30 de dez. de 2016

As lições de Nazaré

Nazaré é a escola onde se começa a compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho.

Aqui se aprende a olhar, a escutar, a meditar e penetrar o significado, tão profundo e tão misterioso, dessa manifestação tão simples, tão humilde e tão bela, do Filho de Deus. Talvez se aprenda até, insensivelmente, a imitá-lo.

Papa Paulo VI
Aqui se aprende o método que nos permitirá compreender quem é o Cristo. Aqui se descobre a necessidade de observar o quadro de sua permanência entre nós: os lugares, os tempos, os costumes, a linguagem, as práticas religiosas, tudo de que Jesus se serviu para revelar-se ao mundo. Aqui tudo fala, tudo tem um sentido.

Aqui, nesta escola, compreende-se a necessidade de uma disciplina espiritual para quem quer seguir o ensinamento do Evangelho e ser discípulo do Cristo.

Ó como gostaríamos de voltar à infância e seguir essa humilde e sublime escola de Nazaré! Como gostaríamos, junto a Maria, de recomeçar a adquirir a verdadeira ciência e a elevada sabedoria das verdades divinas.

Mas estamos apenas de passagem. Temos de abandonar este desejo de continuar aqui o estudo, nunca terminado, do conhecimento do Evangelho. Não partiremos, porém, antes de colher às pressas e quase furtivamente algumas breves lições de Nazaré.

Primeiro, uma lição de silêncio. Que renasça em nós a estima pelo silêncio, essa admirável e indispensável condição do espírito; em nós, assediados por tantos clamores, ruídos e gritos em nossa vida moderna barulhenta e hipersensibilizada. O silêncio de Nazaré ensina-nos o recolhimento, a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e as palavras dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor das preparações, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que só Deus vê no segredo.

Uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, sua comunhão de amor, sua beleza simples e austera, seu caráter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré o quanto a formação que recebemos é doce e insubstituível: aprendamos qual é sua função primária no plano social.

Uma lição de trabalho. Ó Nazaré, ó casa do “filho do carpinteiro”! É aqui que gostaríamos de compreender e celebrar a lei, severa e redentora, do trabalho humano; aqui, restabelecer a consciência da nobreza do trabalho; aqui, lembrar que o trabalho não pode ser um fim em si mesmo, mas que sua liberdade e nobreza resultam, mais que de seu valor econômico, dos valores que constituem o seu fim. Finalmente, como gostaríamos de saudar aqui todos os trabalhadores do mundo inteiro e mostrar-lhes seu grande modelo, seu divino irmão, o profeta de todas as causas justas, o Cristo nosso Senhor.

-- Das Alocuções do papa Paulo VI (Alocução pronunciada em Nazaré a 5 de janeiro de 1964)

26 de dez. de 2016

As armas da caridade

Ontem, celebrávamos o nascimento temporal de nosso Rei eterno; hoje celebramos o martírio triunfal do seu soldado. Ontem o nosso Rei, revestido de nossa carne e saindo da morada de um seio virginal, dignou-se visitar o mundo; hoje o soldado, deixando a tenda de seu corpo, parte vitorioso para o céu.

O nosso Rei, o Altíssimo, veio por nós na humildade, mas não pôde vir de mãos vazias. Trouxe para seus soldados um grande dom, que não apenas os enriqueceu imensamente, mas deu-lhes uma força invencível no combate: trouxe o dom da caridade que leva os homens à comunhão com Deus.

Ao repartir tão liberalmente o que trouxera, nem por isso ficou mais pobre: enriquecendo do modo admirável a pobreza dos seus fiéis, ele conservou a plenitude dos seus tesouros inesgotáveis.

Assim, a caridade que fez Cristo descer do céu à terra, elevou Estevão da terra ao céu. A caridade de que o Rei dera o exemplo logo refulgiu no soldado.

Estêvão, para alcançar a coroa que seu nome significa, tinha por arma a caridade e com ela vencia em toda parte. Por amor a Deus não recuou perante a hostilidade dos judeus, por amor ao próximo intercedeu por aqueles que o apedrejavam. Por esta caridade, repreendia os que estavam no  erro para que se emendassem, por caridade orava pelos que o apedrejavam para que não fossem punidos.

Fortificado pela caridade, venceu Saulo, enfurecido e cruel, e mereceu ter como companheiro no céu aquele que tivera como perseguidor na terra.  Sua santa e incansável caridade queria conquistar pela oração, a quem não pudera converter pelas admoestações.

E agora Paulo se alegra com Estêvão, com Estêvão frui da glória de Cristo, com Estêvão exulta, com Estêvão reina. Aonde Estêvão chegou primeiro, martirizado pelas pedras de Paulo,  chegou depois Paulo, ajudado pelas orações de Estevão.

É esta a verdadeira vida, meus irmãos, em que Paulo não se envergonha mais da morte de Estêvão, mas Estevão se alegra pela companhia de Paulo, porque em ambos triunfa a caridade. Em Estêvão, a caridade venceu a crueldade dos perseguidores, em Paulo, cobriu uma multidão de pecados; em ambos, a caridade mereceu a posse do reino dos céus.

A caridade é a fonte e origem de todos os bens, é a mais poderosa defesa, o caminho que conduz ao céu.  Quem caminha na caridade não pode errar nem temer.  Ela dirige, protege, leva a bom termo.

Portanto, meus irmãos, já que o Cristo nos deu a escada da caridade pela qual todo cristão pode subir ao céu, conservai fielmente a caridade verdadeira, exercitai-a uns para com os outros e, subindo por ela, progredi sempre mais no caminho da perfeição.

-- Dos sermões de São Fulgêncio de Ruspe, bispo (século VI)

22 de dez. de 2016

Magnificat, o cântico de Maria


E Maria disse: A minh’alma engrandece o Senhor e exulta meu espírito em Deus, meu Salvador (Lc 1,46-47).

O Senhor, diz ela, elevou-me por um dom tão grande e inaudito, que nenhuma palavra o pode descrever e mesmo no íntimo do coração é difícil compreendê-lo. Por isso dedico todas as forças de meu ser ao louvor e à ação de graças, contemplando a grandeza daquele que é eterno, e ofereço com alegria minha vida, tudo que sinto e penso, porque meu espírito rejubila pela divindade eterna de Jesus, o Salvador, que concebi e é gerado em meu seio.

O Poderoso fez em mim maravilhas, e santo é o seu nome! (Lc 1,49).

Estas palavras se relacionam com o início do cântico que diz: A minh’alma engrandece o Senhor. De fato, só a alma em quem o Senhor se dignou fazer maravilhas pode engrandecê-lo e louvá-lo dignamente e dizer, exortando os que compartilham seus desejos e aspirações:Comigo engrandecei ao Senhor Deus, exaltemos todos juntos o seu nome (Sl 33,4).

Quem conhece o Senhor e é negligente em proclamar sua grandeza e santificar o seu nome, será considerado o menor no Reino dos Céus(Mt 5,19). Diz-se que santo é o seu nome porque, pelo seu poder ilimitado, transcende toda criatura e está infinitamente separado de todas as coisas criadas.

Acolhe Israel, seu servidor, fiel ao seu amor (Lc 1,54).

Israel é, com razão, denominado servidor do Senhor, porque, sendo obediente e humilde, foi por ele acolhido para ser salvo, como diz Oséias: Quando Israel era criança, eu já o amava (Os 11,1). Aquele que recusa humilhar-se não pode certamente ser salvo, nem dizer com o Profeta: Quem me protege e me ampara é meu Deus; é o Senhor quem sustenta a minha vida! (Sl 53,6). Mas, quem se fizer humilde como uma criança, esse é o maior no Reino dos Céus (cf. Mt 18,4).

Como havia prometido a nossos pais, em favor de Abraão e de seus filhos para sempre (Lc 1,55).

Trata-se da descendência de Abraão segundo o espírito e não segundo a carne, isto é, não apenas dos filhos segundo a natureza, mas de todos que seguiram o exemplo da sua fé, fossem eles circuncidados ou incircuncisos. Pois o próprio Abraão, ainda incircunciso, acreditou e isto lhe foi imputado como justiça.

A vinda do Salvador foi, portanto, prometida a Abraão e a seus filhos para sempre, isto é, aos filhos da promessa, dos quais se diz: Sendo de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa (Gl 3,29).

É com razão que, antes do nascimento do Senhor e de João, suas mães profetizam, para que, tendo o pecado começado pela mulher, os bens comecem igualmente por ela; e se foi pela sedução de uma só mulher que a morte foi introduzida no mundo, agora é pela profecia de duas mulheres que se anuncia ao mundo a salvação.

-- Da Exposição sobre o Evangelho de São Lucas, de São Beda Venerável, presbítero (século VIII)

* para lembrar, também já publicamos os Comentários de São João Eudes sobre o Magnificat.

14 de dez. de 2016

Quatro enganos comuns sobre o Sacramento da Reconciliação

Todos cometemos pecados e precisamos do
Sacramento da Reconciliação, a exemplo do
nosso Papa Francisco. 
O Sacramento da Reconciliação é essencial para o cristão por propiciar uma reaproximação com Cristo ao dar uma oportunidade ao fiel católico de reconhecer as suas faltas e, se delas estiver arrependido, ser perdoado por Deus. É um hábito salutar para  a alma procurar este sacramento com certa frequência ou sempre que houver algo pesando na consciência, pois considera-se que seu efeito purificador é salutar, sendo benéfico para a saúde espíritual e, muitas vezes, também para a saúde psicológica e física. 

No entanto, há algumas objeções que as pessoas costumam fazer, que gostaria de esclarecer, com a ajuda de São Tomás de Aquino.

1. A confissão não é necessária pois basta a graça de Deus

O sacramento da Reconciliação apaga os pecados que a pessoa tenha cometido e estes pecados podem ser um impedimento real para a Salvação da Alma, logo é um sacramento necessário para a Salvação. Assim como o Batismo apaga o pecado original, a confissão e a penitência apagam os pecados cometidos ao longo da vida. E, sim, todos nós cometemos pecados, maiores ou menores, mais ainda assim pecados.

Na confissão o penitente expia seus pecados temporais humilhando-se, reconhecendo-se fraco, e se submetendo ao padre, que representa a Deus, que tem o poder concedido por Deus de recomendar uma justa penitência e perdoar os pecados. Como apenas o sacerdote tem este poder, é importante confessar para um padre, não basta "falar com Deus".

2. Cristo perdoou alguns, como Pedro, Maria Madalena e Paulo, sem nem mesmo confessarem, pois Ele já sabia os pecados cometidos.

Se queres que um doutor cure tuas doenças é necessário que explique teus problemas. Se queres que Deus cure tuas fraquezas, fortaleça tua saúde espiritual, é necessário que confesses estas fraquezas, teus pecados. 

Além disso, os Evangelhos são como um resumo da vida de Cristo, como São Lucas diz, não haveria livros para contar todos os milagres e maravilhas realizados por Cristo. Assim é bem possível que eles tenham confessado seus pecados, apenas que este fato não tenha sido registrado. Além disso, apenas Cristo, enquanto Deus, tem o poder da onisciência, não nossos padres. 

3.  A confissão não é necessária por que a pessoa pode desculpar seus próprios erros, afinal são "seus" pecados. 

É verdade que a pessoa, por sua própria e livre vontade, resolveu cometer más ações, e que, neste sentido, pode ser o único causador dos seus pecados. Mas seus pecados nunca estão restritos apenas a ele, sempre afetam outras pessoas. Por exemplo, contar uma mentira atinge outra pessoa, que agirá de acordo com o que ouviu, não de acordo com a verdade. 

Alguns pecados tem uma grande repercussão, outros menor, mas sempre outros são afetados. Neste sentido, o homem não basta a si mesmo, é necessário que escute a outro, que irá analisar a situação e recomendar o remédio (penitência) adequado. Assim, confessar para um padre é fundamental.

4. O padre sempre repete a mesma penitência, já posso ir rezando uns Pai-Nossos pelos meus pecados. Ou a penitência é sempre "levezinha", eu mesmo acho merecer algo bem maior.

Achar que a penitência sempre deve ser proporcional à gravidade do pecado é comparar um sacramento ao processo judicial, onde crimes mais graves são punidos de maneira mais forte, esquecendo a Misericórdia de Deus. O sacramento é eficaz não pelo tamanho da penitência, mas pelo poder do sacramento, que só é possível se efetivamente ministrado por um sacerdote.

-- texto adaptado da Suma Teológica (suplemento da 3a. parte, questão 6, artigo 1), de São Tomás de Aquino.  


10 de dez. de 2016

João é a voz, Cristo, a Palavra

São João Batista pregando no deserto, de Mássimo Stanzione
João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra (Jo 1,1). João era a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde o princípio.

Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração. Entretanto, mesmo quando se trata de alimentar nossos corações, vejamos a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer, a palavra já está em meu coração. Se quero, porém, falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o que já está no meu.

Procurando então como fazer chegar a ti e penetrar em teu coração o que já está no meu, recorro à voz e por ela falo contigo. O som da voz te faz entender a palavra; e quando te fez entendê-la, esse som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração, sem haver deixado o meu.

Não te parece que esse som, depois de haver transmitido minha palavra, está dizendo: É necessário que ele cresça e eu diminua? (Jo 3,30). A voz ressoou, cumprindo sua função, e desapareceu, como se dissesse: Esta é a minha alegria, e ela é completa (Jo 3,29). Guardemos a palavra; não percamos a palavra concebida em nosso íntimo.

Queres ver como a voz passa e a palavra divina permanece? Que foi feito do batismo de João? Cumpriu sua missão e desapareceu; agora é o batismo de Cristo que está em vigor. Todos cremos em Cristo e esperamos dele a salvação: foi o que a voz anunciou.

Justamente porque é difícil não confundir a voz com a palavra, julgaram que João era o Cristo. Confundiram a voz com a palavra. Mas a voz reconheceu o que era para não prejudicar a palavra. Eu não sou o Cristo (Jo 1,20), disse João, nem Elias nem o Profeta. Perguntaram-lhe então: Quem és tu? Eu sou, respondeu ele, a voz que grita no deserto: “Aplainai o caminho do Senhor" (Jo 1,19.23). É a voz do que grita no deserto, do que rompe o silêncio. Aplainai o caminho do Senhor, como se dissesse: “Sou a voz que se faz ouvir apenas para levar o Senhor aos vossos corações. Mas ele não se dignará vir aonde o quero levar, se não preparardes o caminho”.

O que significa: Aplainai o caminho, senão: Orai como se deve orar? O que significa ainda: Aplainai o caminho, senão: Tende pensamentos humildes? Imitai o exemplo de João. Julgam que é o Cristo e ele diz não ser aquele que julgam; não se aproveita do erro alheio para uma afirmação pessoal. Se tivesse dito: “Eu sou o Cristo”, facilmente teriam acreditado nele, pois já era considerado como tal antes que o dissesse. Mas não disse; pelo contrário, reconheceu o que era, disse o que não era, foi humilde. Viu de onde lhe vinha a salvação; compreendeu que era uma lâmpada e temeu que o vento do orgulho pudesse apagá-la.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

3 de dez. de 2016

Os ícones na Igreja Ortodoxa

Uma parede tradicional com ícones pintados em madeira e utilizando
tintas feitas pelo artista a partir de componentes naturais, como fazem os
monges a séculos. 
Ao entrar em uma Igreja Ortodoxa, você imediatamente notará que uma parede separa o altar do restante da Igreja; é a parede dos ícones. Esta parede não existe em Igrejas Católicas, mas seu significado é muito importante para todos os cristãos. Ela tem uma porta central dupla, a Porta Sagrada ou Porta dos Céus. Tipicamente o primeiro ícone à direita da porta é Cristo Criador de Todas as Coisas, o "Cristo Pancrator", e ao lado esquerdo o Ícone de Maria, Mãe de Deus, segurando Jesus em seus braços.  O ícone nas portas é da Anunciação da Virgem Maria, quando o Arcanjo Gabriel lhe anuncia Imaculada Conceição. Ao redor deles há variados ícones dos evangelistas e outros santos. 

As portas são o caminho para os céus, o Ícone da Anunciação nos recorda que Cristo se fez homem para nossa salvação; Maria foi o ponto de passagem para que Cristo entrasse no mundo; e é também a porta de passagem para que entremos nos céus. Os ícones dos evangelistas lembram que conhecemos a Cristo através de suas Sagradas Palavras registradas nos Evangelhos.

Os monges sempre ensinaram que é impossível retratar a verdadeira natureza de Deus, pois nunca o vimos, pouco o conhecemos.  No entanto, Deus veio ao mundo na forma de uma pessoa, tornou-se carne e sangue. Este é o milagre da Incarnação, fundamental para a fé cristã. Podemos pintar uma imgem de Cristo por que ele esteve no meio de nós como uma pessoa. Neste sentido, todo ícone de Cristo lembra que Deus se fez homem.

Uma versão um pouco mais moderna da parede de ícones.
Em uma imagem, mesmo que o Sol ou a Lua não estejam representados, é possível dizer a hora do dia pois observando as luzes e sombras. Em um ícone, a iluminação provêm da imutável luz de Deus, não há luzes e sombras, tudo é uniformemente iluminado por Deus. Ícones são pintados desta maneira proposidatamente pois são uma janela para os céus. Não é o ícone que é venerado, mas a pessoa, o Santo, Nossa Senhora ou o próprio Deus, visto através desta janela que é venerado. 

Como disse São João Damasceno: "Um ícone é um hino de triunfo, uma revelação, um monumento duradouro à vitória dos Santos e a desgraça dos demônios".

-- adaptado de um texto de Tony Holden 

24 de nov. de 2016

São Paulo Le-Bao Tinh

Paulo Le-Bao Tinh nasceu em 1793 em uma família rica na vila de Trinh-Ha, no Vietnã. Estudou com mestres confucionistas, mas quando  conheceu os padres do Seminário tornou-se católico. Aos 12 anos entrou no Seminário, com a aprovação de seus pais. Agradava-lhe especialmente ler sobre a vida dos santos, era muito zeloso com as orações e estudos. Em certo momento, sentiu-se chamado a viver como heremita e abandonou o Seminário para morar numa caverna, sobrevivendo de frutas e arroz, passando dias em oração.

Assim ficou por muitos anos, até que o Bispo lhe pediu para ajudar no trabalho missionário. Paulo, que ainda não fora ordenado, se dirigiu às montanhas do Laos, combinando trabalho de evangelização com períodos de oração solitária e reclusão.

Em 1841 iniciou-se uma brutal perseguição aos cristãos na Provínca onde Paulo residia. O Vaticano considera os sofrimentos impostos como sendo um dos piores da história, com anos de torturas contínuas e uso de drogas para mantê-los vivos mas submissos às ordens dos torturdores.  Após sete anos na prisão, Paulo recebeu uma sentença de morte. Foi quando recebeu autorização para escrever uam última carta, que ele enviou aos seminaristas de Ke-Vinh. A carta inicia assim:

Eu, Paulo, preso pelo nome de Cristo, quero levar ao vosso conhecimento as minhas tribulações louvá-lo, porque a sua misericórdia é eterna (Sl 117,1).

O meu cárcere é verdadeiramente uma imagem do fogo eterno. Aos cruéis suplícios de todo gênero, como grilhões, algemas e ferros, juntam-se ódio, vingança, calúnias, palavrões, acusações, maldades, falsos testemunhos, maldições e, finalmente, angústia e tristeza. Mas Deus, que outrora libertou os três jovens da fornalha acesa, sempre me assiste e libertou-me dessas tribulações, que se tornaram suaves, porque a sua misericórdia é eterna!

No entanto, o Imperador Thieu Tri transformou a sentença de morte em exílio, enviando Paulo para a Província de Phu Yen. Ao final do ano, um novo imperador, Tu Duc, anistiou todos exilados, permitindo seu retorno. De volta ao Seminário, Paulo terminou seus estudos e foi ordenado.


Nova mudança na política e, em 1855, todos padres cristãos foram presos e condenados a morte. Paulo escreveu:

Catedral de Nossa Senhora, na cidade
de Ho-Chi-Minh
Em meio aos tormentos que fazem a todos se desesperar, pela graça de Deus estou cheio de alegria e felicidade, por que não estou sozinho. Cristo está ao meu lado. Ele, meu Mestre, sustenta todo o peso da minha cruz, deixando para mim apenas uma parte pequena, mas decisiva.

Na manhã seguinte Paulo foi trazido ao local de execução. Sua últimas palavras foram: "A religião do Mestre é perfeitamente verdadeira, mesmo que reis e imperadores persigam-na e tentem destruí-la. Ao final, esta religião será vitoriosa e, no futuro, haverá muitas conversões, muito mais fiéis que em todo passado." De fato, esta profecia cumpriu-se: hoje há mais de 5 milhões de católicos no país, representado quase 7% da população.

São Paulo Le-Bao Tinh foi canonizado em 19 de Junho de 1988 pelo Papa João Paulo II e sua memória é celebrada em 6 de Abril. Além dele, mais de 130.000 cristãos foram martirizados no Vietnã, sendo todos são celebrados em 24 de Novembro, dia dos Mártires Vietnamitas.

-- autoria própria

A participação dos mártires na vitória de Cristo Rei

Paulo le Bao-Tinh morreu
martirizado em 1857 após muitos
anos na prisão e exílio.
Eu, Paulo, preso pelo nome de Cristo, quero levar ao vosso conhecimento as minhas tribulações cotidianas que me assaltam de todos os lados, para que, inflamados pelo amor de Deus, possais louvá-lo, porque a sua misericórdia é eterna (Sl 117,1).

O meu cárcere é verdadeiramente uma imagem do fogo eterno. Aos cruéis suplícios de todo gênero, como grilhões, algemas e ferros, juntam-se ódio, vingança, calúnias, palavrões, acusações, maldades, falsos testemunhos, maldições e, finalmente, angústia e tristeza. Mas Deus, que outrora libertou os três jovens da fornalha acesa, sempre me assiste e libertou-me dessas tribulações, que se tornaram suaves, porque a sua misericórdia é eterna!

Graças a Deus, no meio desses tormentos que continuam a apavorar os outros, sinto-me alegre e contente, pois não me julgo só, mas com Cristo. Nosso Mestre suporta todo o peso da cruz, deixando-me apenas uma pequena e ínfima parte: não é só testemunha do meu combate, mas combatente, vencedor e consumador de toda luta. Assim, sobre sua cabeça é que foi colocada a coroa da vitória, de cujo triunfo participam também os seus membros.

Como, porém, Senhor, suportar tal espetáculo, ao ver diariamente os imperadores, os mandarins e seus soldados blasfemarem vosso santo nome, quando estais acima dos querubins e serafins? (cf. Sl 79,3). Eis que a vossa cruz é calcada pelos pagãos! Onde está a vossa glória? Ao ver tudo isso, me inflamo por vós, preferindo morrer com os membros amputados, em testemunho do vosso amor!

Mostrai,  Senhor, o vosso poder, salvando-me e protegendo-me. Que a força se manifeste na minha fraqueza e seja glorificada ante os gentios, pois, se eu vacilar no caminho, vossos inimigos, cheios de orgulho, poderão levantar as cabeças.

Caríssimos irmãos, ao ouvirdes tudo isto, dai alegremente graças imortais a Deus, do qual procedem todos os bens. Bendizei comigo o Senhor, porque a sua misericórdia é eterna! Minha alma engrandeça o Senhor e meu espírito exulte de alegria em Deus, meu Salvador; porque olhou para a humildade de seu servo (cf. Lc 1,46-48), todas as gerações me proclamarão bendito, porque a sua misericórdia é eterna!

Cantai louvores ao Senhor, todas as gentes, povos todos, festejai-o (Sl 116,1), porque Deus escolheu o que é fraco no mundo para confundir os fortes, e o que é vil e desprezível (1Cor 1,27-28), para confundir os nobres. Pelos meus lábios e inteligência, Deus confunde os filósofos, os discípulos dos sábios deste mundo, porque a sua misericórdia é eterna!

Tudo isto vos escrevo, para unirdes à minha a vossa fé. No meio desta tempestade lanço a âncora, a viva esperança que trago no coração, até ao trono de Deus.

Caríssimos irmãos, correi de tal modo que possais alcançar a coroa: revesti-vos com a couraça da fé (1Ts 5,8), tomai as armas de Cristo, à direita e à esquerda, segundo os ensinamentos de São Paulo, meu patrono. É melhor para vós entrar na posse da vida comum só olho ou privados de algum membro (cf. Mt 5,29), do que serdes lançados fora com todos eles.

Vinde em meu auxílio com vossas preces, para que possa combater, segundo a lei, o bom combate, e combater até o fim, encerrando gloriosamente a minha carreira. Se já não nos podemos ver nesta vida, tal felicidade nos está reservada para o futuro, quando, junto ao trono do Cordeiro imaculado, exultantes com a alegria da vitória, cantaremos em uníssono eternamente os seus louvores. Assim seja.

-- Da Carta de Paulo Le Bao-Tinh aos alunos do Seminário de Ke-Vinh, de 1843

18 de nov. de 2016

O mistério de Cristo em nós e na Igreja

Retratode de São João Eudes, 1673
Cabe-nos imitar e completar em nós os estados e mistérios de Cristo e pedir-lhe continuamente que os leve a termo e os perfaça em nós e na Igreja inteira.

Porque os mistérios de Jesus ainda não estão totalmente levados à sua perfeição e realizados. Na pessoa de Jesus, sim, não, porém, em nós, seus membros, nem na Igreja, seu Corpo místico. Por querer o Filho de Deus comunicar, estender de algum modo e continuar seus mistérios em nós e em toda a sua Igreja, determinou tanto as graças que nos concederá,quanto os efeitos que quer produzidos em nós por esses mistérios. Por esta razão deseja completá-los em nós.

Por isso, São Paulo diz que Cristo é completado na Igreja e que todos nós colaboramos para sua edificação e para a plenitude de sua idade (cf. Ef 4,13), isto é, a idade mística que tem em seu Corpo místico, mas que só no dia do juízo será plena. Em outro lugar, diz o mesmo Apóstolo que completa em sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1,24).

Deste modo, o Filho de Deus decidiu que seus estados e mistérios seriam completados e levados à perfeição em nós. Quer levar à perfeição em nós o mistério de sua encarnação, nascimento, vida oculta, quando se forma e renasce em nossa alma pelos sacramentos do santo batismo e da divina eucaristia e nos dá vivermos a vida espiritual e interior, escondida com ele em Deus (Cl 3,3).

Quer ainda levar à perfeição em nós o mistério de sua paixão, morte e ressurreição que nos fará padecer, morrer e ressurgir com ele. E, finalmente, quer completar em nós o estado de vida gloriosa e imortal, quando nos fará viver com ele e nele a vida gloriosa e perpétua nos céus. Assim quer consumar e completar seus outros estados, outros mistérios em nós e em sua Igreja; deseja comunicá-los a nós e partilhá-los conosco e por nós continuá-los e propagá-los.

Assim, os mistérios de Cristo não estarão completos antes daquele tempo que marcou para o término destes mistérios em nós e na Igreja, isto é,  antes do fim do mundo.

-- Do Tratado sobre o Reino de Jesus, de São João Eudes, presbítero (século XVI)

16 de nov. de 2016

O coração do justo exultará no Senhor

O justo alegra-se no Senhor e nele espera; e gloriam-se todos os retos de coração (Sl 63,11). Acabamos de cantá-lo com a voz e com o coração. A consciência e a língua cristãs dizem estas palavras a Deus: Alegra-se o justo, não com o mundo, mas no Senhor. A luz nasceu para o justo, diz outro lugar, e a alegria, para os retos de coração(Sl 96,11). 

Indagas donde vem a alegria. Escutas: Alegra-se o justo no Senhor, e noutro passo: Põe tuas delícias no Senhor e ele atenderá aos pedidos de teu coração (Sl 36,4). 

Que nos é indicado? O que é doado, ordenado, dado? Que nos alegremos no Senhor. Quem é que se alegra com aquilo que não vê? Acaso vemos o Senhor? Já o temos em promessa. 

Agora, porém, caminhemos pela fé; enquanto estamos no corpo, peregrinamos longe do Senhor (2Cor 5,7.6). Pela fé, não pela visão. Quando, pela visão? Quando se realizar o que diz o mesmo João: Diletíssimos, somos filhos de Deus; mas ainda não se fez visível o que seremos. Sabemos que, quando aparecer, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal qual é (1Jo 3,2). 

Neste momento, então, será a grande e perfeita alegria, o gáudio pleno, onde já não mais teremos o leite da esperança, mas a realidade nos alimentará. Contudo, desde agora, antes que nos chegue a realidade, antes que cheguemos à realidade, alegremo-nos no Senhor. Não é insignificante a alegria trazida pela esperança, já que depois será a posse. 

Agora, amamos na esperança. Por isso, alegra-se o justo no Senhor e logo em seguida, e nele espera, porque ainda não vê. 

Todavia, possuímos as primícias do espírito, e talvez de algo mais. Aproximamo-nos de quem amamos e, embora por uma gotinha, já provamos e saboreamos aquilo que avidamente comeremos e beberemos. 

Como é que nos alegramos no Senhor, se está longe de nós? Que ele não esteja longe! A estar longe, és tu que o obrigas. Ama e aproximar-se-á; ama e habitará em ti. O Senhor está próximo, não fiques inquieto (Fl 4,5-6). Queres ver como, se amares, estará contigo? Deus é caridade (1Jo 4,8). 

Dir-me-ás: “Em teu parecer, que é caridade?” A caridade é a virtude pela qual amamos. O que amamos? O bem salutar, o bem inefável, o bem de todos os bens, o Criador. Que te deleite aquele de quem tens tudo o que te deleita. Não digo o pecado, pois só o pecado não recebes dele. Dele é que terás tudo.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

13 de nov. de 2016

A anulação do casamento do Rei Henrique VIII

Todos aprendemos na escola que o Rei Henrique VIII brigou com o Papa e resolveu formar a Igreja da Inglaterra (Anglicana) por que queria casar com outra mulher, já que a primeira esposa não lhe dera um sucessor.  Dito assim, parece ser uma simples questão de divórcio, que já foi resolvida com a separação da Igreja e o Estado, bem como o fim do poder das Monarquias. Na verdade é um pouco mais complicado e ainda é uma questão atual na Igreja.

O casamento

O jovem Henrique era o segundo filho do Rei da Inglaterra, por isso as atenções eram voltadas para o irmão mais velho, Artur. Como de hábito, muito cedo iniciou a busca por uma esposa, a futura rainha. As implicações políticas eram enormes e muito mais importantes que qualquer vontade pessoal. Feitas as negociações, em 1488 ficou decidido que Artur casaria com Catarina de Aragão, filha dos Reis da Espanha. Os jovens "noivos" ainda não haviam completado três de idade, por isso casaram-se apenas em Novembro de 1501, quando completaram 15 anos. 
Henrique e Catarina casaram em 11 de Junho de 1509, duas
semanas após foram coroados Rei e Rainha da Inglaterra.

Os problemas começaram quando Artur faleceu meses após o casamento, deixando Catarina viúva. O Rei da Inglaterra, pai de Artur, ainda estava vivo e teve que refazer seus planos para a sucessão, que agora recaia em Henrique. Considerando a situação política, optou-se por Henrique casar com a viúva do irmão, mantendo os acordos com a Espanha.  

Porém havia um problema: casar com a viúva do irmão não era permitido, exceto se houvesse uma permissão especial do Bispo. Em se tratando de reis, foram direto ao Papa Julio II, que considerando as vantagens de uma firme aliança entre reinos católicos, autorizou o casamento. Se tudo houvesse corrido bem, este era o fim do caso, com os filhos de Henrique entrando na linha sucessória do trono.

O pedido de divórcio

Infelizmente Catarina tinha problemas na gravidez e as crianças, quando nasciam, tinham saúde fraca e morriam prematuramente, apenas uma menina cresceu até a idade adulta. A medida que envelheciam, ficava claro que não haveria um filho homem para suceder Henrique VIII. Junto com seus auxiliares e apoio do Cardeal Wolsey, legado papal na Inglaterra, decidiram pedir a anulação do casamento, para que o Rei casasse novamente de maneira válida. Na país considerava-se que era causa ganha e o Rei já poderia procurar uma nova esposa, no caso, Ana Bolena foi escolhida.  A palavra central é "anulação", não divórcio, ou seja, o pedido era para que a Igreja declarasse que o casamento de Henrique e Catarina fora inválido e, para todos efeitos, ambos estariam solteiros.

O argumento legal é que o Papa Julio II quando concedeu a exceção que permitiu o casamento, o fez de maneira inválida por que o Papa não pode se sobrepor a Deus, que claramente estipulara a proibição em Levítico 20,21:

Se um homem casar com a esposa de seu irmão, trará desgraça para a família, não terão filhos por causa deste incesto.

Este argumento centra a questão nos limites dos poderes de um Papa, poderes que são sempre limitados pela Lei Divina. O Papa sempre estará abaixo de Deus, assim, por exemplo, nunca poderá autorizar um casamento entre pai e filha, pois esta seria uma violação direta da Lei estabelecida por Deus, a primeira pessoa da Santíssima Trindade. Por outros motivos, como um limite de idade, o Papa poderia dispensar, pois se trata de uma regra criada pelos homens, que ao longo dos séculos tem variado. Portanto, a questão a ser resolvida é sobre como surgiu  a proibição de um irmão casar coma viúva do irmão: se é uma Lei de Deus, o Papa Julio II errou e o casamento deixaria de ser válido, Henrique e Catarina estariam solteiros; se é uma lei humana, o Papa tem poder para dispensar os noivos e o casamento foi plenamente válido. 

A decisão Papal

Papa Clemente VII governou a Igreja
de 19 de Novembro 1523 até 25 de
Setembro de 1534. 
Em tratando-se de questões canônicas, a palavra final é sempre dada pelo Papa, e especialmente num caso envolvendo Reis, o problema foi apresentado direto para o Papa Clemente VII. É certo que questões políticas faziam parte da conjuntura, mas a questão era estritamente canônica.

Se o Livro de Levítico parece sustentar o caso de Henrique, o Livro de Deuteronômio 25,5 foi usado como contra-argumento: 

Quando irmãos morarem juntos, e um deles morrer, e não tiver filho, então a mulher do falecido não se casará com homem estranho, de fora; seu cunhado estará com ela, e a receberá por mulher, e fará a obrigação de cunhado para com ela.

O papa pediu aos teólogos e exegetas romanos que estudassem o caso. A conclusão foi que sendo toda Escritura inspirada por Deus, ambos trechos eram igualmente válidos. Levítico refere-se ao caso de traição conjugal, pois ambos irmãos estariam vivos; enquanto o Deuteronômio claramente fala de uma viúva do primeiro irmão.  Assim, apesar de algumas idas e vindas influenciadas pelas questões políticas, Papa Clemente VII afirmou que a dispensa concedida pelo Papa anterior fora válida e o casamento estava mantido. 

As consequências

Henrique VIII, que nesta altura já tinha filhos com Ana Bolena, decidiu por separar a Igreja da Inglaterra da Igreja Católica, e tornar-se o seu líder. Inspirado pela idéias de Lutero, que cada cristão é capaz de interpretar as Escrituras, casou-se oficialmente com Ana Bolena. Milhões de ingleses foram separados de sua Igreja e muitos foram martirizados, incluindo seu auxiliar direto, São Tomás Moore. 

-- autoria própria



6 de nov. de 2016

Testemunhemos a Deus pelas obras

Cristo curando os doentes, cegos e necessitados.
O Senhor usou para conosco de uma misericórdia tão grande que, primeiramente, nós, seres vivos, não sacrificássemos a deuses mortos nem os adorássemos, e levando-nos por Cristo ao conhecimento do Pai da verdade. E qual é o conhecimento que nos conduz a ele? Não é acaso não negar Aquele por quem o conhecemos? Ele mesmo declarou: Ao que der testemunho de mim, eu darei testemunho dele diante do Pai (cf. Lc 12,8). É este o nosso prêmio: testemunhar aquele por quem fomos salvos. Como o testemunharemos? Fazendo o que diz, sem desprezar seus mandamentos, honrando-o não com os lábios só, mas de todo o coração e inteligência. Pois Isaías disse: Este povo me honra com os lábios, seu coração, porém, está longe de mim (Is 29,13).

Portanto, não nos contentemos em chamá-lo de Senhor; isto não nos salvará. São suas as palavras: Não é quem me diz Senhor, Senhor, que se salvará, mas quem pratica a justiça (cf. Mt 7,21). Por isso, irmãos, demos testemunho pelas obras: amemo-nos mutuamente, não cometamos adultério, não nos difamemos uns aos outros nem nos invejemos, mas vivamos na continência, na misericórdia, na bondade. E sejamos movidos pela mútua compaixão, não pela cobiça. Confessemo-lo por estas obras, não pelas contrárias. Não temos de temer os homens, mas a Deus. Porque o Senhor disse aos que assim procediam: Se estiverdes comigo, reunidos em meu seio e não cumprirdes meus mandamentos, eu vos repelirei e direi: Afastai-vos de mim, não sei donde sois, operários da iniqüidade (cf. Mt 7,23; Lc 13,27).

Por conseguinte, irmãos meus, lutemos, sabendo que o combate está em nossas mãos. Muitos se entregam a lutas corruptíveis, mas somente são coroados aqueles que mais tiverem lutado e combatido gloriosamente. Lutemos, pois, também nós, para sermos todos coroados. Para isto, corramos pelo caminho reto, pelo combate incorruptível. Naveguemos em grande número para ele e pelejemos, a fim de obter a coroa. Se não pudermos todos ser coroados, que ao menos dela nos aproximemos. Convém-nos saber que se alguém se entrega a um combate corruptível, mas é surpreendido com o corruptor, é flagelado, afastado e expulso do estádio.

Que vos parece? Que deverá padecer quem corrompe o combate da incorrupção? Sobre aqueles que não guardam o caráter, se diz: Seu verme não morre, seu fogo não se extingue e serão dados em espetáculo a toda carne (Is 66,24).

-- Da Homilia de um Autor do século segundo

29 de out. de 2016

Como é bom e suave teu espírito, Senhor, em todas as coisas!

Com a indizível benignidade de sua clemência, o Pai eterno dirigiu o olhar para esta alma, e começou a falar:

“Caríssima filha, determinei com firmeza usar de misericórdia para com o mundo e quero providenciar acerca de todas as situações dos homens. Mas o homem ignorante julga levar à morte aquilo que lhe concedo para a vida, e assim se torna muito cruel, para si próprio; no entanto, dele eu cuido sempre. Por isso quero que saibas: tudo quanto dou ao homem provém da suprema providência.

E o motivo está em que, tendo criado com providência, olhei em mim mesmo e fiquei cativo da beleza de minha criatura. Porque foi de meu agrado criá-la com grande providência à minha imagem e semelhança. Mais ainda, dei-lhe a memória para guardar meus benefícios em seu favor, por querer que participasse de meu poder de Pai eterno.

Dei-lhe, além disto, a inteligência para conhecer e compreender na sabedoria de meu Filho a minha vontade, porque sou com ardente caridade paterna o máximo doador de todas as graças. Concedi-lhe também a vontade de amar, participando da clemência do Espírito Santo, para poder amar aquilo que a inteligência vise e conhecesse.

Isto fez minha doce providência. Ser o único capaz de entender e de encontrar seu gozo em mim com alegria imensa na minha eterna visão. E como de outras vezes te falei, pela desobediência de vosso primeiro pai Adão, o céu estava fechado. Desta desobediência decorreram depois todos os males no mundo inteiro.

Para fazer desaparecer do homem a morte de sua desobediência, em minha clemência providenciei, entregando-vos meu Filho unigênito com grande sabedoria, para que assim reparasse vosso dano. Impus-lhe uma grande obediência, a fim de que o gênero humano se livrasse do veneno que se difundira no mundo pela desobediência de vosso primeiro pai. Assim, como que cativo de amor e com verdadeira obediência, correu com toda a rapidez, correu à ignominiosa morte sacratíssima, deu-vos a vida, não pelo vigor de sua humanidade, mas da divindade”.

-- Do Diálogo sobre a Providência divina, de Santa Catarina de Sena, virgem (século XIV)

28 de out. de 2016

Como o Pai me enviou, também eu vos envio

Nosso Senhor Jesus Cristo designou guias e doutores do mundo e dispensadores de seus divinos mistérios. Semelhantes a lâmpadas, ordenou-lhes que esclarecessem e iluminassem não apenas o país dos judeus, mas todos os que existem sob o sol e em todo o universo, os homens e habitantes da terra. É verdadeiro aquele que disse: Ninguém se arroga esta honra, mas quem foi chamado por Deus (Hb 5,4). Pois nosso Senhor Jesus Cristo chamou ao nobilíssimo apostolado, antes de todos os outros, os seus discípulos. 

Os santos Apóstolos foram colunas e firmamento da verdade. A eles diz que os envia da mesma forma como foi enviado pelo Pai. Mostrou assim, ao mesmo tempo, a dignidade do apóstolo e a glória incomparável do poder que lhe foi dado; como também, parece-me, sugerindo a meta da vida apostólica. 

Pois, se julgava que devia enviar seus discípulos do mesmo modo como o Pai o enviara, como não se seguiria necessariamente que seus futuros imitadores iriam conhecer a que fim o Pai enviara o Filho? Por isto, declarando em vários lugares a finalidade de sua missão, dizia: Não vim chamar os justos, mas os pecadores para a conversão (cf. Mt 9,13). E também: Desci do céu não para fazer minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. Deus não enviou seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele (Jo 3,17). 

Resumindo assim, em poucas palavras, o objetivo do apostolado, diz que foram enviados por ele, como ele o fora pelo Pai e soubessem ter recebido a missão de chamar os pecadores à conversão; de curar os doentes de corpo e de espírito; de não procurar, no ministério, sua vontade, mas a daquele por quem foram enviados; e de salvar o mundo por sua doutrina. Não será difícil saber quanto os santos apóstolos se esforçaram por bem realizar todas estas tarefas, se leres os escritos dos Atos dos Apóstolos e de São Paulo.

-- Do Comentário sobre o Evangelho de João, de São Cirilo de Alexandria, bispo (século V)

27 de out. de 2016

Nas coisas criadas está impressa a imagem da Sabedoria

A forma da sabedoria foi criada em nós e está em tudo. É, portanto, muito justo que a verdadeira e
Santo Atanásio de Alexandria
criadora Sabedoria reivindique como própria sua forma em todas as coisas e diga: O Senhor me criou em suas obras (cf. Pr 8,22). Visto ser a sabedoria existente em nós quem fala, o Senhor a nomeia como bem próprio.  

Não é, portanto, criado aquele que é o criador, mas por causa de sua imagem nas obras criadas, fala destas como de si mesmo. Do modo como o Senhor diz: Quem vos recebe a mim recebe (Mt 10,40), porque sua imagem está em nós, embora não incluído entre as coisas criadas, por ser sua forma e imagem criada nas obras, diz como de si mesmo: O Senhor no início de seus caminhos me criou (Pr 8,22).  

A forma da sabedoria foi dada às criaturas para que o mundo nelas reconhecesse o Verbo, seu artífice, e pelo Verbo,o Pai. Na verdade é o mesmo que Paulo ensina: Porque o que se pode conhecer de Deus é manifesto para eles, Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo, através de suas criaturas as realidades invisíveis são contempladas pela inteligência (cf. Rm 1,19-20). Por conseguinte, o Verbo, por natureza, de modo algum é criado, mas este trecho deve ser entendido a respeito da sabedoria que se diz estar e ser verdadeiramente em nós.

Entretanto, se alguém não quiser acreditar nisto, responda-me: há ou não sabedoria nas coisas criadas? Se não há nenhuma, como é que o Apóstolo se queixa com as palavras: Pois que, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria? (1Cor 1,21). Ou se não existe sabedoria, por que se comemora na Escritura a multidão dos sábios? Pois o sábio atemorizado afasta-se do mal (Pr 14,16), e com sabedoria constrói a casa (Pr 24,3).

O Eclesiastes também diz: A sabedoria do homem iluminará seu rosto (Ecl 8,1); e censura os temerários com as palavras: Não digas: Por que é que os tempos passados foram melhores do que os presentes? Não foi com sabedoria que indagaste isto (Ecl 7,10).

Então, se nas coisas criadas há sabedoria, como o filho de Sirac atesta: Difundiu-a em todas as suas obras e em todos os mortais conforme seu dom, e concedeu-a aos que o amam (Eclo 1,7-8), esta efusão não foi absolutamente da Sabedoria em sua natureza que subsiste por si mesma e é unigênita, mas daquela que se expressa no mundo. Que há, pois, de incrível que a própria Sabedoria criadora e verdadeira diga a respeito da sabedoria e ciência, forma ou figura suas, difundidas no mundo, como se fosse de si mesma: O Senhor me criou em suas obras? A sabedoria existente no mundo não é criadora, mas foi criada nas coisas; por ela os céus narram a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos (Sl 18,2).

-- Dos Discursos contra os arianos, de Santo Atanásio, bispo

21 de out. de 2016

O Espírito intercede por nós

Quem pede ao Senhor aquele único bem e o procura com empenho, pede cheio de segurança e não teme ser-lhe prejudicial o recebê-lo; sem ele, nada do que puder receber como convém lhe adiantará. Pois é a única verdadeira vida e a única feliz. Contemplar eternamente a maravilha do Senhor, imortais e incorruptos de corpo e de espírito. Em vista desta única vida tudo o mais se há de pedir sem impropriedade. Quem a possuir terá tudo quanto desejar. Nem desejará o que não convém e que ali nem mesmo pode existir.

Ali, com efeito, está a fonte da vida, de que temos sede agora na oração, enquanto vivemos na esperança e ainda não vemos o que esperamos; à sombra de suas asas, diante de quem está todo nosso desejo, para embriagarmo-nos da riqueza de sua casa e bebermos da torrente de suas delícias. Porque junto dele está a fonte da vida e à sua luz veremos a luz (cf. Sl 35,8-10), quando se saciar de bens nosso anseio e nada mais haverá a procurar com gemidos, mas só aquilo que no gozo abraçaremos.

Todavia ela é também a paz que supera todo entendimento. Por isso, ao orarmos para obtê-la, não sabemos fazê-lo como convém. Porque não podemos nem mesmo imaginar como é, então não sabemos.

Mas tudo o que nos ocorre ao pensar, afastamos, rejeitamos, desaprovamos. Não é isto o que procuramos, embora não saibamos ainda qual seja. Há em nós, por assim dizer, uma douta ignorância, mas douta pelo Espírito de Deus que vem em auxílio de nossa fraqueza. Tendo o Apóstolo dito: Se, porém, esperamos o que não vemos, aguardamos com paciência, acrescenta: Do mesmo modo o Espírito vem em auxílio de nossa fraqueza; pois não sabemos orar como convém; mas o próprio Espírito intercede com gemidos inexprimíveis. Aquele que perscruta os corações conhece o desejo do Espírito, porque sua intercessão pelos santos corresponde ao desígnio de Deus (Rm 8,25-27).

Não se há de entender isto como se o Santo Espírito de Deus, que é Deus na Trindade imutável e como Pai e o Filho um só Deus, interceda em favor dos santos, como alguém que não seja o mesmo Deus. Na verdade se diz: Interpela em favor dos santos porque faz os santos intercederem. Como se diz: O Senhor, vosso Deus, vos tenta para saber se o amais (Dt 13,4), quer dizer: para vos fazer saber. Por conseguinte faz que os santos intercedam com gemidos inexprimíveis, inspirando-lhes o desejo da maravilha ainda desconhecida que aguardamos pela paciência. Por que e como exprimir o desejo daquilo que se ignora? Na realidade, se se ignorasse totalmente, não se desejaria. Por outro lado, se já se vise, não se desejaria nem se procuraria com gemidos.

-- Da Carta a Proba, de Santo Agostinho, bispo (século V)

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