27 de fev. de 2021

Eis aí o teu filho - homília de Quaresma

Quando Jesus viu sua mãe e o discípulo que amava ao pé da cruz, Ele disse "Mulher, eis aí teu filho! e então disse ao discípulo "Eis aí tua mãe!". E a partir daquele momento, o discípulo considerou-a sua mãe. (João 19, 26-27). Em outra catequese, falamos de Maria como Mãe de Deus ,hoje falarei sobre Maria, Mãe dos Cristãos, nossa mãe.

Devemos imediatamente ressaltar que não estamos lidando com dois títulos e duas verdades do mesmo nível. Mãe de Deus é um título solenemente atribuído a Maria e é baseado na maternidade real. Tem uma conexão essencial com a principal verdade da nossa fé, pois Jesus é ao mesmo tempo Deus e homem, na mesma pessoa, Mãe de Deus é um título proclamado por toda igreja. Mãe dos Cristãos ou Nossa Mãe indica a maternidade espiritual, não tão relacionado às principais verdades da nossa fé, não podemos dizer que utilizado por todos cristãos, em qualquer lugar e sempre, mas reflete a doutrina e devoção de algumas Igrejas, em especial da Igreja Católica.

 Calvário, de Josse Lieferinxe (c. 1500)

Santo Agostinho nos ajuda a entende as semelhanças e diferenças entre estas duas maternidades. Fisicamente, Maria é apenas Mãe de Jesus, enquanto, espiritualmente, por fazer a vontade de Deus, ela é nossa irmã e mãe. Ela não foi a mãe espiritual de Jesus, a cabeça da Igreja, nosso Salvador, mas ela certamente é a mãe espiritual de todos nós, membros do corpo de Cristo, por que sua caridade cooperou para o nascimento da igreja da qual todos nós somos memberos.

Nesta meditação, gostaria de trazer à luz toda riqueza e o dom de Cristo, que está contido neste título, não apenas para que utilizemos estes títulos para honrar Maria, mas para edificar nossa fé e imitarmos a Cristo.

Assim como a maternidade física, a espiritual ocorre em dois momentos diferentes: concepção e nascimento. Apenas um não é suficiente. Maria experimentou ambos, ela espiritualmente nos concebeu e nos trouxe a luz. Ela nos concebeu, isto é, nos recebeu, quando entendeu que seu filho não era como os outros meninos, compreensão esta iniciou na Anunciação do anjo e progrediu na medida que Jesus gradualmente avançava na sua missa. Ele era o Messias em torno do qual uma comunidade estava sendo formada. Este tempo da concepção de Maria ocorreu através de seu "sim", foi um tempo de alegria.

Ao pé da cruz, Maria teve seu tempo de sofrimento. Jesus, naquele momento, referiu-se a ela como "Mulher". Sabendo que o João Evangelista, além do discurso direto, utilizou muitos alusões, símbolos e referências, estas palavras fazem-nos pensar em outras passagens, como quando Jesus disse: Quando a mulher está para dar à luz, sofre porque veio a sua hora (Jo 16, 21) e, no livro do Apocalipse: uma mulher ... estava grávida, e já com as dores de parto, e gritava na ânsia de dar à luz (Ap 12, 1-2).

Mesmo que entendamos esta mulher como sendo a Igreja, a comunidade da nova aliança dando à luz ao novo homem e nova mulher, Maria estava pessoalmente envolvida com esta comunidade inicial de fiéis. Esta comparação entre Maria e a Mulher foi aceita pela Igreja desde o inicio. Santo Irineu, um dos discípulos de São Policarpo, e este de São João, ja falava de Maria como a nova Eva, a nova "mãe de todos viventes".

Examinemos agora o texto de São João para ver se há alguma referência nele para o que estamos dizendo. As palavras de Jesus para Maria "Mulher, eis teu filho" e para João, "Eis tua mãe", tem um significado direto e real. Jesus confiou João a Maria e Maria a João.

Mas este não é o significado completo da cena. A exegêse moderna, que tem feito enormes progressos na compreensão da linguagem e expressões do quarto Evangelho, está ainda mais convencida disto que os Santos Padres estavam. Se apenas lermos a passagem de maneira simples e direta, considerando apeans o que está escrito, parece algo fora do lugar, algo que não combina com o restante do texto. Para João, o momento da morte era o momento da glorificação de Jesus, o cumprimento final das Escrituras.

Então, dado este fato, é muito estranho que o texto contenha algo privado e pessoal, não um comentário universal e eclesial ligando esta mulher às mulheres de Genêsis 3,15 e Apocalipse 12. O significado eclesial é que o discípulo não era apenas João, mas representava todos os discípulos de Cristo, a sua Igreja. Cristo morrendo nos deixou ao cuidado de Maria como seus filhos, assim como Maria foi dada a nós como nossa mãe.

As vezes as palavras de Jesus descrevem algo presente e revelam aquilo que já era uma verdade; outras, criam e trazem a existência aquilo que elas expressam. As palavras de Jesus morrendo na cruz para Maria e João são do segundo tipo. Neste sentido, são semelhantes a quando ele disse, "Este é meu corpo", ali Jesus fez Maria mãe de João e João, filho de Maria. Ele não proclamou a nova maternidade de Maria, ele a instituiu. Não é uma palavra que tenha vindo de Maria, é uma Palavra de Deus, não se baseia nos méritos de Maria, mas na graça de Deus.

Aos pés da cruz, Maria se torna a filha de Sião, que após a perda do seu filho, recebe uma nova e numerosa família de Deus, mas uma família no Espírito, não na carne. Um salmo, que a liturgia aplica a Maria, diz: "Ajuntarei Raab e Babilônia aos que me honram; eis a Filisteia e Tiro com a Etiópia, lá todos nasceram. Será dito de Sião: “Um por um, todos esses homens nela nasceram; foi o próprio Altíssimo quem a fundou. O Senhor inscreverá então no registro dos povos: 'Aquele também nasceu em Sião'"  (Sl 87, 4-6). E, de fato, é verdade, todos nascemos em Sião! Isto deve ser dito de Maria, a nova Sião, este e aquele são nascidos dela. Eu, você, cada pessoa, até mesmo aqueles que ainda não sabem, esta escrito no registro de Deus: "Este homem nasceu em Sião"

Mas, não fomos "nascidos ... pela palavra de Deus, viva e eterna" (1Pd 1,23)? Não somos todos "nascidos de Deus" (Jo 1,13), renascidos pela "água e Espírito" (Jo 3,5)? Tudos isto é verdade, mas não deixa de ser verdade de que, em outro sentido, somos filhos de Maria, sua fé e sofrimento. Se São Paulo, um apóstolo de Cristo, pode dizer a seus seguidores, "fui eu que vos gerei em Cristo Jesus pelo Evangelho" (1Cor 4,15), não poderia Maria, com ainda mais razão, eu me tornei tua mãe em Cristo? Quem tem mais direito de dizer as palavras do apóstolo: "Filhinhos meus, por quem de novo sinto dores de parto, até que Cristo seja formado em vós" (Gal 4,19)? Ela deu a luz novamente ao pé da cruz, por que ela já havia dado a luz antes, na alegria, não no sofrimento, quando deu a luz à palavra viva e eterna, Cristo, do qual renascemos.

Assim como aplicamos a Maria, aos pés da cruz, a lamentação de Sião, que bebeu do cálice da ira divina, também, confiando no poder infinito da palavra de Deus, que vai muito além dos nossos esquemas exegéticos, também podemos aplicar a Maria o hino de Sião reconstruída após o exílio, que maravilhada, olha por todos seus filhos e exclama: "'Quem me gerou estes filhos?'. Não tinha filhos, era estéril: 'Quem os criou?'. Eis que eu estava desamparada e só: 'De onde vieram eles?'" (Is 49,21).


-- Padre Raniero Cantalamessa, quarta homília de Quaresma, parte I, 3 de Abril de 2020. 

-- tradução própria 

Nota: nos próximos publicarei as segunda e terceira parte da homília.

22 de fev. de 2021

O conhecimento do Pai através da Sabedoria criadora e humana

Ícone da Santa Sabedoria
  A unigênita Sabedoria de Deus é quem cria e dá realidade a tudo. Tudo, como se disse, fizeste na sabedoria; e também: A terra está repleta de tua criação.

 Para que as coisas não apenas existissem, mas existissem boamente, aprouve a Deus doar-se, por meio de sua Sabedoria, a todas as suas criaturas, imprimindo-lhes alguma coisa da semelhança e da beleza de si mesmo em todas e em cada uma. Deste modo tornou claro serem todas as criaturas ornadas de sabedoria e obras dignas de Deus.

 Assim como nossa palavra ou verbo é a imagem do Verbo, o Filho de Deus, também a sabedoria posta em nós é a sua imagem da sabedoria do Verbo de Deus, isto é, da própria Sabedoria. Na sabedoria posta em nós, tendo a capacidade de saber e de compreender, nós nos tornamos aptos a receber a Sabedoria criadora e, por ela, a conhecer o seu Pai. Porque quem tem o Filho, diz ele, tem também o Pai, e: Quem me recebe, recebe aquele que me enviou. Por conseguinte, já que uma forma criada da Sabedoria existe em nós e em tudo, é justo que a verdadeira e criadora Sabedoria reconheça pertencer-lhe esta forma e diga: O Senhor me criou em suas obras.

 Mas porque, como já explicamos, o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria, foi do agrado de Deus salvar os que crêem pela estupidez da pregação. Já não mais, como nos tempos antigos, Deus quis ser conhecido pela imagem e sombra da sabedoria existente nas coisas criadas, mas quis que a verdadeira Sabedoria, ela mesma, assumisse a carne, se fizesse homem e padecesse a morte da cruz, a fim de que nela firmados pela fé, todos os que crêem pudessem ser salvos de então em diante.

 Portanto, é a Sabedoria de Deus, a mesma que anteriormente, por sua própria imagem impressa nas criaturas – e por isso a chamamos sabedoria criada – se fazia conhecer não somente a si, como ainda, através de si, o seu Pai. Depois, ela ainda, que é o Verbo, fez-se carne, como disse São João e, destruída a morte e libertada nossa raça, manifestou-se a si mesma e, em si, também ao Pai, de modo ainda mais claro. Daí estas palavras: Dá-lhes que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus, e ao que enviaste, Jesus Cristo.

 Por isto, a terra inteira está cheia de seu conhecimento. Na verdade, um só é o conhecimento que temos do Pai através do Filho e do Filho a partir do Pai. O Pai alegra-se com a única e mesma alegria com que o Filho se delicia no Pai, dizendo: Era eu que fazia sua alegria, em sua presença, cada dia, eu me deliciava.

-- Dos Sermões contra os Arianos, de Santo Atanásio, bispo (Séc. IV)

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