29 de dez. de 2012

Festa da Sagrada Família


Neste domingo celebramos a Festa da Sagrada Família, instituída pelo Papa Leão XIII com a idéia de colocar em relevo a família formada por José, Maria e Jesus como um exemplo para todas outras famílias cristãs. 

O relato evangélico é o único que temos de Cristo entre o nascimento e o início da sua vida pública aos 30 anos. Aos doze anos, os meninos judeus comemoram o Bar Mitzva, a entrada oficial na vida adulta. Daí em diante, passam a ser responsáveis por seguir os ensinamentos da religião por sua vontade, incluindo uma peregrinação anual a Jerusalém. 

Mas mesmo já estando preparado para anunciar o reino de Deus, como fica evidente pela reação daqueles que lhe ouviam no Templo, pois estavam maravilhados com sua sabedoria e inteligência, Jesus escolhe obedecer aos seus pais, José e Maria, e retornar com eles para casa. Um belo exemplo para o nosso tempo, em que os filhos fazem questão de se "libertar" para longe da vigilância saudável dos pais, no mais das vezes com a intenção de cometer pecados livremente. Aqui nos EUA, ter uma experiência universitária "completa" é a desculpa preferida dos jovens, mas os dormitórios, com muitas festas, drogas e sexo, não são ambientes a ser habitados por cristãos. 

Considerando a primeira leitura, fica claro que Jesus estava obedecendo aos seus dois pais: José e Deus. E se pode parecer impossível formar uma sagrada família, as duas leituras são bastante práticas ao detalhar um pouco o quarto mandamento: filhos, obecedei seus pais; maridos, não sejam grosseiros com suas esposas; esposas sejam solícitas aos maridos; e ambos não intimidem seus filhos, mas deem os espaço devido para crescerem como Jesus, em sabedoria ao longo dos anos. 

28 de dez. de 2012

Salmo 56: A prece matutina no sofrimento

Queridos irmãos e irmãs, 

Jacó luta com o Anjo, Rembrandt
É uma noite tenebrosa, em que se sente a presença de feras vorazes nos arredores. O orante está à espera do despontar da aurora, para que a luz vença a obscuridade e os temores. Este é o contexto do Salmo 56, hoje proposto à nossa reflexão:  um cântico noturno que prepara o orante para a luz da aurora, esperada com ansiedade, para poder louvar ao Senhor na alegria (cf. vv. 9-11). Com efeito, o Salmo passa da lamentação dramática dirigida a Deus, à esperança serena e ao agradecimento jubiloso, expresso com as palavras que em seguida voltarão a ressoar, num outro Salmo (cf. 107, 2-6).

Em síntese, assiste-se à passagem do medo à alegria, da noite ao dia, do pesadelo à serenidade e da súplica ao louvor. Trata-se de uma experiência frequentemente descrita nos Salmos:  "Convertestes o meu luto em júbilo, despistes-me do meu saco e cingistes-me de alegria. Por isso, o meu coração há-de cantar-vos sem cessar" (Sl 30 [29], 12-13).

Portanto, estamos a meditar sobre dois momentos do Salmo 56. O primeiro diz respeito à experiência do medo do assalto do mal, que procura atingir o justo (cf. vv. 2-7). No centro desta cena há leões em posição de ataque. Esta imagem transforma-se depressa num símbolo bélico, delineado com lanças, flechas e espadas. O orante sente-se atacado por uma espécie de esquadrão da morte. À sua volta, há um grupo de caçadores, que arma ciladas e escava fossas para capturar a presa. Mas esta atmosfera de tensão dissolve-se imediatamente. Com efeito, já no início (cf. v. 2) aparece o símbolo protector das asas divinas, que concretamente fazem pensar na arca da aliança com os querubins alados, ou seja, na presença de Deus ao lado dos fiéis no templo santo de Sião.

O orante pede instantemente que Deus mande do céu os seus mensageiros, a quem atribui os nomes emblemáticos de "Fidelidade" e de "Graça" (cf. v. 4), qualidades próprias do amor salvífico de Deus. Por isso, embora sinta arrepios pelo  rugido  terrível  das  feras  e  pela perfídia dos perseguidores, no seu íntimo  o  fiel  permanece  sereno  e  confiante, como Daniel na cova dos leões (cf. Dn 6, 17-25).

A presença do Senhor não demora a mostrar a sua eficácia, mediante a autopunição dos adversários:  eles caem na fossa que tinham cavado para o justo (cf. v. 7). Esta confiança na justiça divina, sempre viva nos Salmos, impede o desencorajamento e a rendição à prepotência do mal. Deus, que confunde as manobras dos ímpios, fazendo-os cair dos seus próprios projectos de maldade, mais cedo ou mais tarde põe-se ao lado do fiel.

Assim, chegamos ao segundo momento do Salmo, o da ação de graças (cf. vv. 8-11). Há um trecho que brilha de intensidade e beleza:  "O meu coração, Senhor, está firme, o meu coração está firme:  quero cantar-vos e louvar-vos! Despertai, minhas entranhas, despertai, harpa e cítara; quero despertar-me com a aurora" (vv. 8-9). As trevas já se dissiparam:  o alvorecer da salvação aproxima-se com o cântico do orante.

Aplicando a si esta imagem, o Salmista talvez traduza nos termos da religiosidade bíblica, rigorosamente monoteísta, o uso dos sacerdotes egípcios ou fenícios que eram encarregados de "despertar a aurora", ou seja, de fazer voltar a nascer o sol, considerado como uma divindade benéfica. Ele alude também ao costume de suspender e de velar pelos instrumentos musicais no tempo do luto e da provação (cf. Sl 137 [136], 2) e de os "despertar" ao som festivo no tempo da libertação e da alegria. Portanto, a liturgia faz nascer a esperança:  dirige-se a Deus, convidando-o a aproximar-se de novo do seu povo e a escutar a sua súplica. Nos Salmos, a aurora é com frequência o momento da concessão divina, depois de uma noite de oração.

Assim, o Salmo termina com um cântico de louvor dirigido ao Senhor, que age com as suas grandes qualidades salvíficas, que já se manifestaram com termos diferentes na primeira parte da súplica (cf. v. 4). Agora entram em cena, de modo quase personificador, a Bondade e a Fidelidade. Elas inundam os céus com a sua presença e são como a luz que brilha na obscuridade das provas e das perseguições (cf. v. 11). É por este motivo que, na tradição cristã, o Salmo 56 se transformou em cântico do despertar para a luz e a alegria pascal, que se irradia no fiel, cancelando o medo da morte e alargando o horizonte da glória celeste.

Gregório de Nissa descobre nas palavras deste Salmo uma espécie de descrição típica daquilo que se verifica em cada experiência humana, aberta ao reconhecimento da sabedoria de Deus. "Efetivamente, salvou-me exclama fazendo-me sombra com a nuvem do Espírito, e aqueles que me espezinharam foram humilhados" (Sobre os títulos dos Salmos, Roma 1994, pág. 183).

Depois, referindo-se às expressões que concluem este Salmo, onde se diz:  "O vosso amor chega até aos céus, sobre toda a terra (se estende) a vossa glória", ele conclui:  "Na medida em que a glória de Deus se estende sobre a terra, enriquecida pela fé daqueles que são salvos, os poderes celestes entoam hinos de louvor a Deus, exultando pela nossa salvação" (Ibid., pág. 184).

-- Papa João Paulo II, na audiência de 19 de Setembro de 2011

25 de dez. de 2012

Solenidade do Natal do Senhor - Homilia do Papa Bento XVI

Amados irmãos e irmãs!

A beleza deste Evangelho não cessa de tocar o nosso coração: uma beleza que é esplendor da verdade. Não cessa de nos comover o fato de Deus Se ter feito menino, para que nós pudéssemos amá-Lo, para que ousássemos amá-Lo, e, como menino, Se coloca confiadamente nas nossas mãos. Como se dissesse: Sei que o meu esplendor te assusta, que à vista da minha grandeza procuras impor-te a ti mesmo. Por isso venho a ti como menino, para que Me possas acolher e amar.

Sempre de novo me toca também a palavra do evangelista, dita quase de fugida, segundo a qual não havia lugar para eles na hospedaria. Inevitavelmente se põe a questão de saber como reagiria eu, se Maria e José batessem à minha porta. Haveria lugar para eles? E recordamos então que esta notícia, aparentemente casual, da falta de lugar na hospedaria que obriga a Sagrada Família a ir para o estábulo, foi aprofundada e referida na sua essência pelo evangelista João nestes termos: Veio para o que era Seu, e os Seus não O acolheram (Jo 1, 11). Deste modo, a grande questão moral sobre o modo como nos comportamos com os prófugos, os refugiados, os imigrantes ganha um sentido ainda mais fundamental: Temos verdadeiramente lugar para Deus, quando Ele tenta entrar em nós? Temos tempo e espaço para Ele? Porventura não é ao próprio Deus que rejeitamos? Isto começa pelo facto de não termos tempo para Deus. Quanto mais rapidamente nos podemos mover, quanto mais eficazes se tornam os meios que nos fazem poupar tempo, tanto menos tempo temos disponível. E Deus? O que diz respeito a Ele nunca parece uma questão urgente. O nosso tempo já está completamente preenchido. Mas vejamos o caso ainda mais em profundidade. Deus tem verdadeiramente um lugar no nosso pensamento? A metodologia do nosso pensamento está configurada de modo que, no fundo, Ele não deva existir. Mesmo quando parece bater à porta do nosso pensamento, temos de arranjar qualquer raciocínio para O afastar; o pensamento, para ser considerado "sério", deve ser configurado de modo que a "hipótese Deus" se torne supérflua. E também nos nossos sentimentos e vontade não há espaço para Ele. Queremo-nos a nós mesmos, queremos as coisas que se conseguem tocar, a felicidade que se pode experimentar, o sucesso dos nossos projectos pessoais e das nossas intenções. Estamos completamente "cheios" de nós mesmos, de tal modo que não resta qualquer espaço para Deus. E por isso não há espaço sequer para os outros, para as crianças, para os pobres, para os estrangeiros. A partir duma frase simples como esta sobre o lugar inexistente na hospedaria, podemos dar-nos conta da grande necessidade que há desta exortação de São Paulo: Transformai-vos pela renovação da vossa mente (Rm 12, 2). Paulo fala da renovação, da abertura do nosso intelecto; fala, em geral, do modo como vemos o mundo e a nós mesmos. A conversão, de que temos necessidade, deve chegar verdadeiramente até às profundezas da nossa relação com a realidade. Peçamos ao Senhor para que nos tornemos vigilantes quanto à sua presença, para que ouçamos como Ele bate, de modo suave mas insistente, à porta do nosso ser e da nossa vontade. Peçamos para que se crie, no nosso íntimo, um espaço para Ele e possamos, deste modo, reconhecê-Lo também naqueles sob cujas vestes vem ter connosco: nas crianças, nos doentes e abandonados, nos marginalizados e pobres deste mundo.

Na narração do Natal, há ainda outro ponto que gostava de reflectir juntamente convosco: o hino de louvor que os anjos entoam depois de anunciar o Salvador recém-nascido: Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens do seu agrado. Deus é glorioso. Deus é pura luz, esplendor da verdade e do amor. Ele é bom. É o verdadeiro bem, o bem por excelência. Os anjos que O rodeiam transmitem, primeiro, a pura e simples alegria pela percepção da glória de Deus. O seu canto é uma irradiação da alegria que os inunda. Nas suas palavras, sentimos, por assim dizer, algo dos sons melodiosos do céu. No canto, não está subjacente qualquer pergunta sobre a finalidade; há simplesmente o facto de transbordarem da felicidade que deriva da percepção do puro esplendor da verdade e do amor de Deus. Queremos deixar-nos tocar por esta alegria: existe a verdade; existe a pura bondade; existe a luz pura. Deus é bom; Ele é o poder supremo que está acima de todos os poderes. Nesta noite, deveremos simplesmente alegrar-nos por este facto, juntamente com os anjos e os pastores.

E, com a glória de Deus nas alturas, está relacionada a paz na terra entre os homens. Onde não se dá glória a Deus, onde Ele é esquecido ou até mesmo negado, também não há paz. Hoje, porém, há correntes generalizadas de pensamento que afirmam o contrário: as religiões, mormente o monoteísmo, seriam a causa da violência e das guerras no mundo; primeiro seria preciso libertar a humanidade das religiões, para se criar então a paz; o monoteísmo, a fé no único Deus, seria prepotência, causa de intolerância, porque pretenderia, fundamentado na sua própria natureza, impor-se a todos com a pretensão da verdade única. É verdade que, na história, o monoteísmo serviu de pretexto para a intolerância e a violência. É verdade que uma religião pode adoecer e chegar a contrapor-se à sua natureza mais profunda, quando o homem pensa que deve ele mesmo deitar mão à causa de Deus, fazendo assim de Deus uma sua propriedade privada. Contra estas deturpações do sagrado, devemos estar vigilantes. Se é incontestável algum mau uso da religião na história, não é verdade que o "não" a Deus restabeleceria a paz. Se a luz de Deus se apaga, apaga-se também a dignidade divina do homem. Então, este deixa de ser a imagem de Deus, que devemos honrar em todos e cada um, no fraco, no estrangeiro, no pobre. Então deixamos de ser, todos, irmãos e irmãs, filhos do único Pai que, a partir do Pai, se encontram interligados uns aos outros. Os tipos de violência arrogante que aparecem então com o homem a desprezar e a esmagar o homem, vimo-los, em toda a sua crueldade, no século passado. Só quando a luz de Deus brilha sobre o homem e no homem, só quando cada homem é querido, conhecido e amado por Deus, só então, por mais miserável que seja a sua situação, a sua dignidade é inviolável. Na Noite Santa, o próprio Deus Se fez homem, como anunciara o profeta Isaías: o menino nascido aqui é Emmanuel – Deus-conosco (cf. Is 7, 14). E verdadeiramente, no decurso de todos estes séculos, não houve apenas casos de mau uso da religião; mas, da fé no Deus que Se fez homem, nunca cessou de brotar forças de reconciliação e magnanimidade. Na escuridão do pecado e da violência, esta fé fez entrar um raio luminoso de paz e bondade que continua a brilhar.

Assim, Cristo é a nossa paz e anunciou a paz àqueles que estavam longe e àqueles que estavam perto (cf. Ef 2, 14.17). Quanto não deveremos nós suplicar-Lhe nesta hora! Sim, Senhor, anunciai a paz também hoje a nós, tanto aos que estão longe como aos que estão perto. Fazei que também hoje das espadas se forjem foices (cf. Is 2, 4), que, em vez dos armamentos para a guerra, apareçam ajudas para os enfermos. Iluminai a quantos acreditam que devem praticar violência em vosso nome, para que aprendam a compreender o absurdo da violência e a reconhecer o vosso verdadeiro rosto. Ajudai a tornarmo-nos homens do vosso agrado: homens segundo a vossa imagem e, por conseguinte, homens de paz.

Logo que os anjos se afastaram, os pastores disseram uns para os outros: Coragem! Vamos até lá, a Belém, e vejamos esta palavra que nos foi mandada (cf. Lc 2, 15). Os pastores puseram-se apressadamente a caminho para Belém – diz-nos o evangelista (cf. 2, 16). Uma curiosidade santa os impelia, desejosos de verem numa manjedoura este menino, de quem o anjo tinha dito que era o Salvador, o Messias, o Senhor. A grande alegria, de que o anjo falara, apoderara-se dos seus corações e dava-lhes asas.

Vamos até lá, a Belém: diz-nos hoje a liturgia da Igreja. Trans-eamus – lê-se na Bíblia latina – "atravessar", ir até lá, ousar o passo que vai mais além, que faz a "travessia", saindo dos nossos hábitos de pensamento e de vida e ultrapassando o mundo meramente material para chegarmos ao essencial, ao além, rumo àquele Deus que, por sua vez, viera ao lado de cá, para nós. Queremos pedir ao Senhor que nos dê a capacidade de ultrapassar os nossos limites, o nosso mundo; que nos ajude a encontrá-Lo, sobretudo no momento em que Ele mesmo, na Santa Eucaristia, Se coloca nas nossas mãos e no nosso coração.

Vamos até lá, a Belém! Ao dizermos estas palavras uns aos outros, como fizeram os pastores, não devemos pensar apenas na grande travessia até junto do Deus vivo, mas também na cidade concreta de Belém, em todos os lugares onde o Senhor viveu, trabalhou e sofreu. Rezemos nesta hora pelas pessoas que actualmente vivem e sofrem lá. Rezemos para que lá haja paz. Rezemos para que Israelitas e Palestinos possam conduzir a sua vida na paz do único Deus e na liberdade. Peçamos também pelos países vizinhos – o Líbano, a Síria, o Iraque, etc. – para que lá se consolide a paz. Que os cristãos possam conservar a sua casa naqueles países onde teve origem a nossa fé; que cristãos e muçulmanos construam, juntos, os seus países na paz de Deus.

Os pastores apressaram-se… Uma curiosidade santa e uma santa alegria os impelia. No nosso caso, talvez aconteça muito raramente que nos apressemos pelas coisas de Deus. Hoje, Deus não faz parte das realidades urgentes. As coisas de Deus – assim o pensamos e dizemos – podem esperar. E todavia Ele é a realidade mais importante, o Único que, em última análise, é verdadeiramente importante. Por que motivo não deveríamos também nós ser tomados pela curiosidade de ver mais de perto e conhecer o que Deus nos disse? Supliquemos-Lhe para que a curiosidade santa e a santa alegria dos pastores nos toquem nesta hora também a nós e assim vamos com alegria até lá, a Belém, para o Senhor que hoje vem de novo para nós. Amem.

-- HOMILIA DO SANTO PADRE BENTO XVI, Basílica Vaticana, 24 de Dezembro de 2012

23 de dez. de 2012

Quarto Domingo do Advento


Neste domingo a Igreja celebra o quarto Domingo do Advento, a quarta vela da coroa do Advento é acesa e nossa preparação para o Natal está por terminar, em especial neste ano, quando celebramos o Natal já na segunda-feira à noite.

Na primeira leitura do livro do Profeta Miquéias ouvimos a promessa do Messias Salvador que virá na simplicidade, do pequeno povoado de Belém, de onde nada de bom se deveria esperar. E como lembra o Salmo, ainda é tempode nos convertermos para receber a presença salvadora de Jesus Cristo. 

A segunda leitura, da Carta de São Paulo aos Hebreus, deixa claro como está salvação ocorrerá: não por agradarmos a Deus, como tentamos agradar as pessoas no mundo, como quem quer conquistar benefícios; mas sim fazendo a vontade de Deus.

O Evangelho está centrado na figura de Maria. Os padres da Igreja traçam um paralelo entre a arca da aliança e Maria: ambas trazem dentro de si a Palavra de Deus, numa em forma escrita, na outra, viva; ambas são protegidas pelo poder de Deus; tocar na Arca da aliança resultava em morte imediata; Maria foi especialmente protegida do pecado, sendo a mais pura entre todas as mulheres; o Rei Davi, ao ver a Arca da Aliança, exclamou: Como entrará a arca do Senhor em minha casa? (2Sm 6,9b); já Isabel disse: Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?; a Arca, antes de entrar em Jerusalem, fica três meses na casa de Obed-Edon de Get, nas montanhas próximas da cidade, onde abençoa a toda a família; Maria permanece três meses com Isabel, cuja família é abençoada com o nascimento do filho, mesmo os pais já tendo idade avançada; e, quando, enfim, a Arca entra em Jerusalém, é o Rei Davi que dança e pula alegremente em frente à procissão; como pulou de alegria João Batista ao ver Jesus Cristo, mesmo que ainda no ventre de suas mães.

E se alguma dúvida ainda resta, é interessante lembrar o que ocorreu com a Arca da Aliança original: 
Nesse documento também se encontra que o profeta, avisado por oráculo, mandou que a Tenda e a Arca o acompanhassem, quando ele foi à montanha, sobre a qual Moisés subiu para contemplar a herança de Deus. Ao chegar, Jeremias encontrou uma espécie de gruta, onde colocou a Tenda, a Arca e o altar do incenso. Em seguida, tapou a entrada.Mais tarde, alguns dos que tinham acompanhado Jeremias, foram até aí para indicar o caminho, mas não conseguiram encontrar a gruta. Quando soube, Jeremias repreendeu-os dizendo: "O lugar ficará desconhecido, até que Deus se mostre misericordioso e reúna novamente toda a comunidade do povo. Então o Senhor mostrará esses objetos. A glória do Senhor e a nuvem também vão aparecer, como apareceram no tempo de Moisés e quando Salomão pediu que Deus santificasse grandiosamente o lugar" (2Mc 2,5-8).

Pois no Livro do Apocalipse, São João fala desta nova Arca da Aliança, cuja menção não passaria despercebida de nenhum judeu: Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca do seu testamento. Houve relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e fortes ventos. Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz. (Ap 11,19;12,2). E este menino foi Jesus Cristo, cumprindo as profecias do Antigo Testamento: Ela deu à luz um Filho, um menino, aquele que deve reger todas as nações pagãs com cetro de ferro. Mas seu Filho foi arrebatado para junto de Deus e do seu trono (Ap 12,5).


20 de dez. de 2012

Devemos converter-nos à paz


Caríssimos irmãos e irmãs:

"Ó raiz de Jessé, ó Sol de justiça, ó Rei das gentes (...)"

1. A Novena do Natal, que estamos a celebrar nestes dias, estimula-nos a viver de  maneira  intensa  e  profunda  a  preparação  para  a  grande  festa,  que  já está próxima, do nascimento do Salvador. A liturgia delineia um sábio itinerário para encontrar o Senhor que há-de vir, propondo dia após dia temas de reflexão e de oração. Convida-nos à conversão e ao dócil acolhimento do mistério do Natal.

No Antigo Testamento os profetas prenunciaram a vinda do Messias e mantiveram desperta a expectativa vigilante do povo eleito. Com os mesmos sentimentos, somos convidados a viver também nós este tempo, a fim de podermos saborear a alegria das festas de Natal já próximas.

A nossa expectativa torna-se voz das esperanças de toda a humanidade e exprime-se numa série de invocações sugestivas, que encontramos na celebração eucarística antes do Evangelho e na recitação das Vésperas antes do cântico do Magnificat. São as chamadas antífonas do "O", com as quais a Igreja se dirige Àquele que está prestes a chegar com títulos altamente poéticos, que manifestam  muito  bem  a  necessidade de  paz  e  de  salvação  dos  povos,  necessidade que encontra unicamente em Deus feito homem uma satisfação plena e definitiva.


2. Como o antigo Israel, a Comunidade eclesial faz-se voz dos homens e das mulheres de todos os tempos para cantar o advento do Salvador. Reza de cada vez:  "Ó Sabedoria que sai da boca do Altíssimo", "ó Guia da casa de Israel", "ó Raiz de Jessé", "ó Chave de David", ó Astro nascente", "ó Sol de justiça", "ó Rei das nações, Emanuel, Deus-conosco".

Em cada uma destas apaixonadas invocações, carregadas de referências bíblicas, sentimos o desejo ardente que os crentes sentem de ver realizadas as suas expectativas de paz. Por isso imploram o  dom  do  nascimento  do  Salvador prometido. Mas, ao mesmo tempo, sentem com clareza que isso requer um empenho concreto em predispor-Lhe uma morada digna, não só na sua alma, mas também no ambiente que os circunda. Numa palavra, invocar a vinda d'Aquele que traz a paz ao mundo requer que nos abramos docilmente à verdade libertadora e à força renovadora do Evangelho.

3. Neste itinerário de preparação para o encontro com Cristo, que no Natal vem ao encontro da humanidade, inseriu-se o dia especial de jejum e de oração que celebramos na passada sexta-feira, a fim de pedir o dom da reconciliação e da paz. Foi um momento forte do Advento, uma ocasião para aprofundar as causas da guerra e as razões da paz. Perante as tensões e as violências que, infelizmente, atingem também nestes dias várias partes da terra, inclusive a Terra Santa, testemunha singular do mistério do Nascimento de Jesus, é necessário que nós cristãos façamos ressoar ainda mais forte a mensagem de paz que provém da gruta de Belém.

Devemos converter-nos à paz; devemos converter-nos a Cristo, nossa paz, certos de que o seu amor sereno no presépio vence qualquer obscura ameaça e projecto de violência. É preciso continuar a pedir com confiança ao Menino, que nasceu para nós da Virgem Maria, que a energia prodigiosa da sua paz afugente o ódio e a vingança que se escondem no ânimo dos homens. Devemos pedir a Deus que o mal seja derrotado pelo bem e pelo amor.

4. Como  nos  sugere  a  Liturgia  do Advento,  imploremos  ao  Senhor  o dom  de  "nos  prepararmos  com  alegria  para  o  mistério  do  seu  Natal", para que o nascimento de Jesus nos encontre "vigilantes na oração, exultantes no louvor" (Prefácio do Advento, II). Só desta maneira, o Natal será festa de alegria e encontro com o Salvador que nos dá a paz.

Não são precisamente estes os votos que desejaremos uns aos outros nas próximas festas do Natal? Para esta finalidade, que a nossa oração nesta semana seja mais intensa e coral. "Christus est pax nostra Cristo é a nossa paz". A sua paz renove todos os âmbitos da nossa vida quotidiana. Encha os corações, para que se abram à ação da sua graça transformadora; penetre nas famílias, para que diante do presépio ou reunidas à volta da árvore de Natal, consolidem a sua fiel comunhão; reine nas cidades, nas nações e nas comunidades internacionais e se difunda em todas as partes do mundo.

Como os pastores na noite de Belém, apressemos os passos rumo a Belém. Contemplaremos no silêncio da Noite santa o "Menino envolto em panos e deitado numa manjedoira", juntamente com José e Maria (Lc 2, 12.16). Ela, que recebeu o Verbo de Deus no seu seio virginal e o estreitou nos seus braços maternos, nos ajude a viver com um empenho mais intenso esta última etapa do itinerário litúrgico do Advento.

Com estes sentimentos, formulo com afecto os meus votos a todos vós aqui presentes, às vossas famílias e a todos os vossos queridos.

Bom Natal a todos!

-- Papa João Paulo II, na audiência de 19 de Dezembro de 2001

19 de dez. de 2012

Salmo 46: O Senhor é o rei do universo

Queridos irmãos e irmãs,

1. "O Senhor, o Altíssimo, é Grande Rei sobre toda a terra"!

Esta aclamação inicial é repetida em diversas tonalidades em todo o Salmo 46, que agora ouvimos. Ele configura-se como um hino ao Senhor soberano do universo e da história:  "Ele é o rei da terra inteira... Reina o Senhor sobre as nações" (vv. 8-9).

Este hino ao Senhor, rei do mundo e da humanidade, como outras composições semelhantes presentes no Saltério (cf. Sl 92; 95-98), supõe uma atmosfera celebrativa litúrgica. Por isso, estamos no coração espiritual do louvor de Israel, que sobe ao céu partindo do templo, o lugar no qual o Deus infinito e eterno se revela e encontra o seu povo.

2. Seguiremos este cântico de louvor glorioso nos seus momentos fundamentais, semelhantes a duas ondas que progridem rumo à beira-mar. Diferem na maneira de considerar a relação entre Israel e as nações. Na primeira parte do Salmo, a relação é de domínio:  Deus "submete as nações debaixo do nosso jugo, põe os povos sob os nossos pés" (v. 4); na segunda parte, ao contrário, a relação é de associação:  "Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo do Deus de Abraão" (v. 10). Por conseguinte, verifica-se um grande progresso.

Na primeira parte (vv. 2-6) diz-se:  "Povos todos, batei as palmas, aclamai ao Senhor, com vozes de alegria!" (v. 2). O centro deste aplauso festivo é a figura grandiosa do Senhor supremo, ao qual se atribuem três títulos gloriosos:  "altíssimo, grande e temível" (v. 3). Eles exaltam a transcendência divina, a primazia absoluta no ser, a omnipotência. Também Cristo ressuscitado exclamará:  "Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28, 18).

3. No âmbito da senhoria universal de Deus sobre todas as nações da terra (cf. v. 4) o orante evidencia a sua presença particular em Israel, o povo da eleição divina, "o predileto", a herança mais preciosa e querida ao Senhor (cf. v. 5). Por conseguinte, Israel sente-se objecto de um amor particular de Deus, que se manifestou com a vitória sobre as nações inimigas. Durante a batalha, a presença da arca da aliança junto das tropas de Israel garantia-lhes a ajuda de Deus; depois da vitória, a arca voltou a ser posta no monte Sião (cf. Sl 67, 19) e todos proclamavam:  "Deus se eleva entre aclamações, o Senhor entre clamores de trombeta" (Sl 46, 6).

4. O segundo momento do Salmo (cf. vv. 7-10) abre-se com outra onda de louvor e de cântico festivo:  "Cantai ao Senhor, cantai! Cantai ao nosso rei, cantai... Cantai salmos a Deus com toda a arte!" (vv. 7-8). Também agora se entoam hinos ao Senhor sentado no trono na plenitude da sua realeza (cf. v. 9). Este trono real é chamado "santo", porque dele não se pode aproximar o homem limitado e pecador. Mas trono celeste é também a arca da aliança presente na área mais sagrada do templo de Sião. Deste modo, o Deus distante e transcendente, santo e infinito, aproxima-se das suas criaturas, adaptando-se ao espaço e ao tempo (cf. 1 Rs 8, 27.30).

5. O salmo termina com uma nota surpreendente devido à sua abertura universal:  "Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo de Deus de Abraão" (v. 10). Remonta-se a Abraão, o patriarca que está na base não só de Israel mas também de outras nações. Ao povo eleito que dele descende, é confiada a missão de fazer convergir para o Senhor todas as nações e todas as culturas, porque Ele é Deus de toda a humanidade. Do oriente ao ocidente reunir-se-ão então em Sião para encontrar este rei de paz e de amor, de unidade e de fraternidade (cf. Mt 8, 11). Como esperava o profeta Isaías, os povos inimigos entre si foram convidados a lançar à terra as armas e a viver juntos sob a única soberania divina, sob um governo regido pela justiça e pela paz (Is 2, 2-5). O olhar de todos estará fixo na nova Jerusalém onde o Senhor "sobe" para se revelar na glória da sua divindade. Será "uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas... clamavam em alta voz, dizendo:  a salvação pertence ao nosso Deus que está sentado no trono e ao Cordeiro" (Ap 7, 9.10).

6. A Carta aos Efésios vê a realização desta profecia no mistério de Cristo redentor quando afirma, dirigida aos cristãos não provenientes do judaísmo: "vós éreis gentios pela carne... lembrai-vos que nesse tempo estáveis sem Cristo, privados do direito de cidade em Israel e alheios às alianças da Promessa sem esperança e sem Deus no mundo. Agora, porém, vós, que outrora estáveis longe, pelo sangue de Cristo, vos aproximastes. Ele é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava" (Ef 2, 11-14).

Por conseguinte, em Cristo, a realeza de Deus, cantada pelo nosso Salmo, realizou-se na terra para todos os povos. Uma homilia anónima do século VIII comenta do seguinte modo este mistério:  "Até à vinda do Messias, esperança das nações, os povos gentios não adoraram Deus e não conheceram quem Ele é. E enquanto o Messias não os resgatou, Deus não reinou sobre as nações por meio da sua obediência e do seu culto. Pelo contrário, agora Deus, com a sua Palavra e com o seu espírito, reina sobre eles, porque os salvou do engano e fez com que se tornassem amigos" (Palestino  anónimo,  Homilia  árabe-cristã  do  século  VIII,  Roma,  1994, pág. 100).

-- Papa João Paulo II, na audiência de 05 de Setembro de 2012

16 de dez. de 2012

Terceiro Domingo do Advento


Rejubila! Com o Natal aproximando-se, a Igreja enfatiza a alegria de estarmos esperando Deus em forma de homem, para nos conduzir ao seu reino. Este domingo é conhecido como "Gaudete", a primeira palavra da primeira leitura. A liturgia perde um pouco do caráter penitencial, tornando-se muito mais festiva. A cor litúrgica é o rosa. 

Como fala a Profecia de Sofonias, não precisamos temer o mal, por mais assustador que possa parecer. O acontecimento desta sexta, o assassinato de 27 pessoas e um suicídio é realmente impossível de compreender a luz da nossa razão. É certamente uma manifestação muito concreta e evidente do mal. A palavra de Deus vem em nosso auxílio, pois não precisamos temer, o Senhor está no meio de nós.

De fato o mundo não é perfeito, todos temos necessidades e problemas. São Paulo convida a entrarmos em oração, com fé pedirmos ao Pai e, também, agradecer as graças que recebemos. Lembrarmos que mesmo fatos básicos, como termos nossos filhos por perto, já é uma graça de Deus. 

São João Batista sugere algumas maneiras muito práticas de vivenciarmos o Advento: dar o que temos em excesso, não roubarmos, não abusarmos dos mais pobres, não mentir e procurar viver de maneira justa, pois o Senhor é aquele que virá para separar o joio do trigo.

14 de dez. de 2012

Conhecimento do mistério escondido em Cristo Jesus

* Hoje, 14 de Dezembro, é a festa litúrgica de São João da Cruz, um dos doutores da Igreja. 

Embora os santos doutores tenham explicado muitos mistérios e maravilhas, e pessoas  devotadas a esse estado de vida os conheçam, contudo, a maior parte desses mistérios  está por ser enunciada, ou melhor, resta para ser entendida.

Por isso é preciso cavar fundo em Cristo, que se assemelha a uma mina riquíssima, contendo em si os maiores tesouros; nela por mais que alguém cave em profundidade, nunca encontra fim ou termo. Ao contrário, em toda cavidade aqui e ali novos veios de novas riquezas.

Por este motivo o apóstolo Paulo falou acerca de Cristo: Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência de Deus (Cl 2, 3). A alma não pode ter acesso a estes tesouros, nem consegue alcançá-los se não houver antes atravessado e entrado na espessura dos trabalhos, sofrendo interna e externamente e sem ter primeiro recebido de Deus muitos benefícios intelectuais e sensíveis e sem prévio e contínuo exercício espiritual.

Tudo isto é, sem dúvida, insignificante; são meras disposições para as sublimes profundidades do conhecimento dos mistérios de Cristo, a mais alta sabedoria a que se pode chegar nesta vida.

Quem dera reconhecessem os homens ser totalmente impossível chegar à espessura das riquezas e da sabedoria de Deus! Importa antes entrar na espessura das labutas, suportar muitos sofrimentos, a ponto de renunciar à consolação e ao desejo dela. Com quanta razão a alma, sedenta da divina sabedoria, escolhe antes em verdade entrar na espessura da cruz.

Por isso, São Paulo exortava os efésios a não desanimarem nas tribulações, a serem fortíssimos, enraizados e fundados na caridade, para que pudessem compreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura, a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento, a fim de serem cumulados até receber toda a plenitude de Deus (Ef 3, 17-19).

Já que a porta por onde se pode entrar até esta preciosa sabedoria é a cruz, e é porta estreita, muitos são os que cobiçam as delícias que por ela se alcançam; pouquíssimos os que desejam por ela entrar.

-- Do Cântico espiritual, de São João da Cruz, presbítero (século XVI)

Maria e a Igreja

Igreja Católica Bizantina Santa Maria,
em Whiting/Indiana

O Filho de Deus é o primogênito dentre muitos irmãos; sendo Filho único por natureza, associou a si muitos pela graça, para serem um só com ele. Com efeito, a quantos o recebem, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12).

Constituído Filho do homem, a muitos constituiu filhos de Deus. Ele, o Filho único, por seu amor e poder associou muitos a si. E todos esses, embora sejam muitos por sua geração segundo a carne, são um só com ele pela regeneração divina.

Um só, portanto, é o Cristo total, cabeça e corpo: Filho único do único Deus nos céus e de uma única mãe na terra. Muitos filhos, e um só Filho. Pois assim como a cabeça e os membros são um só Filho, assim também Maria e a Igreja são uma só Mãe e muitas mães; uma só Virgem e muitas virgens.

Ambas são mães e ambas são virgens; ambas concebem virginalmente do mesmo Espírito; ambas, sem pecado, dão à luz uma descendência para Deus Pai. Maria, imune de todo pecado, deu à luz a Cabeça do corpo; a Igreja, para a remissão de todos os pecados, deu à luz o corpo da Cabeça. Ambas são mães do Cristo, mas nenhuma delas pode, sem a outra, dar à luz o Cristo total.

Por isso, nas Escrituras divinamente inspiradas, o que se atribui de modo geral à Igreja, virgem e mãe, aplica-se particularmente a Maria. E o que se atribui especialmente a Maria, virgem e mãe, pode-se com razão aplicar de modo geral à Igreja, virgem e mãe; e quando o texto se refere a uma delas, pode ser aplicado indistinta e indiferentemente a uma e à outra.

Além disso, cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa do Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. É a própria Sabedoria de Deus, o Verbo do Pai, que designa ao mesmo tempo a Igreja em sentido universal, Maria num sentido especial e cada alma fiel em particular.

Eis o que diz a Escritura: E habitarei na herança do Senhor (cf. Eclo 24,7.13). A herança do Senhor é, na sua totalidade, a Igreja, muito especialmente é Maria, e de modo particular, a alma de cada fiel. No tabernáculo do seio de Maria, o Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja, habitará até o fim do mundo; e no amor da alma fiel, habitará pelos séculos dos séculos.

-- Dos Sermões do Bem-aventurado Isaac, abade do Mosteiro de Stella (século XII)

11 de dez. de 2012

Nossa Senhora de Guadalupe - 12 de Dezembro

Seguem alguns vídeos sobre a Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira do México e da América Latina, festejada dia 12 de Dezembro:

A virgem de Guadalupe - 1976

Guadalupe (2006)

Documentário do History Channel

8 de dez. de 2012

Segundo Domingo de Advento

Neste segundo domingo do Advento ressoa o chamado de São João Batista para convertermos, pois o tempo é propício. O Senhor, cumprindo as promessas do Antigo Testamento está prestes a chegar. 

Na cidade de Jerusalem todos viram a Salvação, em Israel espalhou-se a notícia de Cristo, um profeta verdadeiro, mas nem todos deixaram-se converter. Muitos prestaram-se a pedir a sua morte na Cruz, ninguém a verdadeiramente defendê-lo. 

A Jerusalém atual é a sua Igreja reunida. Então, esta é uma questão para nós: como Deus nos encontrará, estaremos ao seu lado, teremos aceito a Salvação, estaremos cobertos com o manto da justiça de Deus? 

Como disse o Papa Bento XVI: "é no tempo presente que decidimos o nosso futuro destino. Nosso comportamento concreto, diário, nesta vida determinará nosso destino eterno. Ao final dos nossos dias terrestres, no momento de nossa morte, seremos julgados com base na aceitação ou não do Deus que nasceu na gruta em Belém". 

A mensagem de João Batista é para nós, estejamos preparados para seguir Cristo corrigindo nossas vidas enquanto é tempo. Santo Agostinho pergunta: "Por quem o homem justo chora? Chora por aqueles que choram por coisas bobas, passageiras; e chora para que suas obras sejam boas e aceitas pelo Senhor"

7 de dez. de 2012

O Cântico de Judite

O Cântico de louvor que acabamos de proclamar (cf. Jdt 16, 1-17) é atribuído a Judite, uma heroína que se tornou o orgulho de todas as mulheres de Israel, porque a ela coube exprimir o poder libertador de Deus num momento dramático da vida do seu povo. Deste seu cântico, a liturgia das Laudes faz-nos recitar apenas alguns versículos. Eles convidam a fazer festa, cantando em sintonia de vozes, tocando timbales e címbalos, para louvar o Senhor que "põe fim às guerras" (v. 2). Esta última expressão, que define o verdadeiro rosto de Deus que ama a paz, introduz-nos no contexto em que nasceu o hino. Trata-se de uma vitória alcançada pelos Israelitas de maneira totalmente surpreendente, por obra de Deus que intervém para os subtrair à perspectiva de uma derrota iminente e total.

Judite decapitando Holofernes, pintura de Caravaggio
Palácio Barberine, Roma
O Autor sagrado reconstrói este acontecimento alguns séculos mais tarde, a fim de oferecer aos irmãos e irmãs na fé, tentados pelo desencorajamento numa situação difícil, um exemplo que os possa animar. Desta forma, recorre ao que acontecera em Israel quando Nabucodonosor, irritado com a indisponibilidade deste povo perante os seus projectos de expansão e as suas pretensões idolátricas, enviara o general Holofernes com a tarefa bem definida de o dominar e aniquilar. Ninguém devia resistir a ele, que reivindicava as honras de um deus. E o seu general, compartilhando a sua presunção, desprezara a admoestação, que também ele recebera, de não atacar Israel, porque seria como ofender o próprio Deus.

Em última análise, o Autor sagrado deseja recordar precisamente este princípio, para confirmar os crentes do seu tempo na fidelidade ao Deus da Aliança:  é preciso ter confiança em Deus. O verdadeiro inimigo que Israel deve temer não são os poderosos desta terra, mas a infidelidade ao Senhor. Ela priva-o da protecção de Deus e torna-o vulnerável. Ao contrário, quando é fiel o povo pode contar com a própria força de Deus, "magnífico no seu poder e invencível" (cf. v. 13).

Este princípio é maravilhosamente ilustrado por toda a história de Judite. O cenário é o da terra de Israel já invadida pelos inimigos. Do cântico emerge a dramaticidade deste momento:  "O assírio veio das montanhas do norte com a multidão dos seus guerreiros. A sua multidão secava as torrentes, e a sua cavalaria cobria os vales" (v. 5). A arrogância efémera do inimigo é realçada com sarcasmo:  "Ele jurara incendiar o meu país, e passar ao fio de espada a minha juventude, e roubar os meus filhos, e levar as minhas filhas para o cativeiro" (v. 6).

A situação descrita pelas palavras de Judite é parecida com outras vividas por Israel, nas quais a salvação chegara quando parecia que já não havia caminhos de salvação. Não acontecera assim também a salvação do Êxodo, na passagem prodigiosa através do Mar Vermelho? Também agora o assédio por parte de um exército numeroso e poderoso tira qualquer esperança. Mas tudo isto só evidencia o poder de Deus, que se manifesta como um protector invencível do seu povo.

A obra de Deus é muito mais luminosa, porque Ele não recorre a um guerreiro ou a um exército. Como outrora, no tempo de Débora, eliminara o general cananeu Sísera por meio de Jael, uma mulher (cf. Jz 4, 17-21), agora serve-se de novo de uma mulher inerme para ajudar o povo que se encontra em dificuldade. Firme na sua fé, Judite aventura-se até ao acampamento inimigo, seduz com a sua beleza o comandante e executa-o de maneira humilhante. O Cântico põe em grande evidência este facto:  "O Senhor Todo Poderoso feriu-o, e entregou-o nas mãos de uma mulher que lhe cortou a cabeça. O seu chefe não caiu diante de jovens, nem foram heróis nem gigantes corpulentos que se lhe opuseram, mas foi Judite, filha de Merari, que o perdeu com a formosura do seu rosto" (Jdt 16, 5-6).

A figura de Judite tornar-se-á depois o arquétipo que permitirá não só à tradição hebraica, mas também à cristã, realçar a predileção de Deus por tudo o que é considerado frágil e débil, mas que precisamente por isso é escolhido para manifestar o poder divino. Ela é uma figura exemplar também para exprimir a vocação e a missão da mulher, chamada à igualdade com o homem, de acordo com as suas características específicas, a desempenhar um papel significativo no desígnio de Deus. Algumas expressões do livro de Judite serão adotadas, de modo mais ou menos integral, pela tradição cristã, que verá na heroína hebraica uma das prefigurações de Maria. Não se sente talvez um eco dos tons de Judite quando, no Magnificat, Maria canta:  "Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes" (Lc 1, 52)? Por conseguinte, compreende-se como a tradição litúrgica, familiar aos cristãos quer do Oriente quer do Ocidente, gosta de atribuir à Mãe de Jesus expressões que se referem a Judite, como as seguintes:  "Tu és a glória de Jerusalém, tu és a alegria de Israel, tu és a honra do nosso povo" (Jdt 15, 9).

Partindo da experiência da vitória, o cântico de Judite concluiu-se com um convite a elevar a Deus um cântico novo, reconhecendo-o "grande e glorioso". Ao mesmo tempo, admoestam-se todas as criaturas a permanecerem submetidas Àquele que com a sua palavra fez todas as coisas e as plasmou com o seu espírito. Quem pode resistir à voz de Deus? Judite recorda-o com grande ênfase:  perante o Criador e Senhor da história, os fundamentos dos montes serão abalados e as rochas derreter-se-ão como a cera (cf. Jdt 16, 15). São metáforas eficazes para recordar que todas as coisas são "nada", face ao poder de Deus. E contudo este cântico de vitória não quer amedrontar, mas confortar. De fato, Deus oferece o seu poder invencível em apoio de quantos lhe são fiéis:  "Aqueles que Vos temem serão verdadeiramente grandes aos vossos olhos" .

5 de dez. de 2012

Gloria in Excelsis Dei

Gloria in Excelsis Dei (Glória a Deus nas alturas) é um hino cristão dos primeiros séculos (segundo ou terceiro). O hino começa com as palavras dos anjos anunicando aos pastores o nascimento de Jesus (Lc 2,14). Outros versos foram adicionados ao longo do tempo para completar a doxologia. Já no século quarto fazia parte das orações da manhã.

A tradução latina é atribuída a Santo Hilário de Poitiers (c.300-368), que deve tê-lo aprendido no Oriente, sendo certamente anterior a tradução da Bíblia para o latim, pois São Jerônimo traduziu as palavras dos anjos de maneira um pouco diferente.

Em português:

Glória a Deus nas alturas
e paz na terra aos homens por Ele amados.

Senhor Deus, Rei dos céus, Deus Pai todo-poderoso:
nós Vos louvamos,
nós Vos bendizemos,
nós Vos adoramos,
nós Vos glorificamos,
nós Vos damos graças,
por vossa imensa glória.

Senhor Jesus Cristo, Filho Unigénito,
Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai:
Vós que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós;
Vós que tirais o pecado do mundo, acolhei a nossa súplica;
Vós que estais à direita do Pai, tende piedade de nós.

Só Vós sois o Santo;
só Vós, o Senhor;
só Vós, o Altíssimo, Jesus Cristo;
com o Espírito Santo na glória de Deus Pai.

Amém.


Andrea Boticelli cantando num especial de Natal da TV PBS, em Nova Iorque 2009.

Em latim:

Gloria in excelsis Deo
et in terra pax hominibus bonae voluntatis.

Laudamus te,
benedicimus te,
adoramus te,
glorificamus te,
gratias agimus tibi
propter magnam gloriam tuam,
Domine Deus, Rex caelestis,
Deus Pater omnipotens.

Domine Fili unigenite Jesu Christe,
Domine Deus, Agnus Dei, Filius Patris,
qui tollis peccata mundi, miserere nobis.
Qui tollis peccata mundi,
suscipe deprecationem nostram.
Qui sedes ad dexteram Patris,
miserere nobis.

Quoniam tu solus sanctus,
tu solus Dominus,
tu solus altissimus, Jesus Christe,
cum sancto Spiritu, in gloria Dei Patris.

Amen.



Por quem estamos esperando?

* Este texto foi escrito pelo Cardeal Timothy Dolan, Arcebispo de Nova Iorque, e publicado no jornal da arquidiocese. 

Cardeal Timothy Dolan
Um dos pontos altos daas reuniões de bispos é na manhã de contemplação. é bastante simples, mas nós, bispos, observamos que provavelmente é a parte mais efetiva das nossas sessões. Nos reunimos em adoração em frente ao Santíssimo Sacramento exposto no sacrário, antes da Sagrada Eucaristia. Ali nós rezamos juntos a Liturgia das Horas, ouvimos uma reflexão sobre a Palavra do Senhor feita por um de nossos irmãos e, então, ficamos sentados ou ajoelhados por uma hora em oração silenciosa até o momento de entoarmos o Benedictus. durante este tempo, 10 a 12 padres estão disponíveis para ouvir confissões.

Duas semanas atrás, enquanto centenas de bispos estavam em oração, eu silenciosamente me dirigi para a confissão. Ao passar por um dos funcionários do hotel, responsável pelo som e iluminação da sala, com quem eu já havia falado antes, ele sussurrou para mim: 

- Cardeal Dolan, o que todos estão esperando?
- Como assim, o que você quer dizer? - perguntei
- Bem, estão todos apenas sentados, quietos, esperando, ninguém está falando ou fazendo algo. Há algo errado?

Eu sorri e tentei explicar que, na verdade, estávamos fazendo algo importante - rezando - mas que estávamos rezando em silêncio, que toda "ação" ocorria dentro de nós, nas almas e corações, invísivel a todos exceto a Deus.

Pois o que Alex observou a respeito dos bispos em oração, também poderia dizer sobre as próximas quatro semanas de Advento, que inicia neste Domingo (NT - iniciou no domingo dia 2/Dezembro). Advento, é claro, é nosso "fique pronto" para o Natal. Tentamos espremer em quatro semanas toda esperança, preparação, ansiedade, espera do povo de Israel, nossos irmãos mais velhos na fé, pelo Messias que está a chegar.

Assim como nós bispos em frente ao Santíssimo Sacramento, neste tempo de Advento esperamos por Jesus:
- esperamos pela Sua graça e misericórdia, que certamente virão;
- esperamos pela Sua resposta para nossas orações, certos que Ele dará, mas incertos de quando, onde, como...;
- esperamos por razões para explicar o sofrimento, angústia e preocupações;
- esperamos pelo chamado à nos juntarmos a Ele por toda eternidade;

E, por fim, esquecemos que Senhor espera por nós!
- Jesus espera que estejamos abertos à Sua graça e misericórdia;
- Jesus espera que admitamos, de fato, precisar do Salvador;
- Jesus espera que admitimaos ser Ele a resposta para nossas dúvidas e inquietações;
- Jesus espera nosso retorno a Ele, pois Ele tem um lugar preparado para nós.

Meu amigo Alex não conseguiu entender completamente. Ele observou os bispos muito ativos durante toda semana, em reuniões, projetos e discussões. E, então, nos viu em completo silêncio, nenhuma mão levantada para uma pergunta, nenhum microfone, nenhum relatório. Algo deveria estar errado, por isso ele perguntou "o que todos estão esperando?".

Realmente Alex, nós estamos esperando, e Ele virá! A espera já a chegada. E dentro de nós, encravado na alma, onde ninguém exceto o Senhor pode detectar, está novamente a manjedoura vazia onde o Filho de Deus espera renascer. Este é o milagre do Natal!

Vem, Senhor Jesus!

Tenham todos um abençoado Advento.



4 de dez. de 2012

Os Últimos dias da Virgem Maria


"Voltando-se o Senhor, viu o discípulo a quem amava e lhe disse, a respeito de Maria: 'Eis aí tua Mãe'; e então à Mãe: 'Eis aí teu filho'" (Jo 19,26).

Ora, se Maria tivesse filhos, ou se seu esposo ainda estivesse vivo, por que o Senhor a confiaria a João, ou João a ela? Mas, e também por que não a confiou a Pedro, a André, a Mateus, a Bartolomeu? Fê-lo a João, por causa de sua virgindade. A ele foi que disse: "Eis aí tua mãe".

Não sendo mãe corporal de João, o Senhor queria significar ser ela a mãe ou o princípio da virgindade: dela procedeu a Vida. Nesse intuito dirigiu-se a João, que era estranho, que não era parente, a fim de indicar que sua Mãe devia ser honrada. Dela, na verdade, o Senhor nascera quanto ao corpo; sua encarnação não fora aparente, mas real. E se ela não fosse verdadeiramente sua mãe, aquela de quem recebera a carne, e que o dera à luz, não se preocuparia tanto em recomendá-la como a sempre Virgem. Sendo sua Mãe, não admitia mancha alguma na sua honra e no admirável vaso de seu corpo.

Mas prossegue o Evangelho: "e a partir daquele momento, o discípulo a levou consigo".

Ora, se ela tivesse esposo, casa e filhos, iria para o que era seu, não para o alheio.

Temo, porém, que isso de que falamos venha a ser deturpado por alguns, no sentido de que pareça estimulá-los a manter as mulheres que dizem companheiras e diletas - coisa que inventaram com péssima intenção.

Com efeito, ali (no caso de João e da Santíssima Virgem) tudo foi disposto por uma providência especial, que tornava a situação desligada das obrigações comuns que, conforme a lei de Deus, se devem observar. Aliás, depois daquele momento em que João a levou consigo, não permaneceu ela longamente em sua casa .

Se alguém julgar que estamos laborando em erro, pode consultar a Sagrada Escritura, onde não achará a morte de Maria, nem se foi morta ou não, se foi sepultada ou não. E quando João partiu para a Ásia, em parte alguma está dito que tenha levado consigo a santa Virgem: sobre isso a Escritura silencia totalmente, o que penso ocorrer por causa da grandeza transcendente do prodígio, a fim de não induzir maior assombro às mentes.

Temo falar nisso e procuro impor-me silêncio a este respeito. Porque não sei, na verdade, se podem achar indicações, ainda que obscuras, sobre a incerta morte da santíssima e muito bem-aventurada Virgem. Pois de um lado temos a palavra, proferida sobre ela: "uma espada transpassará tua alma, para que sejam revelados os pensamentos de muitos corações" (Lc 2,35). De outro lado, todavia, lemos no Apocalipse de João (Ap 12), que o dragão avançou contra a mulher, quando dera à luz um varão; e que foram dadas a ela asas de águia, de modo a ser transportada para o deserto, onde o dragão não a alcançasse. Isso pode ter-se realizado nela. Embora eu não o afirme totalmente. Nem digo que tenha ficado imortal nem posso afirmar que tenha morrido. A Sagrada Escritura, transcendendo aqui a capacidade da mente humana, deixa a coisa na incerteza, em atenção ao Vaso exímio e excelente, de sorte que ninguém lhe atribua alguma sordidez própria da carne. Portanto, se ela morreu, não sabemos. E mesmo que tivesse sido sepultada, jamais teve comércio carnal: longe de nós essa blasfêmia! Quem ousaria, em furor de loucura, impor esse opróbrio à santa Virgem, erguendo contra ela a voz, abrindo a boca para uma afirmação assim nefanda, ao invés de lhe entoar louvores? quem iria desonrar assim o Vaso digno de toda honra?

Foi a ela que prefigurou Eva, ao receber o título, um tanto misterioso, de mãe dos viventes (Gn 3,20). Sim, porque o recebeu depois de ter escutado a palavra: "tu és terra e à terra hás de tornar", isto é, depois do pecado.

Numa consideração exterior e aparente, dir-se-ia que de Eva derivou a vida de todo o gênero humano, sobre a terra. Mas na verdade é de Maria que deriva a verdadeira vida para o mundo, é ela que dá à luz o Vivente, ela a Mãe dos viventes. Portanto, o título de "mãe dos viventes" queria indicar, na sombra e na figura, Maria.

Com efeito, não se aplica, porventura, às duas mulheres aquela palavra: "quem deu a sabedoria à mulher, quem lhe deu a ciência de tecer?" (Jo 18,36)

Eva, a primeira mulher sábia, teceu vestes visíveis para Adão, a quem despojara. Fora condenada ao trabalho. Já que tinha sido responsável pela nudez dele, precisou confeccionar a veste que cobrisse essa nudez externa, que cobrisse o corpo exposto aos sentidos.

A Maria, porém, coube vestir o cordeiro e ovelha; com cujo esplendor e glória, como se fora uma lã, foi confeccionada sabiamente para nós uma veste, na virtude de sua imortalidade.

Outra coisa, além disso, pode considerar-se em ambas - Eva e Maria - digna de admiração. Eva trouxe ao gênero humano uma causa de morte, por ela a morte entrou no orbe da terra; Maria trouxe uma causa de vida, por ela a Vida se estendeu a nós. Pois o Filho de Deus veio a este mundo, para que "onde abundara o pecado, superabundasse a graça" (Rm 5,20). Onde a morte havia chegado, chegou a vida, para tomar seu lugar; e aquele mesmo que nasceu da mulher para ser nossa Vida haveria de expulsar a morte, introduzida pela mulher.

Quando ainda virgem, no paraíso, Eva desagradou a Deus, por sua desobediência. Por isso mesmo, emanou da Virgem a obediência própria da graça, depois que se anunciou o advento do Verbo revestido de corpo, o advento da eterna Vida do Céu.

-- Santo Epifânio, monge (século V)

1 de dez. de 2012

Tempo de Advento

Estamos iniciando mais um tempo de Advento, mais um ano liturgico. São Bernardo fala em três Adventos: o primeiro é a incarnação de Jesus Cristo no Natal; o segundo é a vinda de Deus em nossas vidas, momento particular de conversão; e o terceiro será  a retorno definitivo e triunfante de Jesus, como nos fala o Livro do Apocalipse.

O Advento é um tempo especial para entrarmos em oração, praticarmos a caridade através de esmolas e reconhecrmos nossas fraquezas no jejum. é um tempo para nos preparar para recebermos, em nossas vidas, a Jesus Cristo. Como disse o Papa Bento XVI:  "Atentos! Lembrem-se do Deus que está chegando! Não ontem, não amanhã, mas ainda hoje, agora! O único e verdadeiro Deus, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, não é um Deus no alto dos céus despreocupado de nós e nossas história, mas um Deus presente, um Deus que está por chegar!"

O Advento é uma época para estarmos em vigilante espera, como as 5 amigas da noiva que tinham óleo para manter a lâmpada acesa. é um tempo para combater nossa tendência de nos deixarmos levar por todas aquelas festas de fim de ano e as propagandas vendendo qualquer produto por um Natal melhor, tudo muito bontio, mas longe, muito longe de Deus. Como cristãos, somos chamados a fazer o contrário do mundo, somos chamados a investir um tempo a sós com Deus, mantermos a vela da nossa pouca fé acesa a espera do Senhor que está para vir, e talvez venha decisivamente nas nossas vidas ainda antes de 25 de Dezembro.

Como diz São Paulo nas Epístola aos Romanos, após pedir que a comunidade praticasse, acima de tudo, a caridade: Isso é tanto mais importante porque sabeis em que tempo vivemos. Já é hora de despertardes do sono. A salvação está mais perto do que quando abraçamos a fé. A noite vai adiantada, e o dia vem chegando. Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz. Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes. Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites (Rm 13,11-14).  

Como diz o Salmo deste primeiro domingo, é tempo de elevarmos nossas almas ao Senhor, deixar-se conduzir por Ele, não pela nossa inteligência e vontade, renurciarmos um pouco a tudo aquilo que entendemos por importante no mundo, pois Ele quer se tornar íntimo amigo e salvador, como Adão e Eva eram íntimos de Deus antes de pecarem. Sim, não importa os pecados que tenhamos cometido, é tempo de buscarmos a penitência, deixar-se reconduzir ao bom caminho. E, assim, estarmos prontos para  chegada de Jesus Cristo!

30 de nov. de 2012

São João Batista - referências bíblicas

JOÃO BATISTA foi filho de Zacarias e Isabel; JOÃO significa em hebraico "Iahweh é benigno"; e BATISTA por ser aquele que batizava. Lc 1 narra a história de seu nasciento: o anúncio a Zacarias por parte do anjo Gabriel, a idade avançada de seus pais, o mutismo de Zacarias, a escolha do nome, o reconhecimento de Jesus ainda no ventre de Maria, enquanto João também estava no ventre de sua mãe. Os temas do nascimento de um filho de pais em idade avançada  do anúncio por meio de um anjo e do nome escolhido de modo extraordinário constituem ecos dos relatos de Abraão, Isaac, Sansão e Samuel. O relato da concepção e nascimento de João parece conter também elemento de um midraxe, no qual a história expressa simbolicamente a antecipação do acontecimento salvífico no Evangelho. Mas "simbolismo" não quer dizer "criação fantástica": o parentesco entre João e Jesus provavelmente faz parte da tradição autêntica. 

Mais tarde, João aparece (Mt 3,1-10; Mc 1,4-6; Lc 3,1-9) no deserto de Judá anunciando o reino, o dia do juízo e conclamando ao batismo e penitência. João vestia-se de um modo que recorda o profeta Elias; sua vida também é um eco do modo de vida de Elias. Lc acrescenta alguns detalhes sobre o seu ensinamento moral (3,10-14); generosidade para com os pobres e renúncia à violência e à opressão. João anunciava a vinda do Messias como juiz (Mt 3,11s; Mc 1, 7s; Lc 3,15-18). O Messias batizaria com o Espírito Santo e com o fogo, razão pela qual o batismo de João - que era símbolo de arrependimento ao qual conclamava - constituia apenas uma preparação. Os evangelhos sinóticos dão testemunho do grande número de pessoas que iam vê-lo e ouvi-lo (Mt 3,5.7; Mc 1,5). Quando Jesus uniu-se àqueles que queriam ser batizados por João, este o reconheceu como Messias (Mt3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21s). 

A apresentação de João Batista no evangelho de São João não é muito diferente dos sinóticos. João Batista foi enviado por Deus para "dar testemunho da luz" (Jo 1,6-15). Jo 1,19-36 narra que negou ser o Messias (Lc 3,15s; Jo 3,25-30), indicando Jesus como "Cordeiro de Deus". Depois dessa indicação, Jesus começou a fazer os seus primeiros discípulos.

João foi preso por Herodes Antipas, que ele censurara publicamente por seu matrimônio adúltero e incestuoso com Herodíades (Mt 4,12; Mc 1,14; Lc 3, 19s). No relato dos sinóticos, Jesus não começa seu ministério antes da prisão de João Batista. Ao final, João foi executado devido a uma tola promessa feita por Herodes durante uma orgia (Mt 14,1-12; Mc 6,14-28; Lc 9,7-9). A morte de João é atestada também pelo historiador Josefo, que testemunha a popularidade e prestígio entre o povo. 

Jo 5,33-36 acrescenta que Jesus disse ser João uma "testemunha da verdade"e "facho ardente e luminoso", destacando sua influência sobre o povo (Jo 10,41). Pergunta-se a Jesus por que seus discípulos não jejuavam como faziam os de João (Mt 9,14ss; Mc 2,18ss; Lc 5, 33ss). Em outra passagem Jesus a atenção sobre o contraste entre a austeridade de vida de João e seu próprio modo comum de viver (Mt 11,18; Lc 7,33). A resposta de Jesus, expressa nos termos do Servo de Isaías, foi muito clara para quem conhecia o AT. Não há motivos para pensar que se tratasse de um procedimento teatral da parte de João, não para convencer-se a si mesmo, mas sim para convencer seus discípulos; não é improvável que João houvesse perdido um pouco da certeza demonstrada em seu primeiro testemunho e quissesse estar seguro. A resposta de Jesus não apenas o tranquiliza, mas define o caráter de sua messianidade. O testemunho de Jesus a respeito de João faz dele o maior dentre os nascidos de mulher (Mt 11,7-19; Lc 7, 24-35). Em João se concretizou a crença judaica de que Elias retornaria antes do Messias (Mt 17, 13; Mc 9,13). Alguns chegaram a pensar que Jesus fosse João ressuscitado da morte (Mt 16, 14; Mc 8,28; Lc 9,19). Jesus reduziu os fariseus ao silêncio perguntando-lhes se o batismo de João era "do céu ou dos homens"(Mt 21,25-27; Mc 11,30-33; Lc 20,4-8); a fama popular de João como profeta era tão grande que os fariseus não ousavam por em dúvida a autenticidade da sua missão. 

Desde os primeiros tempos considerava-se que o batismo de João marcou o início da vida pública de Jesus (At 1,22; 10,37). A própria antitese de João entre o seu batismo e o batismo do Espírito Santo e no fogo é repetida em At 1,5;11,16. O testemunho de João em relação a Jesus nos evangelhos retorna no discurso de Paulo em Antioquia (At 13,24s). Os discípulos de João sobreviveram como um grupo singular vários anos depois de sua morte, até mesmo em lugares distantes como Éfeso (At 19,3): Apolo, originário de Alexandria, que se tornou cristão em Éfeso conhecia apenas o batismo de João (At 18 18,25).

* extraído do Dicionário Bíblico, de John Mackenzie, Edições Paulinas.



27 de nov. de 2012

Salmo 35: Malícia do pecador, bondade do Senhor


Cada vez que tem início um dia de trabalho e de relacionamentos humanos, duas são as atitudes fundamentais que cada homem pode assumir: escolher o bem ou ceder ao mal. O Salmo 35, que acabamos de ouvir, apresenta precisamente estes dois perfis opostos. Por um lado, há quem desde o seu "leito", de onde está para se levantar, medita projetos iníquos; por outro, ao contrário, há quem procura a luz de Deus, "fonte da vida" (v. 10). O abismo da malícia do ímpio opõe-se ao abismo da bondade de Deus, nascente viva que sacia e luz que ilumina o fiel.

Por isso, dois são os tipos de homem descritos pela oração salmista, que acaba de ser proclamada, e que a Liturgia das Horas nos propõe para as Laudes de quarta-feira da primeira Semana.

O primeiro retrato que o Salmista nos apresenta é o do pecador (cf. vv. 2-5). No seu interior como diz o original hebraico encontra-se o "oráculo do pecado" (cf. v. 2). A expressão é forte. Faz pensar numa palavra satânica que, em contraste com a palavra divina, ressoe no coração e na linguagem do ímpio.

Nele o mal parece com a sua íntima realidade, de maneira a manifestar-se em palavras e atos (cf. vv. 3-4). Ele passa os seus dias a escolher "maus caminhos", desde muito cedo, quando ainda está "no seu leito" (v. 5), até à noite, quando está prestes a adormecer. Esta escolha constante do pecador deriva de uma opção que empenha toda a sua existência e gera a morte.

Mas o Salmista está totalmente orientado para o outro retrato em que ele deseja refletir-se: o do homem que procura o rosto de Deus (cf. vv. 6-13). Ele eleva um verdadeiro e próprio cântico ao amor divino (cf. vv. 6-11) ao qual faz seguir, no final, uma suplicante invocação para ser libertado do fascínio obscuro do mal e imbuído para sempre pela luz da graça.

Neste cântico desenvolve-se uma verdadeira e própria ladainha de termos, que celebram os lineamentos do Deus de amor: graça, fidelidade, justiça, juízo, salvação, sombra protetora, abundância, delícia, vida e luz.

Salientem-se, em particular, quatro destes traços divinos, expressos com vocábulos hebraicos que têm um valor mais intenso do que é demonstrado pela tradução nas línguas modernas.

Em primeiro lugar há o termo hésed, "graça", que é fidelidade e, ao mesmo tempo, amor, lealdade e ternura. Constitui um dos termos fundamentais para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo. E é significativo que ele ressoe por 127 dos Salmos, mais de metade de todas as vezes que esta palavra aparece no restante do Antigo Testamento. Além disso, há o termo 'emunáhque deriva da mesma raiz do amen, a palavra da fé, e significa estabilidade, segurança e fidelidade inabalável. A seguir, vem a palavra sedaqáh, a "justiça", que tem um significado sobretudo salvífico: é a atitude santa e providencial de Deus que, através da sua intervenção na história, liberta do mal e da injustiça os seus fiéis. Enfim, eis a mishpát, o "juízo" com que Deus governa as suas criaturas, debruçando-se sobre os pobres e os oprimidos, e derrubando os arrogantes e os prepotentes.

Quatro palavras teológicas, que o orante repete na sua profissão de fé, enquanto se encaminha pelas sendas do mundo, convicto de ter ao seu lado o Deus amoroso, fiel, justo e salvador.

Aos vários títulos com que exalta a Deus, o Salmista acrescenta duas imagens sugestivas. Por um lado, a abundância de alimentos: ela faz pensar, em primeiro lugar, no banquete sagrado, que se celebrava no templo de Sião, com a carne das vítimas sacrificiais. Há também a fonte e a torrente, cujas águas saciam não apenas a garganta sedenta, mas também a alma (cf. vv. 9-10; Sl 41, 2-3; 62, 2-6). O Senhor sacia o orante, tornando-o partícipe da sua vida plena e imortal.

A outra imagem é representada pelo símbolo da luz:  "Na vossa Luz é que vemos a luz" (v. 10). Trata-se de uma luminosidade que se irradia como que "a cântaros" e é um sinal da revelação de Deus ao seu fiel. Assim aconteceu com Moisés no Sinai (cf. Êx 34, 29-30) e assim acontece com o cristão, na medida em que, "com o rosto descoberto, com o rosto refletindo a glória do Senhor, como um espelho, é transformado nessa mesma imagem" (cf. 2 Cor 3, 18).

Na linguagem dos Salmos, "ver a luz do rosto de Deus" significa concretamente encontrar o Senhor no templo, onde se celebra a oração litúrgica e se escuta a palavra divina. Também o cristão vive esta experiência, quando celebra  os  louvores  do  Senhor  na  aurora do dia, antes de se encaminhar pelas sendas nem sempre lineares da vida quotidiana.

-- Papa João Paulo II, na audiência de 22 de Agosto de 2012

24 de nov. de 2012

O mistério de Cristo em nós e na Igreja

São João Eudes, doutor e apóstolo
do Sagrado Coração

Cabe-nos imitar e completar em nós os estados e mistérios de Cristo e pedir-lhe continuamente que os leve a termo e os perfaça em nós e na Igreja inteira.

Porque os mistérios de Jesus ainda não estão totalmente levados à sua perfeição e realizados. Na pessoa de Jesus, sim, não, porém, em nós, seus membros, nem na Igreja, seu Corpo místico. Por querer o Filho de Deus comunicar, estender de algum modo e continuar seus mistérios em nós e em toda a sua Igreja, determinou tanto as graças que nos concederá,quanto os efeitos que quer produzidos em nós por esses mistérios. Por esta razão deseja completá-los em nós.

Por isso, São Paulo diz que Cristo é completado na Igreja e que todos nós colaboramos para sua edificação e para a plenitude de sua idade (cf. Ef 4,13), isto é, a idade mística que tem em seu Corpo místico, mas que só no dia do juízo será plena. Em outro lugar, diz o mesmo Apóstolo que completa em sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1,24).

Deste modo, o Filho de Deus decidiu que seus estados e mistérios seriam completados e levados à perfeição em nós. Quer levar à perfeição em nós o mistério de sua encarnação, nascimento, vida oculta, quando se forma e renasce em nossa alma pelos sacramentos do santo batismo e da divina eucaristia e nos dá vivermos a vida espiritual e interior, escondida com ele em Deus (Cl 3,3).

Quer ainda levar à perfeição em nós o mistério de sua paixão, morte e ressurreição que nos fará padecer, morrer e ressurgir com ele. E, finalmente, quer completar em nós o estado de vida gloriosa e imortal, quando nos fará viver com ele e nele a vida gloriosa e perpétua nos céus. Assim quer consumar e completar seus outros estados, outros mistérios em nós e em sua Igreja; deseja comunicá-los a nós e partilhá-los conosco e por nós continuá-los e propagá-los.

Assim, os mistérios de Cristo não estarão completos antes daquele tempo que marcou para o término destes mistérios em nós e na Igreja, isto é,  antes do fim do mundo.

-- Do Tratado sobre o Reino de Jesus, de São João Eudes, presbítero (século XVI)

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