28 de set. de 2017

O sofrimento do pobre e a estultícia do rico (Lc 12,16-21)

Sofrimento do pobre

A bela cor do ouro te alegra extremamente, mas não pensas quantos e quais gemidos do indigente te acompanham.

Como poderei pôr sob teus olhos os sofrimentos do pobre? Eles, olhando ao redor, vêem que não há ouro nem haverá jamais: os utensílios e as vestes, que costumam ser os bens dos pobres, são todos de valor insignificante. Que fará? Olha para os filhos e decide conduzi-los ao mercado para se livrar da morte. Imagina tu o conflito entre a miséria da fome e o sentimento paterno: a fome ameaça de morte deplorável, a natureza, ao invés, o induz a morrer juntamente com os filhos. Mais vezes se decide, mais vezes desiste: finalmente sucumbe oprimido pela necessidade e pela inelutável penúria.

Como raciocina o pai? "Quem venderei primeiro? Qual será preferido pelo mercador? Decidir-me-ei pelo primogênito? Mas sua idade me envergonha. Pelo mais jovem? Tenho muita compaixão pela sua juventude sem experiência das desgraças. Este conserva bem a fisionomia dos pais, aquele a boa inclinação para os estudos. Terrível angústia! Que será de mim? Qual deles irei ofender? De qual fera tomarei o coração? Como esquecerei a natureza? Se conservo a todos, vê-los-ei se consumir por este flagelo. Se não vendo um, com que olhos olharei aqueles que me restaram? Esses, doravante suspeitos, me considerarão traidor. Como habitarei em minha casa, privado pela minha culpa dos filhos? Como poderei me sentar a uma mesa posta com tal preço?"

Finalmente ele parte, chorando lágrimas quentes, para vender seu filho mais querido. A dor não te comove e não levas em consideração a sua natureza. A fome mantém prisioneiro o infeliz e tu temporizas e te fazes de surdo, agravando desse modo a dilaceração. Tu não só não sentes paralisar a mão ao aceitar o preço de tal infortúnio, mas ainda regateias sobre o preço; e disputas como, recebendo muito, poderias dar ainda menos, agravando ainda mais a desgraça do infeliz. Suas lágrimas não te comovem, seu gemido não amolece teu coração, ao contrário, permaneces inflexível e implacável. Em tudo e por tudo, só vês ouro: imaginas o ouro; dormindo, sonhas com ouro; desperto, o cobiças. Como quem está atacado pela febre não vê a realidade, mas delira por causa do mal, assim tua alma, possuída pela cobiça das riquezas, vê, em tudo, ouro e prata. A vista do ouro te é mais importante do que a do sol. Fazes voto para que tudo se trans- forme em ouro para que possas obtê-lo.

Insaciável fome de ouro

O que não fazes pelo ouro? Para ti o trigo se torna ouro, o vinho se solidifica em ouro, a lã se transforma em ouro; todas as mercadorias, em suma, e todos os projetos te levam ao ouro. O ouro se reproduz por si mesmo, multiplicando-se com os lucros. E não estás jamais saciado e tuas ambições não têm limites.

Estultícia do rico

Por vezes, condescendemos com as crianças gulosas permitindo que se fartem à vontade daquilo que desejam, para que a saciedade exagerada lhes provoque a náusea. Nada disso acontece com o avaro; quanto mais- se enche, mais deseja. "Quando vossa riqueza prospera, não ponhais nela vosso coração" (Sl 61,11).

Tu, ao contrário, seguras o que te escapa e fechas com muros as saídas. Bloqueado, estagnado desta maneira, que coisa te fazem? Arrebentará os obstáculos e, porque até agora trancado com violência e a transbordar, arrasará os armazéns, esvaziará os celeiros do rico, como se ali entrasse um inimigo que avança. Não há garantia de que os deixará assim destruídos ao seu herdeiro. De fato, muito mais depressa será ele levado para outro lugar do que construídos aqueles celeiros, conforme seu projeto ambicioso. Ele, portanto, por seus pensamentos iníquos, teve um fim conveniente. Vós, porém, dai-me ouvidos: escancarai todas as portas dos depósitos, com toda a liberalidade permiti que a riqueza saia livremente. Como um grande rio irriga e fecunda a terra por milhares de canais, assim vós dai livre curso às riquezas para que possam chegar à casa dos pobres. 

Os poços, donde se extrai com freqüência a água, jorram água mais fácil e copiosa; deixados sem uso, as águas se corrompem. Da mesma maneira, a riqueza trancada é inútil e prejudicial, mas a que se movimenta e passa de um a outro é benéfica para todos e frutuosa. Oh! quantos louvores receberão daqueles que foram beneficiados! Que tu não o desprezes! Que éopiosa recompensa terás do justo juiz! Dela não duvides tu! De todos os lados vêm a teu encontro exemplos de ricos acusados diante do tribunal. Aqueles que guardam os bens que já possuem e se angustiam pelos futuros, sem saberem se estarão vivos no dia de amanhã; o amanhã lhes fará perder o hoje. Ainda não chegara nenhum suplicante, e ele já se antecipa com ferocidade. Não recolhera ainda os frutos, e ele já recebe a condenação pela avareza. A terra prometia seus frutos pondo à mostra a messe luxuriante: nos campos lavrados, anuncia-se abundante o trigo; muitos cachos se mostram nos sarmentos.

Carregada de frutos, a oliveira se oferece, junto com todas as espécies de delícias. Inábil e estéril era aquele rico, porque, sem ter ainda alguma coi- sa, já augurava o mal aos necessitados. E, no entanto, quantos perigos antes da colheita! De fato, ora o granizo quebra, ora o calor ardente rouba das mãos, ora a chuva, fora do tempo, precipitando-se, estraga os frutos. Por que então não pedes ao Senhor que leve a termo o seu dom? Mas, apoderando-te dele antecipadamente, tu te tornas-te indigno de receber o prometido.

-- parte II da Homília sobre a riqueza e a avareza,  São Basílio (século IV)

25 de set. de 2017

Homília sobre a avareza e o rico (Lc 12,16-21)

Dupla é a espécie da tentação: de um lado, as tribulações que põem à prova o coração como o ouro no crisol (cf. Sb 3,6) mostram quanto há nelas de bom na prática da paciência; de outro lado, a própria prosperidade da vida, que para a maior parte das pessoas se torna freqüentemente uma prova, dado que é igualmente difícil manter-se seguro o ânimo nas adversidades e não se deixar dominar pelo orgulho e pela arrogância no meio das dificuldades. Exemplo da primeira espécie de tentação é o grande Jó, campeão imbatível, que suportou os violentos assaltos do demônio, semelhantes ao ímpeto de uma torrente, com ânimo imperturbável e com propósito irremovível; e nas tentações tanto se mostrou superior, quanto maiores e árduas apareciam as lutas que empreendeu com o adversário.

Das tentações que derivam da prosperidade da vida, temos muitíssimos exemplos: entre outros, aquele rico cuja história acabamos de ler. Este homem, além das riquezas que possuía, desejava ainda outras. A misericórdia de Deus, ao invés de condená-lo imediatamente por sua ingratidão, às riquezas de antes ajuntava sempre novas, querendo com isso convidá-lo a ser liberal e benigno, uma vez saciado abundantemente. "As terras de um rico - diz, de o Evangelho - deram uma abundante colheita. E ele refletia consigo mesmo: Que farei? Demolirei meus celeiros e construirei outros maiores" (Lc 12,16-18). 

Por que deram tão abundante colheita as terras daquele homem que, na abundância, não soubera tirar nenhum proveito? Para que melhor aparecesse a longanimidade de Deus, a bondade daquele que se estende também a este. Deus, de fato, "faz chover sobre justos e injustos e faz nascer o sol sobre os bons e os maus" (Mt 5,45). Tal bondade de Deus, porém, acumula sobre a cabeça dos maus maiores castigos. Ela faz cair a chuva sobre o campo cultivado por mãos avaras e dá o sol que aquece a semente e multiplica abundantemente os frutos. 

A generosidade de Deus 
Eis quanto provém de Deus: fertilidade do solo, condições atmosféricas propícias, abundância das sementes, a ajuda dos bois e outros elementos que contribuem para o incremento da agricultura. 

E da parte do homem? Dureza de coração, misantropia e avareza: é dessa maneira que o homem agradece ao próprio benfeitor. Não se recordou da comunhão de natureza, não pensou que precisava dividir o supérfluo entre os indigentes, não levou em conta o mandamento: "Não negues um benefício ao necessitado" (Pr 3,27). "A caridade e a confiança não te abandonem" (Pr 3,3). "Reparte o pão com o faminto" (Is 58,7). Permaneceu surdo ao grito de todos os profetas e de todos os mestres. 

A avareza do homem 
Os celeiros, pequenos demais para abrigar tanta abundância, são destruídos, mas o coração avaro não estava satisfeito. Com o advento de novas riquezas às antigas e com os proventos de cada ano, aumentava a abundância. Estava o homem rico neste dilema, do qual não sabia como desembaraçar-se: não queria desfazer-se dos velhos, por avareza; não podia recolher o novo, por causa da abundância. Por isso, atormentava-se sem chegar a nenhuma conclusão: "Que farei?". Quem não se comoveria por um homem assim atormentado? Consternado pela prosperidade, é um mísero pelos bens que possui; mais mísero ainda pelos que viriam. 

Se a terra não lhe produz os proventos, cai em gemidos constantes. Se se acumulam frutos abundantes? Aflições, penas, angústias cruéis! Lamenta-se como um pobre. Não exclama, talvez, da mesma maneira de quem está na indigência? "Que farei? O que comerei? Como me vestirei?"

Assim vai repetindo, em alta voz, o rico. Leva no coração o tormento, a ansiedade o aflige, porque aquilo que a outros torna alegres, consome pela preocupação o avaro. A casa está abarrotada de tudo, porém, ele não se alegra. Pelo contrário, aqueles bens que afluem de todas as partes e que transbordam os celeiros torturam-lhe a alma por temor de que, escapando para fora alguma migalha, os necessitados possam se aproveitar delas. 

Parece-me que a paixão destes se assemelha à dos glutões, que preferem arrebentar-se pela voracidade antes que deixar alguma sobra aos necessitados. 

O homem é administrador dos dons divinos 
Reconhece, ó homem, o teu doador. Recorda-te de ti mesmo: quem sou, que coisa administra, de quem recebeste, porque foste preferido entre muitos. És servidor da bondade de Deus, administrador dos teus companheiros de servidão. Não creias que tudo seja destinado a teu ventre. Considera os bens que estão nas tuas mãos como coisa de outros: por breve tempo alegram-te, depois deslizam e desaparecem rapidamente; àeles deverás prestar contas pormenorizadas. 

Embora tenhas tudo bem fechado com portas trancadas, amarrado e selado, todavia, as preocupações te impedem o sono. Ruminas dentro de ti, estulto conselheiro de ti mesmo: "Que farei?". Seria, ao invés, ocasião de dizer: saciarei quem tem fome, abrirei meus celeiros e chamarei todos os indigentes. Imitarei o benéfico edito de José: "Quantos não tenham pão, vinde a mim; tome cada um o suficiente do dom concedido por Deus, como de uma fonte comum" (Gn 47,13-26).

Por que não és assim também tu? Tens medo de que outros tirem proveito destes bens e, ruminando na alma sentimentos maus, meditas, não tanto como distribuir a cada um segundo a necessidade, mas como ajuntar ainda mais bens e tirar de todos os proventos para ti. 

Já haviam chegado aqueles que lhe pediriam a alma (cf. Lc 12,20) e ele confabulava consigo sobre alimentação; naquela mesma noite o levariam deste mundo (cf. Lc 12,20) e ele fantasiava gozar ainda por muitos anos. Foi-lhe deixado desejar tudo, expressar seu pensamento, para que seu propósito sofresse a sentença que merecia. 

Exortação aos ricos 
Toma cuidado para que não te aconteça o mesmo! Estas coisas foram escritas para que evitemos semelhante destino. Imita a terra, ó homem, e produz frutos à sua semelhança: não sejas pior que a criatura inanimada. A terra produz frutos não para o proveito próprio, antes para tua sustentação. Tu, no entanto, qualquer fruto de bondade que produzires, recolherás para teu proveito, dado que o mérito das boas obras se reverte para os doadores. Deste ao faminto? O dom se volta para ti e te é restituído com juros. Como o trigo lançado à terra transforma-se em lucro para aquele que o semeou, assim o pão dado ao fa- minto te renderá, a seu tempo, lucro abundante. Põe fim, pois, ao cultivo dos campos e começa a semear para o céu, porque está escrito: "Semeai para vós sementes de justiça" (Os 10,12). 

A generosidade é uma glória para o homem 
"Muito melhor um nome bom que grandes riquezas" (Pr 22,1). Se, pois, as riquezas te parecerem uma grande coisa pela honra que delas deriva, reflete quanto é mais vantajosamente honrável ser chamado pai de inumerá- veis filhos do que ter dinheiro na bolsa. Esta a deixarás aqui, quer queiras quer não; ao invés, a honra conquistada com as boas obras a levarás contigo à face do Senhor, quando todo o povo reunido em torno de ti diante do juiz comum te aclamará provedor, benfeitor e te dará todos os títulos da caridade. Não vês aqueles que gastam o dinheiro nos teatros, nos pugilatos, nas cenas burlescas, nas lutas com as feras -gente que ninguém deveria olhar no rosto? -e tu és tão mesquinho em distribuir, enquanto uma glória bem mais elevada te espera? Deus saberá te acolher, os anjos te louvarão, os homens, todos quantos existiram desde a criação, te aclamarão bem-aventurado. Uma glória eterna, uma coroa de justiça, o reino dos céus serão para ti o prêmio pela distribuição destes bens caducos. Não mais te ocuparás com eles: substitui o empenho pelos bens presentes, por aqueles que esperamos. Coragem, pois! Dispõe generosamente das tuas riquezas, sê ambicioso e generoso no dispensar a quem tem necessidade. Que se possa dizer de ti: "É generoso, distribui de boa vontade aos pobres, a sua justiça permanece para sempre" (Sl 111,9). Não vendas a preço muito alto aproveitando da necessidade, não esperes a carestia para abrir os celeiros, porque "o povo maldiz quem retém o trigo" (Pr 11,26). Não socorrer os famintos por causa do ouro, nem a penúria geral para poderes estar na abundância é inadmissível; não te faças desfrutador das desgraças humanas. Não faças da ira de Deus uma ocasião para aumentar tuas riquezas. Não tornes mais dolorosas as chagas de quem foi golpeado pelos flagelos. 

Tu, ao invés, fixas os olhos no ouro, mas não olhas em face o irmão. Sabes reconhecer a marca da moeda e distinguir a falsa da verdadeira, porém ignoras completamente o irmão necessitado.  

-- parte I da Homília sobre a riqueza e a avareza,  São Basílio (século IV)

12 de set. de 2017

Estarei atento para ouvir o que me diz o Senhor

São Bernardo de Claraval, nasceu em 1090,
morreu em 20 de Agosto de 1153
Lemos no Evangelho que, quando o Senhor em sua pregação convidava os discípulos a participarem do mistério de comer o seu corpo também os exortava a comungar de sua paixão, alguns disseram: É dura esta palavra; e já não mais ficaram com ele. Interrogados os discípulos se também eles queriam ir-se embora, responderam: Senhor, a quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna (Jo 6,68).

Digo-vos, irmãos, que até hoje para alguns é evidente serem as palavras faladas por Jesus espírito e vida e por isso seguem-no. Para outros parecem duras e vão em busca de outra miserável consolação. A Sabedoria as repete bem alto nas praças, na larga e espaçosa estrada que leva à morte, para chamar a si os que caminham por ela.

Até mesmo Quarenta anos estive próximo desta geração e disse: Sempre se extraviam pelo coração (Sl 94,10). Encontras também em outro salmo: Uma vez falou Deus (cf. Sl 61,12). Sim, uma vez, porque sempre. É um só e não alterado, mas contínuo e perpétuo seu falar.

Convida os pecadores a novamente entrarem em si, censura pelo erro do coração para que aí habite ele e aí fale, realizando aquilo que ensinou pelo profeta ao dizer: Falai ao coração de Jerusalém (Is 40,2).  

Bem vedes, irmãos, como é proveitosa a exortação do Profeta a não endurecermos o coração, se ouvirmos hoje sua voz. Quase as mesmas palavras podeis ler no Evangelho e no Profeta. Ali diz o Senhor: Minhas ovelhas ouvem minha voz (Jo 10,27). E o santo Davi no salmo: Seu povo (do Senhor, sem dúvida) e ovelhas de suas pastagens, hoje se ouvirdes sua voz, não endureçais os vossos corações (Sl 94,7-8).  

Escuta, por fim, o profeta Habacuc, como não disfarça a censura do Senhor, mas se entrega a contínua e solícita reflexão sobre ela: Estarei de atalaia, fincarei pé no meu reduto para ver o que me dirá e o que responderei a quem me repreende (Hab 2,1). Também nós, irmãos, suplico, estejamos de atalaia porque o tempo é de luta.  

Entremos em nossos corações, onde Cristo habita, comportando-nos com justiça e prudência, de tal forma, porém, que não ponhamos em nós mesmos a confiança nem nos apoiemos em tão frágil proteção.

-- Dos Sermões de São Bernardo, abade (século I)

7 de set. de 2017

Aqueles que creêm em Deus abandonam seus antigos costumes

Aqueles com quem vivemos trazem antiquíssimas inimizades com outros [índios] da mesma nação, e por isso de uma ou outra parte se declara e se aceita frequentemente a guerra, para a qual concorrem muitos de diversos lugares; assim, mesmo estando nós entre eles, partiram contra os inimigos.

Um dia antes de entrarem no combate, os que vinham de outros lugares, começaram a oferecer sacrifícios a seus feiticeiros, a quem chamam de pajés, interrogando-os sobre o que lhes sucederia no conflito. Não só os batizados, mas também outros a quem a palavra de Deus já fora semeada, perguntados se queriam dar créditos àquelas mentiras, responderam que não, e que traziam seu Deus no coração, em cujo auxílio confiavam que alcançariam vitória maior do que com sacrifícios imundos.

Tendo eles entrado em combate e aparecendo a imensa multidão de inimigos, muitos abalados pelo medo e terror, começaram a perder o ânimo. Vendo isso, uma mulher já batizada, que era esposa do chefe da aldeia e partira com ele para a guerra, aconselhou a todos que fizessem o sinal da cruz para perder o temor. Assim revigorados, os inimigos foram desbaratados e dispersos. Dos nossos catecúmenos, nenhum foi feito prisioneiro pelos inimigos, que costumam matá-los e comê-los. 

Aqueles feiticeiros de que já falei são tidos por eles em grande estima, por que chupam os outros quando são acometidos de alguma dor e, assim, os livram das doenças e afirmam que tem poder sobre a vida e a morte. Nenhum deles comparece diante de nós, por que descobrimos seus embustes e mentiras. Ocorreu que um destes feiticeiros foi convidado pelo filho de um dos cristãos à sua casa para que o curasse. Ao saber o que fizera seu filho, o pai o repreendeu asperamente, dizendo que não poderia entrar novamente na Igreja e seria assado pelo demônio por dar crédito aos feiticeiros.

Outra criança de quatro ou cinco anos, assaltada de grave enfermidade, rogava muitas vezes em prantos à sua mãe que a levasse ao templo, e gemendo em frente ao altar, pedia em sua própria língua: "Ó Padre curai-me!". Interrogada pelo seu pai se queria que chamassem um dos feiticeiros para aplicar os remédios da tribo, chorando com grande lamentos lançou-se por terra, dizendo que não, que com o auxílio de Deus recuperaria a saúde. O Senhor operou um certo remédio, que aplicado pelos irmãos da Companhia [de Jesus], recobrou a tão esperado saúde do menino.

Esperamos que ainda se colherão muitas graças e favores divinos, frutos dos obreiros de Deus que enviaste para esta tão fecunda vinha, para o maior benefício de Deus. Aqui habitamos presentemente com o Reverendo em Cristo Padre Manuel da Nóbrega, sete irmãos separados da convivência dos portugueses, aplicados tão somente à doutrina dos índios. Temos também conosco alguns índios que abominam os costumes da tribo, pondo em tudo amor ao Pai. Louvor e glória a Deus, de quem todo bem procede.

-- trechos de uma carta de São José de Anchieta escrita em setembro de 1554, quando estava em Piratininga, no atual estado de São Paulo

1 de set. de 2017

Convertei-vos a mim de todo coração

Profeta Joel, um dos 12 profetas "menores", cujo
nome significa "aquele queesta com Deus".
Convertei-vos a mim de todo o vosso coração (Jl 2,12) e mostrai o arrependimento do espírito por jejuns, lágrimas e gemidos. Para que, jejuando agora, vos sacieis mais tarde; chorando agora, riais depois; gemendo agora, sejais depois consolados.É costume nas tristezas e adversidades rasgar as vestes. Isso fez o Sumo Pontífice para aumentar a acusação contra o Senhor Salvador, segundo conta o Evangelho e fizeram Paulo e Barnabé ao ouvir as palavras de blasfêmia. Assim eu vos ordeno, não rasgueis as vestimentas,mas os corações que estão cheios de pecados, porque quais odres, se não forem rasgados, se romperão por si mesmos. Tendo assim agido,voltai ao Senhor nosso Deus, a quem vossos pecados anteriores vos fizeram afastar-vos. Não desespereis do perdão pela gravidade das culpas, pois grande misericórdia apagará grandes pecados.
  
Pois ele é benigno e misericordioso, preferindo a penitência dos pecadores à morte; paciente, de imensa misericórdia, que não imita a impaciência humana, mas espera por longo tempo nossa conversão condescendente ou arrependido do mal que intentara. Se fizermos penitência dos pecados, ele se arrependerá de suas ameaças e não nos fará vir os males que prometeu. Com a mudança de nosso intento, também ele mudará. Não devemos entender aqui “mal” como contrário à virtude e sim como aflição, conforme lemos em outro passo: Basta a cada dia seu mal. E: Se houver na cidade mal que o Senhor não tenha enviado.  

Da mesma forma, por ter dito acima ser benigno e misericordioso, paciente e de imensa misericórdia, condescendente ou arrependido do mal, para que talvez a grande clemência não nos torne negligentes, acrescenta por intermédio do Profeta: Quem sabe se não voltará atrás e perdoará, e deixará após si uma bênção? (Jl 2,13-14). Eu, diz ele, exorto à penitência, pois é o meu dever, e sei que Deus é indizivelmente clemente. Testemunha é Davi: Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia e segundo a multidão de tua compaixão apaga minha iniquidade (Sl 50,1.3). Como, porém, não podemos conhecer a profundidade das riquezas, da sabedoria e da ciência de Deus, amenizo a afirmação e prefiro desejar a presumir, dizendo: Quem sabe se não voltará atrás e perdoará? Dizendo quem sabe, quer significar ser impossível ou difícil.  

Sacrifício e libação ao Senhor nosso Deus (cf. Jl 2,14). Depois de ter-nos dado a bênção e perdoado nossos pecados, somos capazes de oferecer hóstias ao Senhor.

-- Do comentário sobre o profeta Joel, de São Jerônimo, presbítero (século V)

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