Ashe, em tom debochado: Jejuar é coisa dos tempos passados. como vocês Baganda (NT: tribo de Lwanga) dizem, dos tempos do rei Kudiidi. Quer dizer que hoje você ainda não se alimentou?
Lwanga: Caro reverendo, eu lhe procurei por causa da ferida, não para discutir assuntos de religião. Mas já que o senhor começou, deixe-lhe fazer algumas perguntas.
Ashe: Claro, pergunte.
Lwanga: Você e eu, o que temos em comum?
Ashe: Somos cristãos.
Lwanga: O que é um cristão?
Ashe: É um seguidor de Cristo.
Lwanga: O que Cristo fez no deserto?
Ashe: Ele jejuou por 40 dias e 40 noites.
Lwanga: Se somos cristãos, somos seguidores de Cristo. Ele, antes de começar a sua missão jejuou por 40 dias  e 40 noites. Pensas que nós, católicos, fazemos errado ao imitar Cristo? Que pensas disto?

Ashe calou-se. Depois de algum tempo, mudou de assunto e apenas tratou a ferida. Após, avisou aos demais missionários que cuidassem para não serem desmoralizados em público por Lwanga.

Dias após o assassinato de Mukasa e o seu batizado, o Rei Mwanga chamou-lhe e, em tom fraternal, lhe disse: "Meu amigo, parece que nos últimos dias tens me evitado e estas se aproximando de mim com meu medo. Pensas que desejo matá-lo como tive que fazer com Mukasa? Eu não lhe matei não porque rezava para outro deus, mas porque me insultou opondo-se à ordem de matar os ingleses e ainda lhes informou disso, permitindo que tentassem fugir. Sei que não fazes nada disso; portanto não há o que temer. Eu não proibo ninguém de praticar a religião. Apenas reze aqui no Palácio, não procure os homens brancos. Além disso, por que ir lá? Não ganhas presentes, não ganhas nada indo lá. Mas se insistires em visitá-los, deves entender que estarás me traindo, do mesmo modo que Mukasa. Então serei obrigado a expulsar os estrangeiros e você junto com eles. Os ingleses irão te tratar como escravo, terás uma vida dura e te arrependerás de desobedecer minhas ordens.

Lwanga respondeu-lhe: ""Caro rei, acusas os homens brancos de desejarem tomar-lhe o reino e, a nós, de ajudá-los nesta tarefa. Saibas que a religião que ensinam diz para sermos leais ao nosso rei. Até hoje tens me confiado várias tarefas. Declaro, então, que ainda estou pronto a morrer ao seu serviço."

O rei também organizava orgias homossexuais e convidava os servidores do palácio a participarem, especialmente os jovens pajens que Lwanga comandava e catequisava. Lwanga, além de não comparecer, protegia os demais para que se safassem dos desejos do rei. E apesar das proibições e ameaças, sempre buscava uma maneira de participar das celebrações e catequeses organizadas pelos missionários católicos.

Certo dia o rei, furioso, ordenou que todos os pajens fossem reunidos e trazidos a sua presença. Lwanga pessoalmente certificou-se que todos abandonassem as suas tarefas imediatamente. Uma vez os pajens reunidos, Lwanga fez-se anunciar ao rei e entrou no salão real à frente do grupo. No salão havia muitos membros do exército e carrascos que vieram presenciar a cena. Como de hábito prostaram-se. 

O Rei perguntou em alta voz: "Todos os pajens estão aqui reunidos?". Lwanga confirmou. O rei então disse: "Todos os que seguem a religião dos brancos devem se postar atrás do grupo. Os que professam a minha religião podem permanecer próximos a mim. E se algum cristão tentar se esconder, saiba que perderá a cabeça imediatamente.". Carlos Lwanga levantou-se e falou: "Todos os homens de boa consciência não podem renegar seu Deus. Sempre nos dizes para seguir suas ordens e nunca nos omitimos, mesmo quando enfrentando os inimigos. Hoje, novamente, iremos seguir o seu comando." Então, pegando pela mão um dos pajens chamado Kizito, posicionou-se calmamente ao fundo, no que foi seguido pelos demais. Todos se alegram pois assim confessavam sua fé. Nisto o rei ordenou que os amarrassem e matassem.

Muitos foram logo levados e enforcados em árvores, outros, à prisão. Certo dia, Lwanga disse ao chefe da guarda: "Bem sabemos que vais nos matar, porque temos que esperar tanto?" No dia marcado, foram levados para fora da prisão, amarrados uns aos outros. Seguiu-se como uma procissão, com os soldados e carrascos brandindo suas armas, tocando tambores e cantando. 

Apareceu então Senkoole, o Guardador da Chama Sagrada, que havia prometido vingança, e apontando para Carlos Lwanga disse: "Você eu quero para meu proveito pessoal, vou sacrificá-lo aos deuses, serás uma oferenda de primeira." Sabendo que Senkoole, por motivos religiosos, não podia permanecer no mesmo local onde outros seriam mortos,  ao ser separado dos demais, os exortou: "Meus amigos, nos encontraremos logo no Paraiso, eu ficarei um pouco mais, vocês chegarão primeiro. Mantenham a coragem e perseverem até o final." Um a um dos cristãos era queimado com uma tocha, acessa diretamente na Chama Sagrada, enquanto ouviam a sentença: "A tua desobediência é responsável por tua morte e não o deus Kabaka".

Senkoole levou Carlos Lwanga para um lugar mais próximo de onde estavam os demais cristãos, para que estes pudessem assistir melhor. A pira foi construída embaixo de uma árvore, como se fosse uma cerca. Lwanga, amarrado, seria descido para próximo do fogo. Pediu, então, que o desamarrassem para que pudesse arranjar melhor a pira. Assim, o mártir pode preparar a sua cama de morte.

Novamente amarrado, desceram-no até perto do fogo. Senkoole controlava as chamas para que não fossem muito altas e, assim, queimassem Lwanga mais lentamente. Os pés eram queimados, mas o restante do corpo permanecia bem. Senkoole lhe falou: "Estou queimando o mais lentamente possível, para que teu Deus tenha tempo de vir salvá-lo". Lwanga respondeu: "Pobre homem bobo! Não entendes o que estás a dizer. Estás me queimando, mas é como se estivésseis colocando água sobre minha cabeça. Eu estou  morrendo por amor a Deus, mas fique atento pois se não te arrependeres, é tu que queimarás pela eternidade." Após, Lwanga ficou orando em silêncio. Quando finalmente percebeu que se último suspiro estava próximo, gritou: "Meu Deus!". Morreu na manhã do Dia da Ascenção do Senhor, festa na qual esperava ansiosamente comparecer e já estava a preparar adequadamente.

No total, doze católicos e nove anglicanos foram queimados. Um deles, Mgaba Tuzinde, estava na multdão assistindo ao martírio. Reconhecido, foi jogado ao fogo na mesma hora. O martírio se deu em 3 de Junho de 1886, em Uganda. Um ano após sua morte, o número de catecumenos já havia se multiplicado por quatro. 

O grupo foi beatifciado em 1920 pelo Papa Bento XV e canonizado em 16 de Outubro de 1964, pelo Papa Paulo VI. Os anglicanos, obviamente, não poderiam ser canonizados, mas seus nomes foram honrados em virtude do seu sacrificio. Como de hábito, São Carlos Lwanga e companheiros são lembrados no dia do seu martírio, 3 de Junho. 

1 de jun. de 2012

Jó prefigurava Cristo


Jó ouvindo conselhos dos "amigos"

Tanto quanto se pode entender, irmãos caríssimos, Jó prenunciava a figura de Cristo, o que é provado por uma comparação: Jó é chamado de justo por Deus. Ora, Cristo é a justiça de cuja fonte bebem todos os bem-aventurados. Dele se disse: Levantar-se-á para vós o sol da justiça. Jó é dito veraz. O Senhor, que declara no evangelho: Eu sou o caminho e a verdade, é a própria verdade.

Jó foi rico. E quem mais rico do que o Senhor? Dele são todos os servos ricos, dele o mundo inteiro e toda a natureza, no testemunho do Santo Davi: Do Senhor é a terra e sua plenitude, o orbe da terra e todos quantos nele habitam. O diabo tentou Jó por três vezes. De modo semelhante, narra o Evangelista, por três vezes o mesmo diabo esforçou-se por tentar o Senhor. Jó perdeu os bens que possuía. O Senhor, por nosso amor, abandonou os bens celestes e fez-se pobre para enriquecer-nos. O diabo, furioso, matou os filhos de Jó. E aos profetas, filhos de Deus, o louco povo fariseu assassinou. Jó manchou-se pelas úlceras. O Senhor, assumindo a carne de todo o gênero humano, apareceu manchado com as sujeiras dos pecadores.

Jó foi instigado pela esposa a pecar. A sinagoga quis obrigar o Senhor a seguir a depravação dos anciãos. Apresentam-se os amigos de Jó a insultá-lo. E ao Senhor insultaram os sacerdotes que deviam cultuá-lo. Jó senta-se no monturo coberto de vermes. Também o Senhor no verdadeiro monturo, isto é, na lama desse mundo se demorou rodeado de homens estuantes de crimes e paixões, os verdadeiros vermes. Jó recuperou tanto a saúde quanto a riqueza. E o Senhor, ressuscitando, concedeu não só a saúde, mas a imortalidade aos que nele crêem e recuperou o domínio sobre toda a natureza, segundo suas próprias palavras: Tudo me foi dado por meu Pai. Jó teve filhos em substituição aos primeiros. O Senhor também gerou, depois dos filhos dos profetas, os santos apóstolos. Jó, feliz, descansou em paz. O Senhor, porém, permanece o bendito eternamente, antes dos séculos, nos séculos e por todos os séculos dos séculos.

-- Dos Tratados de São Zeno de Verona, bispo (século IV)

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