28 de ago. de 2016

Santidade na família salesiana


A família salesiana tem sido abençoada com a santidade em muitíssimas formas ao longo dos anos. No momento há 166 membros já glorificados ou com processos em estudo: 9 santos, 117 bem-aventurados, 12 veneráveis e 28 servos de Deus. A lista em 31 de Janeiro de 2014 era:

Santos:
São João Bosco, sacerdote (canonizado em 1o. de Abril de 1934)
São José Cafasso, sacerdote (22 de junho de 1947)
Santa Maria D. Mazzarello, virgem (24 de junho de 1951)
São Domingos Sávio, adolescente (12 de junho de 1954)
São Leonardo Murialdo, sacerdote (3 de maio de 1970)
São Luiz Versiglia, bispo, mártir (1o. de outubro de 2000)
São Callisto Caravario, sacerdote, mártir (1o.  de outubro de 2000)
São Luiz Orione, sacerdote (16  de maio de 2004)
São Luiz Guanella, sacerdote (23  de outubro de 2011)

Beatos ou Bem-aventurados:
Beato Michele Rua, sacerdote (beatificado em  29 de outubro de 1972)
Beata Laura Vicuňa, adolescente (3 de setembro de 1988)
Beato Felipe Rinaldi, sacerdote (29 de abril de 1990)
Beata Madalena Morano, virgem (5 novembre 1994)
Beato José Kowalski, sacerdote, mártir (13 de junho de 1999)
Beato Francisco Kęsy, laico, e 4 companheiros mártires (13 de junho de 1999)
Beato Pio IX, papa (3 de setembro de 2000)
Beato José Calasanz, sacerdote, e 31 companheiros mártires (11 de março de 2001)
Beato Luiz Variara, sacerdote (14 de abril de 2002)
Beato Artemide Zatti, religioso (14 de abril de 2002)
Beata Maria Romero Meneses, virgem (14 de abril de  2002)
Beato Augusto Czartoryski, sacerdote (25 de abril de 2004)
Beata Eusébia Palomino, virgem (25 de abril de 2004)
Beata Alessandrina M. da Costa, laica (25 de abril de 2004)
Beato Alberto Marvelli, laico (5 de setembro de 2004)
Beato Bronislao Markiewicz, sacerdote (19 de junho de  2005)
Beato Henrique Saiz Aparicio, sacerdote, e 62 companheiros mártires (28 de outubro de 2007)
Beato Zeferino Namuncurà, laico (11 novembre 2007)
Beata Maria Troncatti, virgem (24 novembre 2012)
Beato Estevãoo Sándor, laico, mártir (19 de outubro de 2013)

Veneráveis:
Ven. Andrea Beltrami, sacerdote (decreto publicado em 5 de Dezembro de 1966).
Ven. Teresa Valsè Pantellini, virgem (12 de Julho de 1982).
Ven. Dorotéia Chopitea, laica (9 de Junho de 1983).
Ven. Vicente Cimatti, sacerdote (21 de Dezembro de 1991)
Ven. Simone Srugi, religioso (2 de Abril de 1993).
Ven. Rodolfo Komorek, sacerdote (de Abril de 1995).
Ven. Luiz Olivares, bispo (20 de Dezembro de 2004).
Ven. Margarida Occhiena, laica (23 de Outubro de 2006).
Ven. José Quadrio, sacerdote (19 de Dezembro de 2009).
Ven. Laura Meozzi, (Polonia), virgem (27 de Junho de 2011)
Ven. Atílio Giordani, (Italia), laico (de Outubro de 2013)
Ven. José Augusto Arribat, (França) sacerdote ( de Julho de 2014)

Servos de Deus
Estevão Ferrando, bispo (Índia).
Otávio Ortiz Arrieta, bispo (Peru).
Francisco Convertini, sacerdote (Índia)
Augusto Hlond, cardeal (Polônia)
Elia Comini, sacerdote (Itália)
José Vandor, sacerdote (Cuba).
Inácio Stuchly, sacerdote (República Checa).
Antônio Lustosa de Almeida, bispo  (Brasile).
Carlos Crespi Croci, sacerdote (Equador).
Costantino Vendrame, sacerdote (Índia).
Tito Zeman, sacerdote , mártir (Eslovaquia).
Oreste Marengo, bispo  (Índia)
João Swierc, sacerdote e 8 companheiros mártires (Polônia).
Ana Maria Lozano, hh.ss.cc. (Colômbia)
Carlos Della Torre, sacerdote (Tailândia).
Matilde Salem, laica (Síria).
Andrea Majcen, sacerdote (Eslovênia)
Carlos Braga, sacerdote (Filipinas)
Antonino Baglieri, laico, (Itália)
Antonieta Böhm, religiosa, (México)

27 de ago. de 2016

A Pastoral Familiar

 A Igreja insiste no fato de que as famílias cristãs são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo o testemunho dos cônjuges e das famílias. Para isso é preciso fazer os casais experimentar que o Evangelho da família é alegria que enche o coração e a vida inteira, porque, em Cristo, somos libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. À luz da parábola do semeador (Mt 13, 3-9), a tarefa consiste em cooperar na sementeira: o resto é obra de Deus.
Por isso exige-se a toda a Igreja uma conversão missionária: é preciso não se contentar com um anúncio puramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas. A pastoral familiar deve fazer experimentar que o Evangelho da família é resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e plena realização na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma normativa, mas de propor valores, correspondendo à necessidade deles que se constata hoje, mesmo nos países mais secularizados.
A principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias, onde se harmonizam os contributos das pequenas comunidades, movimentos e associações eclesiais.
Guiar os noivos no caminho de preparação para o matrimônio
É preciso ajudar os jovens a descobrir o valor e a riqueza do matrimônio. Devem poder captar o fascínio duma união plena que eleva e aperfeiçoa a dimensão social da vida, confere à sexualidade o seu sentido maior, ao mesmo tempo que promove o bem dos filhos e lhes proporciona o melhor contexto para o seu amadurecimento e educação. A complexa realidade social que a família é chamada a enfrentar atualmente, exige um empenho maior de toda a comunidade na preparação dos noivos para o matrimônio. 
Há várias maneiras legítimas de organizar a preparação próxima para o matrimônio e cada Igreja local discernirá a que for melhor, procurando uma formação adequada. Não se trata de lhes ministrar o Catecismo inteiro nem de os saturar com demasiados temas, devendo-se dar prioridade a um renovado anúncio do querigma – conteúdos que, comunicados de forma atraente e cordial, os ajudem a comprometer-se num percurso da vida toda com ânimo grande e liberalidade. Habitualmente são muito úteis os grupos de noivos e a oferta de palestras opcionais sobre uma variedade de temas que realmente interessam aos jovens. Entretanto são indispensáveis alguns momentos personalizados, dado que o objetivo principal é ajudar cada um a aprender a amar esta pessoa concreta com quem pretende partilhar a vida inteira, incluindo também a possibilidade de individuar incompatibilidades e riscos.
Deve ser possível, também, detectar os sinais de perigo que poderá apresentar a relação, para se encontrar, antes do matrimônio, os meios que permitam enfrentá-los com bom êxito. Infelizmente, muitos chegam às núpcias sem se conhecer. Limitaram-se a divertir-se juntos, a fazer experiências juntos, mas não enfrentaram o desafio de se manifestar a si mesmos e aprender quem é realmente o outro.
Deve-se procurar que os noivos não considerem o matrimônio como o fim do caminho, mas o assumam como uma vocação que os lança para diante, com a decisão firme e realista de atravessarem juntos todas as provações e momentos difíceis.
A preparação da celebração
A preparação próxima do matrimônio tende a concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes que consomem tanto os recursos econômicos como as energias e a alegria. Na preparação mais imediata é importante esclarecer os noivos para viverem com grande profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os a compreender e viver o significado de cada gesto. Lembremo-nos de que um compromisso tão grande como este expresso no consentimento matrimonial e a união dos corpos que consuma o matrimónio só podem ser interpretados como sinal do amor do Filho, Deus feito carne, em matrimôonio com a sua Igreja, uma aliança de amor.
Às vezes, os noivos não percebem o peso teológico e espiritual do consentimento, que ilumina o significado de todos os gestos sucessivos. É necessário salientar que aquelas palavras não podem ser reduzidas ao presente; implicam uma totalidade que inclui o futuro: “até que a morte vos separe”.
Também se pode meditar com as leituras bíblicas e enriquecer a compreensão do significado das alianças que trocam entre si, ou doutros sinais que fazem parte do rito. Mas não seria bom os noivos chegarem ao matrimônio sem ter rezado juntos, um pelo outro, pedindo ajuda a Deus para serem fiéis e generosos, perguntando juntos a Deus que espera deles, e inclusive consagrando o seu amor diante duma imagem de Maria.
Acompanhamento nos primeiros anos da vida matrimonial
Temos de reconhecer como um grande valor que se compreenda que o matrimônio é uma questão de amor: só se podem casar aqueles que se escolhem livremente e se amam. Apesar disso, se o amor se reduzir a mera atração ou a uma vaga afetividade, isto faz com que os cônjuges sofram duma extraordinária fragilidade quando entram em crise ou a atração física diminui. A união é real, é irrevogável e foi confirmada e consagrada pelo sacramento; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas, senhores da sua própria história e criadores dum projeto que deve ser levado para a frente conjuntamente. O “sim” que deram um ao outro é o início dum itinerário cujo objetivo se propõe superar as circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A bênção recebida é uma graça e um impulso para este caminho sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu projeto concreto com os seus objetivos, meios e detalhes.
Uma das causas que leva a rupturas matrimoniais é ter expectativas demasiado altas sobre a vida conjugal. Quando se descobre a realidade mais limitada e problemática do que se sonhara, a solução não é pensar imediata e irresponsavelmente na separação, mas assumir o matrimônio como um caminho de amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um instrumento de Deus para fazer crescer o outro. É possível a mudança, o crescimento, o desenvolvimento das potencialidades boas que cada um traz dentro de si. Cada matrimónio é uma história de salvação, o que supõe partir duma fragilidade que, graças ao dom de Deus e a uma resposta criativa e generosa, pouco a pouco vai dando lugar a uma realidade cada vez mais sólida e preciosa. Talvez a maior missão dum homem e duma mulher no amor seja esta: a de se tornarem, um ao outro, mais homem e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro a moldar-se na sua própria identidade.
O acompanhamento deve encorajar os esposos a serem generosos na comunicação da vida. Neste sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae  e a Exortação apostólica Familiaris consortio. A opção da paternidade responsável pressupõe a formação da consciência que é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Quanto mais procurarem os esposos ouvir a Deus e os seus mandamentos (Rm 2,15) e se fizerem acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será intimamente livre de um arbítrio subjetivo e da acomodação às modas de comportamento no seu ambiente.
Alguns recursos
Os primeiros anos de matrimônio são um período vital e delicado, durante o qual os cônjuges crescem na consciência dos desafios e do significado do matrimónio. Tem grande importância a presença de casais de esposos com experiência. Os esposos que têm uma boa experiência podem oferecer os instrumentos práticos que lhes foram úteis: a programação dos momentos para estar juntos sem nada exigir, os tempos de recreação com os filhos, as várias maneiras de celebrar coisas importantes, os espaços de espiritualidade partilhada.
O desafio das crises
A história duma família está marcada por crises de todo o gênero, que são parte também da sua dramática beleza. É preciso ajudar a descobrir que uma crise superada não leva a uma relação menos intensa, mas a melhorar, sedimentar e maturar o vinho da união. Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem que permite incrementar a intensidade da vida comum ou, pelo menos, encontrar um novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se resignar de modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável deterioração, a uma mediocridade que se tem de suportar. Cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração.
Há crises comuns que costumam verificar-se em todos os matrimônios, como a crise ao início quando é preciso aprender a conciliar as diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise da chegada do filho, com os seus novos desafios emotivos; a crise de educar uma criança, que altera os hábitos do casal; a crise da adolescência do filho, que exige muitas energias, desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre si; a crise do "ninho vazio", que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no outro; a crise causada pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais presença, solicitude e decisões difíceis.
A estas crises, vêm juntar-se as crises pessoais com incidência no casal, relacionadas com dificuldades econômicas, laborais, afetivas, sociais e espirituais. Algumas famílias sucumbem quando os cônjuges se culpam mutuamente, mas a experiência mostra que, com uma ajuda adequada e com a ação de reconciliação da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais é superada de forma satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental na vida familiar.
Tornou-se frequente que, quando um cônjuge sente que não recebe o que deseja, ou não se realiza o que sonhava, isso lhe pareça ser suficiente para pôr fim ao matrimônio. Mas, assim não haverá matrimônio que dure. Nestas circunstâncias, alguns têm a maturidade necessária para voltar a escolher o outro como companheiro de estrada, para além dos limites da relação, e aceitam com realismo que não se possam satisfazer todos os sonhos acalentados. Evitam considerar-se os únicos mártires, apreciam as pequenas ou limitadas possibilidades que lhes oferece a vida em família e apostam em fortalecer o vínculo numa construção que exigirá tempo e esforço. No fundo, reconhecem que cada crise é como um novo “sim” que torna possível o amor renascer reforçado, transfigurado, amadurecido, iluminado. A partir duma crise, tem-se a coragem de buscar as raízes profundas do que está a suceder, de voltar a negociar os acordos fundamentais, de encontrar um novo equilíbrio e de percorrer juntos uma nova etapa.
Velhas feridas
É compreensível que, nas famílias, haja muitas dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a sua maneira de relacionar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua vida. As vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. Outras vezes ama-se com um amor da adolescência, caraterizado pelo confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.
Muitos terminam a sua infância sem nunca se terem sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reaparece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer um percurso de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges não funciona bem, convém assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria história. Cada um deve ser muito sincero consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que toda a culpa seja do outro, nunca é possível superar uma crise esperando que apenas o outro mude. É preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do conflito.
Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios
Nalguns casos, a consideração da própria dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite firme às pretensões excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma falta de respeito que se tornou crônica. É preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela violência, humilhação e a exploração, alienação e a indiferença. Mas deve ser considerado um remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas razoáveis.
É indispensável um discernimento particular para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os abandonados. Tem-se de acolher e valorizar sobretudo a angústia daqueles que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou então foram obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência. Não é fácil o perdão pela injustiça sofrida, mas constitui um caminho que a graça torna possível.
Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que não estão excomungadas nem são tratadas como tais, porque sempre integram a comunhão eclesial.
A Igreja não pode cessar de ser a voz dos mais frágeis: os filhos, que sofrem muitas vezes em silêncio. Hoje, não obstante a nossa sensibilidade aparentemente evoluída e todas as nossas análises psicológicas refinadas, pergunto-me se não nos entorpecemos também relativamente às feridas da alma das crianças. Sentimos nós o peso da montanha que esmaga a alma duma criança, nas famílias onde se maltrata e magoa, até quebrar o vínculo da fidelidade conjugal? Tais experiências não ajudam estas crianças a amadurecer para serem capazes de compromissos definitivos. Ajudar a curar as feridas dos pais e sustentá-los espiritualmente é bom também para os filhos, que precisam do rosto familiar da Igreja que os ampare nesta experiência traumática. O divórcio é um mal e é muito preocupante o aumento do número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais importante relativamente às famílias é reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo.
Algumas situações complexas
Os matrimônios com disparidade de culto constituem um lugar privilegiado de diálogo inter-religioso. Comportam algumas dificuldades especiais quer em relação à identidade cristã da família quer quanto à educação religiosa dos filhos. É necessário prestar uma atenção particular às pessoas que se unem em tais matrimônio, e não só no período anterior ao casamento. Enfrentam desafios peculiares os casais e as famílias, nos quais um dos cônjuges é católico e o outro não-crente. Em tais casos, é necessário testemunhar a capacidade que tem o Evangelho de mergulhar nestas situações para tornar possível a educação dos filhos na fé cristã.
No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, destacou-se quanto aos projetos de equiparação ao matrimônio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família.
As famílias monoparentais têm frequentemente origem a partir de mães ou pais biológicos que nunca quiseram integrar-se na vida familiar. Seja qual for a causa, o progenitor que vive com a criança deve encontrar apoio e conforto nas outras famílias que formam a comunidade cristã.
Quando a morte crava o seu aguilhão
Compreendo a angústia de quem perdeu uma pessoa muito amada, um cônjuge com quem se partilhou tantas coisas. O próprio Jesus Se comoveu e chorou no velório dum amigo (Jo 11, 33.35). E como não compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito, é como se o tempo parasse: abre-se um abismo que engole o passado e também o futuro. E às vezes chega-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas – compreendo-as – se chateiam com Deus. A viuvez é uma experiência particularmente difícil. Alguns, quando têm de viver esta experiência, mostram que sabem fazer convergir as suas energias para uma dedicação ainda maior aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de amor uma nova missão educativa. Aqueles que já não podem contar com a presença de familiares a quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-los com particular atenção e disponibilidade.
Consola-nos saber que não se verifica a destruição total dos que morrem, e a fé assegura-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte envenene a nossa vida, torne vãos os nossos afectos e nos faça cair no vazio mais escuro. A Bíblia fala de um Deus que nos criou por amor, e fez-nos duma maneira tal que a nossa vida não termina com a morte (Sab 3, 2-3). São Paulo fala-nos dum encontro com Cristo imediatamente depois da morte: tenho o desejo de partir e estar com Cristo (Flp 1, 23). Com Ele, espera-nos depois da morte aquilo que Deus preparou para aqueles que O amam (1Cor 2, 9). De forma muito bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: Se a certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade. Para os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma». Com efeito, «os nossos entes queridos não desapareceram nas trevas do nada: a esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e vigorosas de Deus.
Uma maneira de comunicarmos com os seres queridos que morreram é rezar por eles. Diz a Bíblia que rezar pelos mortos é santo e piedoso (2Mac 12, 44.45). Rezar por eles pode não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão em nosso favor. O Apocalipse apresenta os mártires a interceder pelos que sofrem injustiça na terra (cf. 6, 9-11), solidários com este mundo em caminho. Alguns Santos, antes de morrer, consolavam os seus entes queridos, prometendo-lhes que estariam perto ajudando-os. Santa Teresa de Lisieux sentia vontade de continuar, do Céu, a fazer bem. E São Domingos afirmava que seria mais útil, depois de morto, mais poderoso para obter graças.

Se aceitarmos a morte, podemos preparar-nos para ela. O caminho é crescer no amor para com aqueles que caminham conosco, até ao dia em que não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor (Ap 21, 4). Deste modo preparar-nos-emos também pera reencontrar os nossos entes queridos que morreram. Assim como Jesus entregou o filho que tinha morrido à sua mãe (Lc 7, 15), de forma semelhante procederá conosco. Não gastemos energias, detendo-nos anos e anos no passado. Quanto melhor vivermos nesta terra, tanto maior felicidade poderemos partilhar com os nossos entes queridos no céu. Quanto mais conseguirmos amadurecer e crescer, tanto mais poderemos levar-lhes coisas belas para o banquete celeste.
-- resumo do capítulo 6 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

23 de ago. de 2016

O Amor Fecundo

O amor sempre dá vida. Por isso, o amor conjugal não se esgota no interior do próprio casal. Os cônjuges, enquanto se doam entre si, doam para além de si mesmos a realidade do filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do ser pai e mãe.
Acolher uma nova vida

A família é o âmbito não só da geração, mas também do acolhimento da vida que chega como um presente de Deus. Cada nova vida permite-nos descobrir a dimensão mais gratuita do amor, que nunca cessa de nos surpreender. É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são amados antes de chegar. Isto mostra-nos o primado do amor de Deus que sempre toma a iniciativa, porque os filhos são amados antes de ter feito algo para o merecer. Com efeito, quando se trata de crianças que vêm ao mundo, nenhum sacrifício dos adultos será julgado demasiado oneroso ou grande, contanto que se evite que uma criança chegue a pensar que é um erro, que não vale nada e que está abandonada aos infortúnios da vida e à prepotência dos homens. O dom dum novo filho, que o Senhor confia ao pai e à mãe, tem início com o seu acolhimento, continua com a sua guarda ao longo da vida terrena e tem como destino final a alegria da vida eterna.
As famílias numerosas são uma alegria para a Igreja. Nelas, o amor manifesta a sua fecundidade generosa. Isto não implica esquecer uma sã advertência de São João Paulo II, quando explicava que a paternidade responsável não é procriação ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a faculdade que os cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e responsável, tendo em consideração tanto as realidades sociais e demográficas, como a sua própria situação e os seus legítimos desejos.
O amor na expectativa própria da gravidez
A gravidez é um período difícil, mas também um tempo maravilhoso. A mãe colabora com Deus, para que se verifique o milagre duma nova vida. Cada mulher participa do mistério da criação, que se renova na geração humana. Assim diz o Salmo: Senhor, formaste-me no seio de minha mãe (Sl 139/138, 13). Cada criança, que se forma dentro de sua mãe é um projeto eterno de Deus Pai e do seu amor eterno: Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei (Jr 1, 5). Cada criança está no coração de Deus desde sempre e, no momento em que é concebida, realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos quanto vale o embrião, desde que é concebido! É preciso contemplá-lo com este olhar amoroso do Pai, que vê para além de toda a aparência.
Hoje, com os progressos feitos pela ciência, é possível saber de antemão a cor que terá o cabelo da criança e as doenças que poderá ter no futuro, porque todas as caraterísticas daquela pessoa estão inscritas no seu código genético já no estado embrionário. Mas, conhecê-lo em plenitude, só consegue o Pai do Céu que o criou: o mais precioso, o mais importante só Ele conhece, pois é Ele que sabe quem é aquela criança, qual é a sua identidade mais profunda. A mãe, que o traz no ventre, precisa pedir luz a Deus para poder conhecer em profundidade o seu próprio filho e saber esperá-lo como ele é. A criança não é um complemento ou uma solução para uma aspiração pessoal, mas um ser humano, com um valor imenso, e não pode ser usado para benefício próprio. Por conseguinte, não é importante se esta nova vida te será útil ou não, se possui caraterísticas que te agradam ou não, se corresponde ou não aos teus projetos e sonhos. Porque os filhos são uma dádiva! Cada um é único e irrepetível. Um filho é amado porque é filho: não, porque é bonito ou porque é deste modo ou daquele, mas porque é filho! Não, porque pensa como eu, nem porque encarna as minhas aspirações. Um filho é um filho. 
A cada mulher grávida, quero pedir-lhe: Cuida da tua alegria, que nada te tire a alegria interior da maternidade. Não permitas que os medos, as preocupações, os comentários alheios ou os problemas apaguem esta felicidade de ser instrumento de Deus para trazer uma nova vida ao mundo. Ocupa-te daquilo que é preciso fazer ou preparar, mas sem obsessões, e louva como Maria: A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da sua serva (Lc 1, 46-48).
Amor de mãe e de pai
Recém-nascidas, as crianças começam a receber em dom, juntamente com o alimento e os cuidados, a confirmação das qualidades espirituais do amor. Assim, aprendem que a beleza do vínculo entre os seres humanos mostra a nossa alma, procura a nossa liberdade, aceita a diversidade do outro, reconhece-o e respeita-o como interlocutor. E isto é amor, que contém uma centelha do amor de Deus. Toda a criança tem direito a receber o amor de uma mãe e de um pai, ambos necessários para o seu amadurecimento íntegro e harmonioso. Não se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também do amor entre eles, captado como fonte da própria existência, como ninho acolhedor e como fundamento da família.
O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam muitas crianças e jovens, é mais profundo do que pensamos. Hoje reconhecemos como plenamente legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram estudar, trabalhar, desenvolver as suas capacidades e ter objetivos pessoais. Mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da presença materna, especialmente nos primeiros meses de vida. O enfraquecimento da presença materna, com as suas qualidades femininas, é um risco grave para a nossa terra. Aprecio o feminismo quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade. As suas capacidades especificamente femininas – em particular a maternidade – conferem-lhe também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma missão peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem de todos.
A mãe, que ampara o filho com a sua ternura e compaixão, ajuda a despertar nele a confiança, a experimentar que o mundo é um lugar bom que o acolhe, e isto permite desenvolver uma auto-estima que favorece a capacidade de intimidade e a empatia. Por sua vez, a figura do pai ajuda a perceber os limites da realidade, caraterizando-se mais pela orientação, pela saída para o mundo mais amplo e rico de desafios, pelo convite a esforçar-se e lutar. Um pai com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez combine no seu trato com a esposa o carinho e o acolhimento, é tão necessário como os cuidados maternos. Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o amadurecimento da criança.
Deus coloca o pai na família, para que, com as caraterísticas preciosas da sua masculinidade, esteja próximo da esposa, para compartilhar tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja próximo dos filhos no seu crescimento: quando brincam e quando se aplicam, quando estão descontraídos e quando se sentem angustiados, quando se exprimem e quando permanecem calados, quando ousam e quando têm medo, quando dão um passo errado e quando voltam a encontrar o caminho; pai presente, sempre. Estar presente não significa ser controlador, porque os pais demasiado controladores aniquilam os filhos.
Ser filho
Jesus lembrava aos fariseus que o abandono dos pais é contrário à Lei de Deus (Mc 7, 8-13). Por isso, o quarto mandamento pede aos filhos que honrem o pai e a mãe (Ex 20, 12). Este mandamento vem logo após aqueles que dizem respeito ao próprio Deus. Com efeito, contém algo de sagrado, algo de divino, algo que está na raiz de todos os outros tipos de respeito entre os homens. E, na formulação bíblica do quarto mandamento, acrescenta-se: “para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá”.
Mas há também a outra face da moeda: O homem deixará o pai e a mãe (Gn 2, 24), diz a Palavra de Deus. Às vezes, isto não é cumprido, nunca se chegando a assumir o matrimônio, porque falta esta renúncia e esta dedicação. Os pais não devem ser abandonados nem transcurados, mas, para unir-se em matrimônio, é preciso deixá-los, de modo que o novo lar seja a morada, a proteção, a plataforma e o projeto, e seja possível tornar-se verdadeiramente uma só carne (Gn 2, 24).
Ser irmão
A relação entre os irmãos aprofunda-se com o passar do tempo, e o laço de fraternidade que se forma na família entre os filhos, quando se verifica num clima de educação para a abertura aos outros, é uma grande escola de liberdade e de paz. Em família, entre irmãos, aprendemos a convivência humana, talvez nem sempre estejamos conscientes disto, mas é precisamente a família que introduz a fraternidade no mundo. A partir desta primeira experiência de fraternidade, alimentada pelos afetos e pela educação familiar, o estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a sociedade inteira.
Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de cuidar uns dos outros, de ajudar e ser ajudado. Faz falta reconhecer que ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência forte, inestimável, insubstituível, mas é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se como irmãos. Nalguns países, existe uma forte tendência para ter apenas um filho, pelo que a experiência de ser irmão começa a ser rara. Nos casos em que não se pôde ter mais de um filho, é preciso encontrar formas de a criança não crescer sozinha ou isolada.
Os idosos
Não me rejeites no tempo da velhice; não me abandones, quando já não tiver forças (Sl 71/70, 9). Assim como Deus nos convida a ser seus instrumentos para escutar a súplica dos pobres, assim também espera que ouçamos os idosos. A Igreja não pode conformar-se com uma mentalidade de impaciência, e muito menos de indiferença e desprezo, em relação à velhice. Devemos despertar o sentido coletivo de gratidão, apreço, hospitalidade, que faça o idoso sentir-se parte viva da sua comunidade. Os idosos são homens e mulheres, pais e mães que, antes de nós, percorreram o nosso próprio caminho, estiveram na nossa mesma casa, combateram a nossa mesma batalha diária por uma vida digna.
São João Paulo II convidou-nos a prestar atenção ao lugar do idoso na família, porque há culturas que, especialmente depois dum desenvolvimento industrial e urbanístico desordenado, forçaram, e continuam a forçar, os idosos a situações inaceitáveis de marginalizaçã. Os idosos ajudam a perceber a continuidade das gerações, com o carisma de lançar uma ponte entre elas. Muitas vezes são os avós que asseguram a transmissão dos grandes valores aos seus netos, e muitas pessoas podem constatar que devem a sua iniciação na vida cristã precisamente aos avós». As suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a reconhecer que a história não começa com elas, que são herdeiras dum longo caminho e que é necessário respeitar o fundamento que as precede. Quem quebra os laços com a história terá dificuldade em tecer relações estáveis e reconhecer que não é o dono da realidade.
A falta de memória histórica é um defeito grave da nossa sociedade. É a mentalidade imatura do “já está ultrapassado”. Conhecer e ser capaz de tomar posição perante os acontecimentos passados é a única possibilidade de construir um futuro que tenha sentido. Não se pode educar sem memória: Recordai os dias passados (Heb 10, 32). As histórias dos idosos fazem muito bem às crianças e aos jovens, porque os ligam à história vivida tanto pela família como pela vizinhança e o país. Uma família que não respeita nem cuida dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma família desintegrada; mas uma família que recorda é uma família com futuro. Por isso, numa civilização em que não há espaço para os idosos ou onde eles são descartados porque criam problemas, tal sociedade traz em si o vírus da morte, porque se separa das próprias raízes.
Fecundidade alargada
Àqueles que não podem ter filhos, lembramos que o matrimônio não foi instituído só em ordem à procriação. E por isso, mesmo que faltem os filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimônio conserva o seu valor e indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida.
A adoção é um caminho para realizar a maternidade e a paternidade de uma forma muito generosa, e desejo encorajar aqueles que não podem ter filhos a alargar e abrir o seu amor conjugal para receber quem está privado de um ambiente familiar adequado. Nunca se arrependerão de ter sido generosos. Adotar é o ato de amor que oferece uma família a quem não a tem. Aqueles que assumem o desafio de adotar e acolhem uma pessoa de maneira incondicional e gratuita, tornam-se mediação do amor de Deus que diz: Ainda que a tua mãe chegasse a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria (Is 49, 15).
Convém lembrar-nos também de que a procriação e a adoção não são as únicas maneiras de viver a fecundidade do amor. As famílias cristãs não esqueçam que a fé não nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele. A cada um de nós cabe um papel especial na preparação da vinda do Reino de Deus. A família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando proteger-se da sociedade. 
Nenhuma família pode ser fecunda, se se concebe como demasiado diferente ou separada. Para evitar este risco, lembremo-nos que a família de Jesus, cheia de graça e sabedoria, não era vista como uma família estranha, distante da gente. Por isso as pessoas sentiram dificuldade em reconhecer a sabedoria de Jesus e diziam: De onde é que isto lhe vem? Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria? (Mc 6, 2.3). Não é Ele o filho do carpinteiro? (Mt 13, 55). Isto confirma que era uma família simples, próxima de todos, integrada normalmente na povoação. E Jesus também não cresceu numa relação fechada e exclusiva com Maria e José, mas de bom grado movia-se na família alargada, onde encontrava os parentes e os amigos. Isto explica por que, quando regressavam de Jerusalém, os seus pais admitissem a possibilidade de o Menino de doze anos vagar pela caravana um dia inteiro, ouvindo as histórias e partilhando as preocupações de todos: Pensando que Ele Se encontrava na caravana, fizeram um dia de viagem (Lc 2, 44).
A vida na família em sentido amplo
O núcleo familiar restrito não deveria isolar-se da família alargada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os vizinhos. Nesta família ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda, ou pelo menos de companhia e gestos de carinho, ou pode haver grandes sofrimentos que precisam de conforto. Às vezes o individualismo destes tempos leva a fechar-se na segurança dum pequeno ninho e a sentir os outros como um incómodo. Todavia este isolamento não proporciona mais paz e felicidade, antes fecha o coração da família e priva-a do horizonte amplo da existência.
Esta família alargada deveria acolher, com tanto amor, as mães solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem continuar a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que requerem muito carinho e proximidade, os jovens que lutam contra uma dependência, as pessoas solteiras, separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que não recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no seio dela mesmo os mais desastrados nos comportamentos da sua vida.

Por fim, não se pode esquecer que, nesta família alargada, estão também o sogro, a sogra e todos os parentes do cônjuge. Uma delicadeza própria do amor é evitar vê-los como concorrentes, como pessoas perigosas, como invasores. A união conjugal exige que se respeite as suas tradições e costumes, se procure compreender a sua linguagem, evitar maledicências, cuidar deles e integrá-los no próprio coração, embora se deva preservar a legítima autonomia e a intimidade do casal. Estas atitudes são também uma excelente maneira de exprimir a generosidade da dedicação amorosa ao próprio cônjuge.
-- resumo de parte do capítulo 5 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

20 de ago. de 2016

O amor conjugal

O amor conjugal é o amor que une os esposos, santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimônio. É uma união afetiva, espiritual e em comunhão com Deus, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem. Este amor forte, fruto do Espírito Santo, é reflexo da aliança indestrutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entrega até ao fim na cruz. O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem como Cristo nos amou. 
O matrimônio é o ícone do amor de Deus por nós. Com efeito, também Deus é comunhão: as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo – vivem desde sempre e para sempre em unidade perfeita. É precisamente nisto que consiste o mistério do matrimônio: dos dois esposos, Deus faz uma só existência. Isto tem consequências muito concretas na vida do dia-a-dia, porque, em virtude do sacramento, os esposos são investidos numa autêntica missão, para que possam tornar visível, a partir das realidades simples e ordinárias, o amor com que Cristo ama a sua Igreja, continuando a dar a vida por ela.

A vida toda, tudo em comum
O casamento é uma união que busca do bem do outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhança entre os dois que se vai construindo com a vida partilhada. O matrimônio acrescenta a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no projeto estável de partilhar e construir juntos toda a existência. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo. É uma aliança diante de Deus, que exige fidelidade: O Senhor constituiu-Se testemunha entre ti e a esposa da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a tua companheira e aquela com quem fizeste aliança. Ninguém atraiçoe a mulher da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio (Ml 2, 14.15-16).
Um amor frágil cede à cultura do provisório, que impede um processo constante de crescimento. Mas prometer um amor que dure para sempre é possível, quando se descobre um desígnio maior que os próprios projetos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada. Para que este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo, requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto Belarmino, “o fato de um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel, de modo que não possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo quando se perdeu a esperança da prole, isto não pode acontecer sem um grande mistério”.
Além disso, o matrimônio inclui a paixão, mas sempre orientada para uma união cada vez mais firme e intensa. Com efeito, não foi instituído só em ordem à procriação, mas para que o amor mútuo se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade. Esta união peculiar entre um homem e uma mulher adquire um caráter totalizante, que só se verifica na união conjugal. E precisamente por ser totalizante, esta união também é exclusiva, fiel e aberta à geração. Partilha-se tudo, incluindo a sexualidade, sempre no mútuo respeito.
Alegria e beleza
No matrimônio convém cuidar da alegria do amor. Quando a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite encontrar outros tipos de satisfações. Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de desfrutar e permite-nos encontrar prazer em realidades variadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se apaga. A alegria matrimonial implica aceitar que o matrimônio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres.
A beleza – o “valor sublime” do outro, que não coincide com os seus atrativos físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o caráter sagrado da pessoa. Na sociedade de consumo, o sentido estético empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura é uma manifestação deste amor que se liberta do desejo da posse egoísta. Isto permite-me procurar o seu bem, mesmo quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável, agressivo ou chato.
O olhar que aprecia tem uma enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz dano. Muitas feridas e crises têm a sua origem no momento em que deixamos de nos contemplar. Isto é o que exprimem algumas queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias: “O meu marido não me olha, para ele parece que sou invisível”. “Por favor, olha para mim, quando te falo”. “A minha mulher já não me olha, agora só tem olhos para os filhos”. Em minha casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é como se não existisse»”. O amor abre os olhos e permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.
Por outro lado, a alegria renova-se no sofrimento. Depois de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas como quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes custou um grande esforço compartilhado.
Casar-se por amor
Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado, quando o amor assume a modalidade da instituição matrimonial. A união encontra nesta instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu crescimento real e concreto. Casar-se é uma maneira de exprimir que realmente se abandonou o ninho materno, para tecer outros laços fortes e assumir uma nova responsabilidade perante outra pessoa. Por isso, o matrimônio supera qualquer moda passageira e persiste. A sua essência está radicada na própria natureza da pessoa humana e do seu caráter social. Implica uma série de obrigações; mas estas brotam do próprio amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de arriscar o futuro.
Semelhante opção pelo matrimônio expressa a decisão real e efetiva de transformar dois caminhos num só, aconteça o que acontecer e contra todo e qualquer desafio. Pela seriedade de que se reveste este compromisso público de amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão, também não pode ser adiado indefinidamente. Comprometer-se de forma exclusiva e definitiva com outro sempre encerra uma parcela de risco e de aposta ousada. A recusa de assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira, mesquinha; não consegue reconhecer os direitos do outro e não chega jamais a apresentá-lo à sociedade como digno de ser amado incondicionalmente.
Amor que se manifesta e cresce
O amor de amizade unifica todos os aspectos da vida matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os gestos que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem mesquinhez, cheios de palavras generosas. Na família é necessário usar três palavras: com licença, obrigado, desculpa. Quando numa família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não somos egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”, e quando na família nos damos conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe paz e alegria.
Não fazem bem certas fantasias sobre um amor idílico e perfeito, privando-o assim de todo o estímulo para crescer. Não existem as famílias perfeitas que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe. Nelas, não passam os anos, não existe a doença, a tribulação nem a morte. (...) A publicidade consumista mostra uma realidade ilusória que não tem nada a ver com a realidade que devem enfrentar no dia-a-dia os pais e as mães de família. É mais saudável aceitar com realismo os limites, os desafios e as imperfeições, e dar ouvidos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a solidez da união, suceda o que suceder.
O diálogo
O diálogo é uma modalidade privilegiada e indispensável para viver, exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e familiar. Reservar tempo, tempo de qualidade, que permita escutar, com paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado tudo o que precisava comunicar. Em vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é preciso assegurar-se de ter escutado tudo o que o outro tem necessidade de dizer. Isto implica fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no coração e na mente: despojar-se das pressas, pôr de lado as próprias necessidades e urgências, dar espaço. Muitas vezes um dos cônjuges não precisa duma solução para os seus problemas, mas de ser ouvido.
É necessário desenvolver o hábito de dar real importância ao outro. Trata-se de dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de existir, pensar de maneira autónoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar aquilo que diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir o meu ponto de vista. Para isso, é preciso colocar-se no seu lugar e interpretar a profundidade do seu coração, individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para aprofundar o diálogo.
Deve-se ter amplitude mental, para não se encerrar obsessivamente numas poucas ideias, e flexibilidade para poder modificar ou completar as próprias opiniões. É possível que, do meu pensamento e do pensamento do outro, possa surgir uma nova síntese que nos enriqueça a ambos. A unidade, a que temos de aspirar, não é uniformidade, mas uma “unidade na diversidade” ou uma “diversidade reconciliada”.
Por último, reconheçamos que, para ser profícuo o diálogo, é preciso ter algo para se dizer; e isto requer uma riqueza interior que se alimenta com a leitura, a reflexão pessoal, a oração e a abertura à sociedade. Caso contrário, a conversa torna-se aborrecida e inconsistente. Quando cada um dos cônjuges não cultiva o próprio espírito e não há uma variedade de relações com outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâmica e o diálogo fica empobrecido.
O mundo das emoções
Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos chamavam-lhes paixões) ocupam um lugar importante no matrimônio. É próprio de todo o ser vivo tender para outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre de sinais afetivos: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou receio. O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões.
Experimentar uma emoção não é, em si mesmo, algo moralmente bom nem mau. O que pode ser bom ou mau é o ato que a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois, se os sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más ações, o mal está na decisão de os alimentar e nos atos maus que se seguem. Na mesma linha, sentir atração por alguém não é, por si, um bem. Se esta atração me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Neste caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um egocentrismo que torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família.
O amor matrimonial leva a procurar que toda a vida emotiva se torne um bem para a família e esteja ao serviço da vida em comum. A maturidade chega a uma família quando a vida emotiva dos seus membros se transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e valores, mas segue a sua liberdade, brota dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais harmoniosa para bem de todos.
Deus ama a alegria dos seus filhos
Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o desejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama a alegria do ser humano, pois Ele criou tudo para nosso usufruto (1 Tim 6, 17). Deixemos brotar a alegria à vista da sua ternura, quando nos propõe: Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente (Eclo 14, 11.14). Também um casal de esposos corresponde à vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: No dia da felicidade, sê alegre (Eclo 7, 14). A questão é ter a liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas de expressão nos sucessivos momentos da vida, de acordo com as necessidades do amor mútuo.
A dimensão erótica do amor
Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas. Quando se cultiva e evita o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se produza o depauperamento de um valor autêntico. A sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável. Assim, o coração humano torna-se participante, por assim dizer, de outra espontaneidade. Neste contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da sexualidade. O erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.
Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para o bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro, torna-se uma afirmação amorosa plena e cristalina, mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, sente-se que a existência humana foi um sucesso.
Violência e manipulação
Não podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de patologias, de modo que se torna cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos. Neste tempo, também a sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito venenoso do usa e joga fora. Com frequência, o corpo do outro é manipulado como uma coisa que se conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza quando perde a atração.
Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimônio, a sexualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos reafirmar, claramente, que um ato conjugal imposto ao próprio cônjuge, sem consideração pelas suas condições e pelos seus desejos legítimos, não é um verdadeiro ato de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de reta ordem moral, nas relações entre os esposos. Por isso, São Paulo exortava: Que ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite do seu irmão (1 Ts 4, 6). E não obstante ele escrevesse numa época em que dominava uma cultura patriarcal, na qual a mulher era considerada um ser completamente subordinado ao homem, todavia ensinou que a sexualidade deve ser uma questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar as relações sexuais por algum tempo, mas de mútuo acordo (1 Cor 7, 5).
É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de submissão sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação inadequada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que as mulheres [sejam submissas] aos seus maridos (Ef 5, 22). Retomemos São João Paulo II: “O amor exclui todo o genero de submissão, pelo qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido”. Por isso, se diz que devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu próprio corpo (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíblico convida: Submetei-vos uns aos outros (Ef 5, 21).
Lembremo-nos de que um amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual. Bento XVI era claro a este respeito: “Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade”.
Matrimónio e virgindade
A virgindade é uma forma de amor. Como sinal, recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao serviço da evangelização (cf. 1Cor 7, 32) e é um reflexo da plenitude do Céu, onde nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos (Mt 22, 30). São Paulo recomendava a virgindade, porque esperava para breve o regresso de Jesus Cristo e queria que todos se concentrassem apenas na evangelização: O tempo é breve (1Cor 7, 29). Contudo deixa claro que era uma opinião pessoal e um desejo dele (cf. 1Cor 7, 6-8), não uma exigência de Cristo: Não tenho nenhum preceito do Senhor (1Cor 7, 25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: Cada um recebe de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra (1Cor 7, 7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos não oferecem motivo para sustentar nem a “inferioridade” do matrimônio, nem a “superioridade” da virgindade ou do celibato devido à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo, Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande como «a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a humana».[167]
A transformação do amor

O alongamento da vida provocou algo que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca escolha. É o companheiro no caminho da vida, com quem se pode enfrentar as dificuldades e gozar das coisas lindas. Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade. O amor, que nos prometemos, supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora possa incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração que envolve toda a existência. 
-- resumo de parte do capítulo 4 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

17 de ago. de 2016

Quem perseverar até o fim, esse será salvo

Adão e Eva expulsos do Paraíso,
Capela Brancacci.
Qualquer angústia ou tribulação que sofremos é para nós aviso e também correção. As Sagradas Escrituras não nos prometem paz, segurança e repouso; o Evangelho não esconde as adversidades, os apertos, os escândalos; mas quem perseverar até o fim, esse será salvo (Mt 10,22). Que de bom teve jamais esta vida desde o primeiro homem, desde que mereceu a morte e recebeu a maldição, maldição de que Cristo Senhor nos libertou?

Não há então, irmãos, por que murmurar, como alguns deles murmuraram, como disse o Apóstolo, e pereceram pelas serpentes (1Cor 10,10). Que tormento novo sofre hoje o gênero humano que os antepassados já não tenham sofrido? ou quando saberemos nós que sofremos o mesmo que eles já sofreram? No entanto, encontras homens a murmurar contra seu tempo como se o tempo de nossos pais tivesse sido bom. Se pudessem retroceder até os tempos de seus avós, será que não murmurariam? Julgas bons os tempos passados porque já não são os teus, por isto são bons.

Se já foste liberto da maldição, se já crês no Filho de Deus, se já estás impregnado ou instruído das Sagradas Escrituras, admiro-me de que consideres bons os tempos de Adão. Esqueces que teus pais traziam consigo o mesmo Adão? Aquele Adão a quem foi dito: No suor de teu rosto comerás teu pão e lavrarás a terra donde foste tirado; germinarão para ti espinhos e abrolhos (cf. Gn 3,19 e 18). Mereceu isto, aceitou-o, como vindo do justo juízo de Deus. Por que então pensas que os tempos antigos foram melhores que os teus? Desde aquele Adão até o Adão de hoje, trabalho e suor, espinhos e cardos. Caiu sobre nós o dilúvio? Vieram os difíceis tempos de fome e de guerra,que foram escritos para não murmurarmos agora contra Deus?

Que tempos aqueles! Só de ouvir, só de ler, não nos horrorizamos todos? Mais razões temos para nos felicitar que para murmurar contra o nosso tempo.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

4 de ago. de 2016

A mais bela profissão do homem é rezar e amar

Prestai atenção, meus filhinhos: o tesouro do cristão não está na terra, mas nos céus. Por isso, o nosso pensamento deve estar voltado para onde está o nosso tesouro. Esta é a mais bela profissão do homem: rezar e amar. Se rezais e amais, eis aí a felicidade do homem sobre a terra.

A oração nada mais é do que a união com Deus. Quando alguém tem o coração puro e unido a Deus, sente em si mesmo uma suavidade e doçura que inebria, e uma luz maravilhosa que o envolve. Nesta íntima união, Deus e a alma são como dois pedaços de cera, fundidos num só, de tal modo que ninguém pode mais separar. Como é bela esta união de Deus com sua pequenina criatura! É uma felicidade impossível de se compreender. Nós nos havíamos tornado indignos de rezar. Deus, porém, na sua bondade, permitiu-nos falar com ele. Nossa oração é o incenso que mais lhe agrada.

Meus filhinhos, o vosso coração é por demais pequeno, mas a oração o dilata e torna capaz de amar a Deus. A oração faz saborear antecipadamente a felicidade do céu; é como o mel que se derrama sobre a alma e faz com que tudo nos seja doce. Na oração bem feita, os sofrimentos desaparecem, como a neve que se derrete sob os raios do sol.

Outro benefício que nos é dado pela oração: o tempo passa tão depressa e com tanta satisfação para o homem, que nem se percebe sua duração. Escutai: certa vez, quando eu era pároco em Bresse, tive que percorrer grandes distâncias para substituir quase todos os meus colegas que estavam doentes; nessas intermináveis caminhadas, rezava ao bom Senhor e – podeis crer! – o tempo não me parecia longo.

Há pessoas que mergulham profundamente na oração, como peixes na água, porque estão inteiramente entregues a Deus. Não há divisões em seus corações. Ó como eu amo estas almas generosas! São Francisco de Assis e Santa Clara viam nosso Senhor e conversavam com ele do mesmo modo como nós conversamos uns com os outros.

Nós, ao invés, quantas vezes entramos na Igreja sem saber o que iremos pedir. E, no entanto, sempre que vamos ter com alguém, sabemos perfeitamente o motivo por que vamos. Há até mesmo pessoas que parecem falar com Deus deste modo: “Só tenho duas palavras para vos dizer e logo ficar livre de vós.”. Muitas vezes penso nisto: quando vamos adorar a Deus, podemos alcançar tudo o que desejamos, se o pedirmos com fé viva e coração puro.

-- Do Catecismo de São João Maria Vianney, presbítero (século XIX)

1 de ago. de 2016

Hino à Caridade

 No chamado hino à caridade escrito por São Paulo, vemos algumas características do amor verdadeiro:
O amor é paciente,
o amor é serviçal;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta (1Cor 13, 4-7).
Paciência
A primeira palavra usada é macrothymei. A sua tradução não é simplesmente “suporta tudo”, porque esta ideia é expressa no final do versículo 7. O sentido encontra-se no Antigo Testamento onde se diz que Deus é "lento para a ira" (Nm 14, 18; cf. Ex 34, 6). Uma pessoa mostra-se paciente, quando não se deixa levar pelos impulsos interiores e evita agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da Aliança, que convida a imitá-Lo também na vida familiar.
Ter paciência não é deixar que nos maltratem permanentemente, nem tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como objetos. Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem conviver, anti-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a família tornar-se-á um campo de batalha. Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: “Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade” (Ef 4, 31). Esta paciência reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem direito a viver comigo nesta terra.
O amor beneficia e ajuda outros

Atitude de serviço
Vem depois a palavra “jrestéuetai”, que deriva de “jrestós” - pessoa boa, que mostra a sua bondade nas ações. Paulo pretende esclarecer que a paciência não é uma postura totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada por uma atividade, indica que o amor beneficia e promove os outros. Por isso, traduz-se como “serviçal”.
No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que o amor não é apenas um sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o verbo “amar” tem em hebraico: “fazer o bem”. Como dizia Santo Inácio de Loyola, “o amor deve ser colocado mais nas obras do que nas palavras”.
Curando a inveja
Em seguida rejeita-se uma atitude expressa como “zeloi” (ciúme ou inveja). Significa que, no amor não há lugar para sentir desgosto pelo bem do outro (cf. At 7, 9;17, 5). A inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demonstrando que não nos interessa a felicidade dos outros, porque estamos concentrados exclusivamente no nosso bem-estar. O verdadeiro amor aprecia os sucessos alheios, não os sente como uma ameaça, aceita que cada um tenha dons distintos e caminhos diferentes na vida.
Em última análise, trata-se de cumprir o que pedem os dois últimos mandamentos da Lei de Deus: “Não desejarás a casa do teu próximo. Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro, e tudo o que é do teu próximo” (Ex 20, 17). O amor leva-nos a uma apreciação sincera de cada ser humano, reconhecendo o seu direito à felicidade. Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que nos dá tudo “para nosso usufruto” (1Tim 6, 17), e consequentemente aceito, no meu íntimo, que ela possa usufruir dum momento bom.
Sem ser arrogante nem se orgulhar
Segue-se o termo “perpereuetai”, que indica vanglória, desejo de se mostrar superior para impressionar os outros com atitude pedante e um pouco agressiva. Quem ama não só evita falar muito de si mesmo, mas, porque está centrado nos outros, sabe manter-se no seu lugar sem pretender estar no centro. A palavra seguinte – physioutai– é muito semelhante, indicando que o amor não é arrogante. Alguns julgam-se grandes, porque sabem mais do que os outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na realidade, o que nos faz grandes é o amor que compreende, cuida, integra, está atento aos fracos.
A atitude de humildade aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque, para poder compreender, desculpar ou servir os outros de coração, é indispensável curar o orgulho e cultivar a humildade. Jesus lembrava aos seus discípulos que, no mundo do poder, cada um procura dominar o outro, e acrescentava: “não seja assim entre vós” (Mt 20, 26). A lógica do amor cristão não é a de quem se considera superior aos outros e precisa de fazer-lhes sentir o seu poder, mas a de “quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo” (Mt 20, 27).
Amabilidade
Amar é também tornar-se amável, e nisto está o sentido do termo “asjemonéi”. Significa que o amor não age rudemente, não atua de forma inconveniente, não se mostra duro no trato. Os seus modos, as suas palavras, os seus gestos são agradáveis; não são ásperos, nem rígidos. Detesta fazer sofrer os outros. Ser amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das exigências irrenunciáveis do amor, por isso todo o ser humano está obrigado a ser afável com aqueles que o rodeiam.
A fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o outro, requer-se um olhar amável. Isto não é possível se põe em evidência os defeitos e erros alheios. Uma pessoa anti-social julga que os outros existem para satisfazer as suas necessidades e, quando o fazem, cumprem apenas o seu dever. A pessoa que ama é capaz de dizer palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam. Vejamos, por exemplo, algumas palavras que Jesus dizia às pessoas: “Filho, tem confiança!” (Mt 9, 2). “Grande é a tua fé!” (Mt 15, 28). “Levanta-te!” (Mc 5, 41). “Vai em paz” (Lc 7, 50). “Não temais!” (Mt 14, 27). Não são palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam. Na família, é preciso aprender esta linguagem amável de Jesus.
Desprendimento
Como se diz muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro amar-se a si mesmo. Todavia este hino à caridade afirma que o amor “não procura o seu próprio interesse”. Perante uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura, deve-se evitar de dar prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom de si aos outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se pode entender como condição psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de se amar a si mesma sente dificuldade em amar os outros: “Para quem será bom aquele que é mau para si mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo” (Ecle 14, 5-6).
Mas o próprio Tomás de Aquino explicou “ser mais próprio da caridade querer amar do que querer ser amado”, e que de fato “as mães, que são as que mais amam, procuram mais amar do que ser amadas”. Mas será possível um desprendimento assim, que permite dar gratuitamente e dar até ao fim? Sem dúvida, porque é o que pede o Evangelho: “Recebestes de graça, dai de graça” (Mt 10, 8).
Sem violência interior
Se a primeira expressão do hino nos convidava à paciência, agora aparece outra palavra – “paroxýnetai” – que diz respeito a uma reação interior de indignação provocada por algo exterior. Trata-se de uma violência interna, uma irritação que nos põe à defesa perante os outros, como se fossem inimigos a evitar. Alimentar esta agressividade íntima, serve apenas para nos adoentar, acabando por nos isolar.
O Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria vista (Mt 7, 5), e nós, cristãos, não podemos ignorar o convite constante da Palavra de Deus para não se alimentar a ira: “Não te deixes vencer pelo mal” (Rm 12, 21); “não nos cansemos de fazer o bem” (Gal 6, 9). Por isso, nunca se deve terminar o dia sem fazer as pazes na família. E como devo fazer as pazes? Ajoelhar-me? Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um pequeno gesto, uma coisa de nada. É suficiente uma carícia, sem palavras. Mas nunca permitais que o dia em família termine sem fazer as pazes.
Perdão
Se permitirmos a entrada dum mau sentimento no nosso íntimo, damos lugar ao ressentimento que se aninha no coração. O contrário disto é o perdão fundado numa atitude positiva que procura compreender a fraqueza alheia e encontrar desculpas para a outra pessoa, como Jesus que diz: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). 
Entretanto a tendência costuma ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais maldades, supor todo o tipo de más intenções, e assim o ressentimento vai crescendo e cria raízes. Quando estivermos ofendidos ou desiludidos, é possível e desejável o perdão; mas ninguém diz que seja fácil. Exige, de fato, de todos e de cada um, pronta e generosa disponibilidade à compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação.
Hoje sabemos que, para se poder perdoar, precisamos passar pela experiência libertadora de nos compreendermos e perdoarmos a nós mesmos. Faz falta rezar com a própria história, aceitar-se a si mesmo, saber conviver com as próprias limitações e inclusive perdoar-se, para poder ter esta mesma atitude com os outros. Mas isto pressupõe a experiência de ser perdoados por Deus, justificados gratuitamente e não pelos nossos méritos. Se aceitamos que o amor de Deus é incondicional, que o carinho do Pai não se deve comprar nem pagar, então poderemos amar sem limites, perdoar aos outros, ainda que tenham sido injustos para conosco.

Alegrar-se com os outros
Alegra-se com o bem do outro quando se reconhece a sua dignidade, quando se aprecia mais suas capacidades e as suas boas obras. Isto é impossível para quem sente a necessidade de estar sempre a comparar-se ou a competir, inclusive com o próprio cônjuge, até ao ponto de se alegrar secretamente com os seus fracassos. Quando uma pessoa que ama pode fazer algo de bom pelo outro, ou quando vê que a vida está a correr bem ao outro, vive isso com alegria e, assim, dá glória a Deus, porque “Deus ama quem dá com alegria” (2Cor 9, 7), nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra com a felicidade do outro. Se não alimentamos a nossa capacidade de rejubilar como bem do outro, concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades, condenamo-nos a viver com pouca alegria, porque – como disse Jesus – “a felicidade está mais em dar do que em receber” (At 20, 35).
Tudo desculpa
O texto é completado com quatro expressões que falam duma totalidade: “tudo”. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
Em primeiro lugar, diz-se que tudo desculpa. Embora isto vá contra o uso que habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos: “Não faleis mal uns dos outros, irmãos” (Tg 4, 11). Se é verdade que “com a língua amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus” (Tg 3, 9), o amor faz o contrário, defendendo a imagem dos outros e com uma delicadeza tal que leva mesmo a preservar a boa fama dos inimigos. 
Os esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do outro, procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas e erros. Não é uma ingenuidade de quem pretende não ver as dificuldades e os pontos fracos do outro, mas a perspectiva ampla de quem coloca estas fraquezas e erros no seu contexto; lembra-se de que estes defeitos constituem apenas uma parte, não são a totalidade do ser do outro: um fato desagradável no relacionamento não é a totalidade desse relacionamento. Assim é possível aceitar, com simplicidade, que todos somos uma complexa combinação de luzes e sombras. O outro não é apenas aquilo que me incomoda; é muito mais do que isso. O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado.
Confia
O amor tudo crê. Pelo contexto, não se deve entender esta fé em sentido teológico, mas no sentido comum de confiança. Não se trata apenas de não suspeitar que o outro esteja mentindo ou enganando; esta confiança básica reconhece a luz acesa por Deus que se esconde por detrás da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as cinzas. É precisamente esta confiança que torna possível uma relação em liberdade. Não é necessário controlar o outro, seguir minuciosamente os seus passos, para evitar que fuja dos meus braços. O amor confia, deixa em liberdade, renuncia a controlar tudo, a possuir, a dominar. Ao mesmo tempo torna possível a sinceridade e a transparência, porque uma pessoa, quando sabe que os outros confiam nela e apreciam a bondade do seu ser, mostra-se como é, sem dissimulações. Concluindo, uma família, onde reina uma confiança sólida, carinhosa e, suceda o que suceder, sempre se volta a confiar, permite o florescimento da verdadeira identidade dos seus membros, fazendo com que se rejeite espontaneamente o engano, a falsidade e a mentira.
Espera
Panta elpízei”: o amor não desespera do futuro. Ligado à palavra anterior, indica a esperança de quem sabe que o outro pode mudar; sempre espera que seja possível um amadurecimento, um inesperado surto de beleza, que as potencialidades mais recônditas do seu ser germinem algum dia. Não significa que, nesta vida, tudo vai mudar; implica aceitar que nem tudo aconteça como se deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas tortas e saiba tirar algum bem dos males que não se conseguem vencer nesta terra.

Tudo suporta
Panta hypoménei” significa que suporta, com espírito positivo, todas as contrariedades. É manter-se firme no meio dum ambiente hostil. Não consiste apenas em tolerar algumas coisas desagradáveis, mas é algo mais amplo: uma resistência dinâmica e constante, capaz de superar qualquer desafio. É amor que apesar de tudo não desiste, mesmo que todo o contexto convide a outra coisa. Isto lembra-me Martin Luther King, quando reafirmava a opção pelo amor fraterno, mesmo no meio das piores perseguições e humilhações: “A pessoa que mais te odeia, tem algo de bom nela; mesmo a nação que mais odeia, tem algo de bom nela; mesmo a raça que mais odeia, tem algo de bom nela. Não importa o que faça, lá vês a imagem de Deus. Há um elemento de bondade de que nunca poderás livrar-te. Ódio por ódio só intensifica a existência do ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante… obviamente continua-se até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que pode quebrar a cadeia do ódio, a cadeia do mal. (...) Alguém deve ter bastante fé e moralidade para a quebrar e injetar dentro da própria estrutura do universo o elemento forte e poderoso do amor”.
Na vida familiar, é preciso cultivar esta força do amor, que permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa dominar pelo ressentimento, o desprezo das pessoas, o desejo de se lamentar ou vingar de alguma coisa. O ideal cristão, nomeadamente na família, é amor que apesar de tudo não desiste.  
-- resumo de parte do capítulo 4 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

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