No chamado hino à caridade escrito por São Paulo,
vemos algumas características do amor verdadeiro:
O amor é paciente,
o amor é serviçal;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta (1Cor 13, 4-7).
o amor é serviçal;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta (1Cor 13, 4-7).
Paciência
A primeira palavra usada é macrothymei. A sua tradução não
é simplesmente “suporta tudo”, porque esta ideia é
expressa no final do versículo 7. O sentido encontra-se no Antigo Testamento onde se diz que Deus é "lento
para a ira" (Nm 14, 18; cf. Ex 34, 6). Uma pessoa
mostra-se paciente, quando não se deixa levar pelos impulsos
interiores e evita agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da
Aliança, que convida a imitá-Lo também na vida familiar.
Ter paciência não é deixar que nos maltratem permanentemente, nem
tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como objetos.
Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para
responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem
conviver, anti-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a família
tornar-se-á um campo de batalha. Por isso, a Palavra de Deus
exorta-nos: “Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e
injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade” (Ef 4,
31). Esta paciência reforça-se quando reconheço que o outro, assim
como é, também tem direito a viver comigo nesta terra.
O amor beneficia e ajuda outros |
Atitude de serviço
Vem depois a palavra “jrestéuetai”, que deriva de “jrestós” - pessoa
boa, que mostra a sua bondade nas ações. Paulo pretende
esclarecer que a paciência não é
uma postura totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada por uma
atividade, indica que o amor beneficia e promove os outros. Por isso,
traduz-se como “serviçal”.
No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que o amor não
é apenas um sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o
verbo “amar” tem em hebraico: “fazer o bem”.
Como dizia Santo Inácio de Loyola, “o amor deve ser colocado mais
nas obras do que nas palavras”.
Curando a inveja
Em seguida rejeita-se uma atitude expressa como “zeloi”
(ciúme ou inveja). Significa que, no amor não há lugar para
sentir desgosto pelo bem do outro (cf. At 7, 9;17, 5). A
inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demonstrando que não nos
interessa a felicidade dos outros, porque estamos concentrados
exclusivamente no nosso bem-estar. O verdadeiro amor aprecia os
sucessos alheios, não os sente como uma ameaça, aceita que cada um
tenha dons distintos e caminhos diferentes na vida.
Em última análise, trata-se de cumprir o que pedem os dois últimos
mandamentos da Lei de Deus: “Não desejarás a casa do teu
próximo. Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a
sua serva, o seu boi, o seu burro, e tudo o que é do teu próximo”
(Ex 20, 17). O amor leva-nos a uma apreciação sincera de cada
ser humano, reconhecendo o seu direito à felicidade. Amo aquela
pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que nos dá tudo “para
nosso usufruto” (1Tim 6, 17), e consequentemente aceito,
no meu íntimo, que ela possa usufruir dum momento bom.
Sem ser arrogante nem se orgulhar
Segue-se o termo “perpereuetai”, que indica vanglória,
desejo de se mostrar superior para impressionar os outros com atitude
pedante e um pouco agressiva. Quem ama não só evita falar muito de
si mesmo, mas, porque está centrado nos outros, sabe manter-se no
seu lugar sem pretender estar no centro. A palavra seguinte –
physioutai– é muito semelhante, indicando que o amor não é
arrogante. Alguns
julgam-se grandes, porque sabem mais do que os outros, dedicando-se a
impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na realidade, o que
nos faz grandes é o amor que compreende, cuida, integra, está
atento aos fracos.
A atitude de humildade aparece aqui como algo que faz parte do amor,
porque, para poder compreender, desculpar ou servir os outros de
coração, é indispensável curar o orgulho e cultivar a humildade.
Jesus lembrava aos seus discípulos que, no mundo do poder, cada um
procura dominar o outro, e acrescentava: “não seja assim entre
vós” (Mt 20, 26). A lógica do amor cristão não é a de
quem se considera superior aos outros e precisa de fazer-lhes sentir
o seu poder, mas a de “quem no meio de vós quiser ser o
primeiro, seja vosso servo” (Mt 20, 27).
Amabilidade
Amar é também tornar-se amável, e nisto está o sentido do termo
“asjemonéi”. Significa que o amor não age rudemente, não
atua de forma inconveniente, não se mostra duro no trato. Os seus
modos, as suas palavras, os seus gestos são agradáveis; não são
ásperos, nem rígidos. Detesta fazer sofrer os outros. Ser amável
não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz
parte das exigências irrenunciáveis do amor, por isso todo o ser
humano está obrigado a ser afável com aqueles que o rodeiam.
A fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o outro,
requer-se um olhar amável. Isto não é possível
se põe em evidência os defeitos e erros
alheios. Uma pessoa
anti-social julga que os outros existem para satisfazer as suas
necessidades e, quando o fazem, cumprem apenas o seu dever. A pessoa
que ama é capaz de dizer palavras de incentivo, que reconfortam,
fortalecem, consolam, estimulam. Vejamos, por exemplo, algumas
palavras que Jesus dizia às pessoas: “Filho, tem confiança!”
(Mt 9, 2). “Grande é a tua fé!” (Mt 15, 28).
“Levanta-te!” (Mc 5, 41). “Vai em paz”
(Lc 7, 50). “Não temais!” (Mt 14, 27). Não são
palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam. Na família, é
preciso aprender esta linguagem amável de Jesus.
Desprendimento
Como se diz muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro
amar-se a si mesmo. Todavia este hino à caridade afirma que o amor
“não procura o seu próprio interesse”. Perante uma
afirmação assim clara da Sagrada Escritura, deve-se evitar de dar
prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom
de si aos outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se pode
entender como condição psicológica, pois uma pessoa que seja
incapaz de se amar a si mesma sente dificuldade em amar os outros:
“Para quem será bom aquele que é mau para si mesmo? (...) Não
há pior do que aquele que é avaro para si mesmo” (Ecle 14,
5-6).
Mas o próprio Tomás de Aquino explicou “ser mais próprio da
caridade querer amar do que querer ser amado”, e que de
fato “as mães, que são as que mais amam, procuram mais amar do
que ser amadas”. Mas será possível um desprendimento assim,
que permite dar gratuitamente e dar até ao fim? Sem dúvida, porque
é o que pede o Evangelho: “Recebestes de graça, dai de graça”
(Mt 10, 8).
Sem violência interior
Se a primeira expressão do hino nos convidava à paciência, agora
aparece outra palavra – “paroxýnetai” – que diz
respeito a uma reação interior de indignação provocada por algo
exterior. Trata-se de uma violência interna, uma irritação que nos
põe à defesa perante os outros, como se fossem inimigos a evitar.
Alimentar esta agressividade íntima, serve apenas para nos adoentar,
acabando por nos isolar.
O Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria vista (Mt 7,
5), e nós, cristãos, não podemos ignorar o convite constante da
Palavra de Deus para não se alimentar a ira: “Não te deixes
vencer pelo mal” (Rm 12, 21); “não nos cansemos de
fazer o bem” (Gal 6, 9). Por isso, nunca se deve terminar
o dia sem fazer as pazes na família. E como devo fazer as pazes?
Ajoelhar-me? Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um
pequeno gesto, uma coisa de nada. É suficiente uma carícia, sem
palavras. Mas nunca permitais que o dia em família termine sem fazer
as pazes.
Perdão
Se permitirmos a entrada dum mau sentimento no nosso íntimo, damos
lugar ao ressentimento que se aninha no coração. O contrário disto
é o perdão fundado numa atitude positiva que procura
compreender a fraqueza alheia e encontrar desculpas para a outra
pessoa, como Jesus que diz: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem
o que fazem” (Lc 23, 34).
Entretanto a tendência costuma
ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais
maldades, supor todo o tipo de más intenções, e assim o
ressentimento vai crescendo e cria raízes. Quando estivermos ofendidos ou desiludidos, é possível e desejável
o perdão; mas ninguém diz que seja fácil. Exige, de fato, de todos e de cada um,
pronta e generosa disponibilidade à compreensão, à tolerância, ao
perdão, à reconciliação.
Hoje sabemos que, para se poder perdoar, precisamos passar pela
experiência libertadora de nos compreendermos e perdoarmos a nós
mesmos. Faz falta rezar com a própria história, aceitar-se a si
mesmo, saber conviver com as próprias limitações e inclusive
perdoar-se, para poder ter esta mesma atitude com os outros. Mas isto
pressupõe a experiência de ser perdoados por Deus, justificados
gratuitamente e não pelos nossos méritos. Se aceitamos que o amor
de Deus é incondicional, que o carinho do Pai não se deve comprar
nem pagar, então poderemos amar sem limites, perdoar aos outros,
ainda que tenham sido injustos para conosco.
Alegrar-se com os outros
Alegra-se com o bem do outro quando se reconhece a sua
dignidade, quando se aprecia mais suas capacidades e as suas boas
obras. Isto é impossível para quem sente a necessidade de estar
sempre a comparar-se ou a competir, inclusive com o próprio cônjuge,
até ao ponto de se alegrar secretamente com os seus fracassos.
Quando uma pessoa que ama pode fazer algo de bom pelo outro, ou
quando vê que a vida está a correr bem ao outro, vive isso com
alegria e, assim, dá glória a Deus, porque “Deus ama quem dá
com alegria” (2Cor 9, 7), nosso Senhor aprecia de modo
especial quem se alegra com a felicidade do outro. Se não
alimentamos a nossa capacidade de rejubilar como bem do outro,
concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades,
condenamo-nos a viver com pouca alegria, porque – como disse Jesus
– “a felicidade está mais em dar do que em receber”
(At 20, 35).
Tudo desculpa
O texto é completado com quatro expressões que falam duma
totalidade: “tudo”. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera,
tudo suporta.
Em primeiro lugar, diz-se que tudo desculpa. Embora isto vá contra o
uso que habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos:
“Não faleis mal uns dos outros, irmãos” (Tg 4, 11).
Se é verdade que “com a língua amaldiçoamos os homens,
feitos à semelhança de Deus” (Tg 3, 9), o amor faz o
contrário, defendendo a imagem dos outros e com uma delicadeza tal
que leva mesmo a preservar a boa fama dos inimigos.
Os esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do outro,
procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas
e erros. Não é uma ingenuidade de quem pretende não ver as
dificuldades e os pontos fracos do outro, mas a perspectiva ampla de
quem coloca estas fraquezas e erros no seu contexto; lembra-se de que
estes defeitos constituem apenas uma parte, não são a totalidade do
ser do outro: um fato desagradável no relacionamento não é a
totalidade desse relacionamento. Assim é possível aceitar, com
simplicidade, que todos somos uma complexa combinação de luzes e
sombras. O outro não é apenas aquilo que me incomoda; é muito mais
do que isso. O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e sabe
guardar silêncio perante os limites do ser amado.
O amor tudo crê. Pelo contexto, não se deve entender esta fé em
sentido teológico, mas no sentido comum de confiança. Não se trata
apenas de não suspeitar que o outro esteja mentindo ou enganando;
esta confiança básica reconhece a luz acesa por Deus que se esconde
por detrás da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as cinzas. É
precisamente esta confiança que torna possível uma relação em
liberdade. Não é necessário controlar o outro, seguir
minuciosamente os seus passos, para evitar que fuja dos meus braços.
O amor confia, deixa em liberdade, renuncia a controlar tudo, a
possuir, a dominar. Ao mesmo tempo torna possível a sinceridade e a
transparência, porque uma pessoa, quando sabe que os outros confiam
nela e apreciam a bondade do seu ser, mostra-se como é, sem
dissimulações. Concluindo, uma família, onde reina uma confiança
sólida, carinhosa e, suceda o que suceder, sempre se volta a
confiar, permite o florescimento da verdadeira identidade dos seus
membros, fazendo com que se rejeite espontaneamente o engano, a
falsidade e a mentira.
Espera
“Panta elpízei”: o amor não desespera do futuro. Ligado
à palavra anterior, indica a esperança de quem sabe que o outro
pode mudar; sempre espera que seja possível um amadurecimento, um
inesperado surto de beleza, que as potencialidades mais recônditas
do seu ser germinem algum dia. Não significa que, nesta vida, tudo
vai mudar; implica aceitar que nem tudo aconteça como se deseja, mas
talvez Deus escreva direito por linhas tortas e saiba tirar algum bem
dos males que não se conseguem vencer nesta terra.
Tudo suporta
“Panta hypoménei” significa que suporta, com espírito
positivo, todas as contrariedades. É manter-se firme no meio dum
ambiente hostil. Não consiste apenas em tolerar algumas coisas
desagradáveis, mas é algo mais amplo: uma resistência dinâmica e
constante, capaz de superar qualquer desafio. É amor que apesar de
tudo não desiste, mesmo que todo o contexto convide a outra coisa.
Isto lembra-me Martin Luther King, quando reafirmava a opção pelo
amor fraterno, mesmo no meio das piores perseguições e humilhações:
“A pessoa que mais te odeia, tem algo de bom nela; mesmo a nação
que mais odeia, tem algo de bom nela; mesmo a raça que mais odeia,
tem algo de bom nela. Não importa o que faça, lá vês a imagem de
Deus. Há um elemento de bondade de que nunca poderás livrar-te.
Ódio por ódio só intensifica a existência do ódio e do mal no
universo. Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a pancada e tu
me devolves a pancada, e assim por diante… obviamente continua-se
até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém
deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa
forte é aquela que pode quebrar a cadeia do ódio, a cadeia do mal.
(...) Alguém deve ter bastante fé e moralidade para a quebrar e
injetar dentro da própria estrutura do universo o elemento forte e
poderoso do amor”.
Na vida familiar, é preciso cultivar esta força do amor, que
permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa
dominar pelo ressentimento, o desprezo das pessoas, o desejo de se
lamentar ou vingar de alguma coisa. O ideal cristão, nomeadamente na
família, é amor que apesar de tudo não desiste.
-- resumo de parte do capítulo 4 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco
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