27 de jun. de 2022

É ele o Senhor, nosso Deus; nós, povo de suas pastagens


 As palavras que cantamos contêm nossa declaração: somos ovelhas de Deus, porque ele é o Senhor nosso Deus, que nos fez. Ele é o nosso Deus, nós somos o povo de suas pastagens e as ovelhas de suas mãos. Não foram os pastores que fizeram suas ovelhas, não foram eles que criaram os animais que levam a pastar. Mas o Senhor, nosso Deus, por ser Deus e criador, foi ele mesmo que fez para si as ovelhas que possui e que apascenta. Não foi um a criar aquelas que ele apascenta, nem outro a apascentar as que criou!

            Declaramos, pois, neste cântico, que somos as suas ovelhas, o povo de suas pastagens, as ovelhas de suas mãos. Ouçamos agora o que nos diz, a nós, a suas ovelhas. Primeiro, ele falava aos pastores; agora, porém, fala às ovelhas. Postos entre os pastores, nós ouvíamos as suas palavras com tremor, e vós, com segurança. Que acontece nestas palavras de hoje? Será que por alternância, nós com segurança, vós, com tremor? Absolutamente não. Primeiro porque, se somos pastores, o pastor ouve com tremor não apenas o que é dito aos pastores, mas também o que se diz às ovelhas. Se ouve tranquilo o que se diz às ovelhas, pouco se importa com elas. Em seguida, e já o dissemos à vossa caridade, há duas coisas a considerar em nós: uma, que somos cristãos; outra que somos prelados. Por sermos prelados, somos contados entre os pastores, se formos bons. Por sermos cristãos, convosco também somos ovelhas. Portanto, quer fale o Senhor aos pastores, quer fale às ovelhas, temos de ouvir tudo com tremor, sem que diminua a solicitude de nosso coração.

            Ouçamos então, irmãos, a razão pela qual o Senhor castiga as ovelhas más e o que promete às suas. E vós, assim diz, sois minhas ovelhas. Antes do mais, que felicidade ser do rebanho de Deus, tão grande que se alguém nela pensar, irmãos, até mesmo nas lágrimas e nas tribulações de agora, lhe vem imensa alegria. De quem foi dito: Que apascentas Israel, é aquele mesmo de quem se diz: Não cochilará nem há de dormir quem guarda Israel. Por conseguinte, ele vigia sobre nós acordados, vigia sobre nós adormecidos. Se, pois, o rebanho de um homem se sente seguro pelo pastor homem, que segurança não deve ser a nossa por ser Deus mesmo que nos apascenta, e não apenas porque nos alimenta, mas também porque nos fez?

            Vós, ovelhas minhas, assim diz o Senhor Deus: eis que distingo entre ovelha e ovelha, entre bodes e cabritos. Que fazem aqui no rebanho de Deus os cabritos? Nas mesmas pastagens, nas mesmas fontes e, no entanto, cabritos destinados à esquerda se misturam aos da direita. São tolerados antes de ser separados. Provam a paciência das ovelhas à semelhança da paciência de Deus. Ele fará, sim, a separação, uns à esquerda, outros à direita.

-- Santo Agostinho, bispo (século V)

18 de jun. de 2022

Tomai e comei, este é o meu corpo. Tomai e bebei, este é o meu sangue


Agora podemos identificar algumas consequências práticas da doutrina sobre a Eucaristia em nossas vidas diárias. Se na consagração nós [padres] dizemos "Tomai e comei, este é o meu corpo. Tomai e bebei, este é o meu sangue", devemos entender o que as palavras "corpo" e "sangue" significam., isto é, o que estamos ofertando.

Na Bíblia corpo não indica apenas uma parte ou o objeto físico que combinado com a alma e o espírito formam um ser humano completo. Na linguagem bíblica utilizada por Jesus e Paulo, corpo indica também como a pessoa vive, toda condição corporal e mortal da pessoa. Corpo, portanto, significa a vida completa de uma pessoa, seus atos, pensamentos e emoções. Ao instituir a Eucaristia, Jesus nos deixou a sua vida como um dom, do primeiro instante da incarnação até o último momento, com tudo que concretamente se realizou na sua vida: os momentos de silêncio, orações, trabalho, dificuldades, humilhações, etc...

Jesus também disse "Este é o meu sangue", mas por que ele acrescenta a palavra "sangue" se ele já havia dado seu corpo e o sangue é parte do corpo? Ele está acrescentando sua morte! Após nos dar sua vida, Ele também nos deixa a parte mais preciosa da sua vida, sua morte. De fato, o termo sangue não indica apenas uma parte do corpo de uma pessoa, também indica um evento: a morte. Se o sangue é onde reside a vida, como era entendido naquela época, derramar seu sangue é dar sua vida. A Eucaristia é o mistério do corpo e sangue de Jesus, isto é, de sua vida e morte!

Agora pergunto, pensando em nós, ao ofertarmos nosso corpo e nosso sangue junto com o de Jesus na Missa, o que estamos realmente ofertando? Também somos chamados a ofertar o Jesus ofereceu: nossa vida e nossa morte. Com a palavra corpo, estamos dando tudo que constitui nossa vida neste mundo: tempo, saúde, energia, habilidades, afetos, até pequenos gestos como um sorriso. Com a palavra sangue, estamos nos referindo a nossa morte, não necessariamente a morte definitiva, um martírio por Jesus e nossos irmãos. Tudo em nós prepara e antecipa a morte: humiliações, falhas, doenças, limitações da idade, tudo que nos mortifica.

Tudo isto requer que após sairmos da Missa, façamos o nosso mlhor para realizar o que acabamos de dizer, que realmente tentemos, com todas nossas limitações, oferecer aos nossos irmãos e irmãs, nosso corpo, isto é, nosso tempo, energia e atenção, nossa vida. É necessário que após termos dito "tomai e comei", nos deixemos realmente ser consumidos, inclusive por aqueles que não o fazem com todo amor, respeito e delicadeza que desejamos. Santo Inácio de Antioquia, quando estava indo para Roma, onde seria morto, escreveu: "Eu sou trigo de Cristo, que eu seja devorado pelos dentes afiados das feras para me tornar o puro pão do Senhor". Cada um de nós, se olharmos atentamente, possuimos estes dentes afiados das feras, e atacamos com críticas, discussões, brigas abertas ou escondidas, diferentes visões e caráter.

Vamos imaginar o que aconteceria se celebrarmos a Missa com esta participações especial, se todos disséssemos, no momento da consagração, alguns em voz alta, outros em silêncio, "tomai e comei". Um padre e, ainda mais, um bispo, celebra a Missa desta maneira e depois vai pelo resto do dia: ele reza, prega, confessa, recebe pessoas, visita doentes, escuta, ensina, etc.... o dia deve também ser uma Eucaristia. Um grande pregador francês, Pierre Olivaint (1816-1871), costumava dizer: "Na manhã, quando celebro a Missa, eu sou o sacerdote e Jesus a vítima; ao longo do dia, Jesus é o sacerdote e eu sou a vítima". É assim que um padre imita o Bom Pastor, quando ele dá a vida às suas ovelhas.

Nossa participação na Eucaristia

Gostaria de concluir, usando um exemplo bastante humano, o que ocorre na celebração eucarística. Imaginem uma grande família, onde haja um filho, o mais velho, que admira e ama seu pai. Para seu aniversário, ele gostaria dar um presente precioso, mas antes de dar o presente, ele pede a todos seus irmãos e irmãs que também assinem o cartão. O pai recebe o presente como uma prova de amor de todos seus filhos e filhas, sem distinção, quando, na realidade, foi apenas o mais velho que pagou pelo presente. 

Isto é o que acontece no sacrifício eucarístico, Jesus admira e ama o Senhor infinitamente. Ele deseja dar todos os dias, até o final dos tempos, o mais precioso presente que alguém pode imaginar, sua própria vida. Na Missa, Ele convida seus irmãos e irmãs a colocar sua assiantura no presente, para que chegue até o Pai como um presente de todos seus filhos, mesmo que apenas um tenha se sacrificado por ele. E que sacrifício foi o de Jesus!

Nossa participação, nossa assinatura, são as pequenas gotas de água que são acrecentadas ao cálice de vinho. Elas não são nada mais do que água, mas misturadas ao vinho do cálice, tornam-se uma coisa só. A nossa assinatura é o Amém solene que a assembléia pronuncia ou canta, ao final da doxologia "Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória agora e para sempre" respondemos "AMÉM!".

Sabemos que quem assina um contrato deve honrar sua assinatura. Isto significa que ao deixarmos a Missa, devemos fazer da nossa vida um dom de amor ao Pai eplo bem de nossos irmãos e irmãs. Nós, eu repito, não somos apenas chamados a celebrar a Eucaristia, mas fazermos eucaristia. Que Deus possa nos ajudar!

-- Padre Raniero Cantalamessa, segunda catequese no Tempo de Quaresma, 18 de Março de 2022.

--  Esta é a terceira parte de uma catequese sobre Eucaristia. Na primeira parte, Padre Raniero falou da Eucaristia na tradição judaica e como Jesus transformou sua natureza ai dizer: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” e "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós". Na segunda parte, falou do papel dos padres na Eucaristia.


6 de jun. de 2022

Maria, Mãe da Igreja

 

Considerando as estreitas relações de Maria com a Igreja, para a glória da Santa Virgem e para nosso conforto, proclamamos Maria Santíssima Mãe da Igreja, isto é, de todo o povo de Deus, tanto dos fiéis como dos Pastores, que lhe chamam Mãe amorosíssima; e queremos que, com este título suavíssimo, a Mãe de Deus seja doravante ainda mais honrada e invocada por todo o povo cristão.

Trata-se de um título que não é novo para a piedade dos cristãos; pois é justamente com este nome de Mãe, de preferência a qualquer outro, que os fiéis e a Igreja toda costumam dirigir-se a Maria. Na verdade, ele pertence à genuína substância da devoção a Maria, achando sua justificação na própria dignidade da Mãe do Verbo Encarnado.

Efetivamente, assim como a Maternidade divina é o fundamento da especial relação de Maria com Cristo e da sua presença na economia da salvação operada por Cristo Jesus, assim também essa Maternidade constitui o fundamento principal das relações de Maria com a Igreja, sendo ela a Mãe daquele que, desde o primeiro instante da sua Encarnação, no seu seio virginal, uniu a si, como Cabeça, o seu Corpo Místico, que é a Igreja. Maria, pois, como Mãe de Cristo, também é Mãe dos fiéis e de todos os Pastores, isto é, da Igreja.

Portanto, é com ânimo cheio de confiança e de amor filial que elevamos o olhar para ela, não obstante a nossa indignidade e fraqueza. Ela, que em Jesus nos deu a fonte da graça, não deixará de socorrer a Igreja com seu auxílio materno, sobretudo neste tempo em que a Esposa de Cristo se empenha, com novo alento, na sua missão salvadora.

A nossa confiança é ainda mais reavivada e corroborada quando consideramos os laços estreitíssimos que prendem esta nossa Mãe celeste ao gênero humano. Embora na riqueza das admiráveis prerrogativas com que Deus a adornou para fazê-la digna Mãe do Verbo Encarnado, ela está, todavia, pertíssimo de nós. Filha de Adão, como nós, e por isto nossa irmã por laços de natureza, ela é, entretanto, a criatura preservada do pecado original em vista dos méritos de Cristo, e que, aos privilégios obtidos junta a virtude pessoal de uma fé total e exemplar, merecendo o elogio evangélico de: Bem-aventurada és tu, porque acreditaste (Lc 1,45).

Na sua vida terrena, ela realizou a perfeita figura do discípulo de Cristo, espelho de todas as virtudes, e encarnou as bem-aventuranças evangélicas proclamadas por Cristo Jesus. Por isso, toda a Igreja, na sua incomparável variedade de vida e de obras, encontra nela a forma mais autêntica de perfeita imitação de Cristo.

--  Do Discurso de São Paulo VI, papa, no encerramento da terceira sessão do Concílio Vaticano II (21 de novembro de 1964)

4 de jun. de 2022

Quem está comigo, está junto do fogo



 
Prezados irmãos e irmãs!

Na solene celebração do Pentecostes, somos enviados a professar a nossa fé na presença e na ação do Espírito Santo e a invocar a sua efusão sobre nós, sobre a Igreja e sobre o mundo inteiro. Portanto, façamos nossa, e com intensidade particular, a invocação da própria Igreja:  Veni, Sancte Spiritus! Uma invocação tão simples e imediata, mas ao mesmo tempo extraordinariamente profunda, que brota em primeiro lugar do Coração de Cristo. Com efeito, o Espírito é o dom que Jesus pediu e pede continuamente ao Pai pelos seus amigos; o primeiro e principal dom que nos obteve com a sua Ressurreição e Ascensão ao Céu.

Desta oração de Cristo fala-nos o trecho evangélico, que tem como contexto a Última Ceia. O Senhor Jesus disse aos seus discípulos:  "Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre" (Jo 14, 15-16). Aqui revela-se-nos o Coração orante de Jesus, o seu Coração filial e fraterno. Esta oração alcança o seu ápice e o seu cumprimento na cruz, onde a invocação de Cristo se identifica com o dom total que Ele faz de si mesmo, e deste modo o seu rezar torna-se por assim dizer o próprio selo do seu doar-se em plenitude por amor ao Pai e à humanidade:  invocação e doação do Espírito Santo encontram-se, compenetram-se e tornam-se uma única realidade. "E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre". Na realidade, a oração de Jesus – a da Última Ceia e a da cruz – é uma oração que permanece também no Céu, onde Cristo está sentado à direita do Pai. Com efeito, Jesus vive sempre o seu sacerdócio de intercessão a favor do povo de Deus e da humanidade, e portanto reza por todos pedindo ao Pai o dom do Espírito Santo.

A narração do Pentecostes no livro dos Atos dos Apóstolos – ouvimo-lo na primeira leitura – (cf. At 2, 1-11) apresenta o "novo curso" da obra de Deus, baseado na ressurreição de Cristo, obra que envolve o homem, a história e o cosmos. Do Filho de Deus morto e ressuscitado, que voltou para o Pai, emana agora sobre a humanidade com energia inédita o sopro divino, o Espírito Santo. E o que produz esta nova e poderosa autocomunicação de Deus? Onde existem lacerações e estraneidades, ela cria unidade e compreensão. Tem início um processo de reunificação entre as partes da família humana, divididas e dispersas; as pessoas, muitas vezes reduzidas a indivíduos em competição ou em conflito entre si, alcançadas pelo Espírito de Cristo, abrem-se à experiência da comunhão, que pode empenhá-las a ponto de fazer delas um novo organismo, um novo sujeito:  a Igreja. Este é o efeito da obra de Deus:  a unidade; por isso, a unidade é o sinal de reconhecimento, o "cartão de visita" da Igreja no curso da sua história universal. Desde o início, do dia do Pentecostes, ela fala todas as línguas. A Igreja universal precede as Igrejas particulares, as quais devem conformar-se sempre com ela, segundo um critério de unidade e universalidade. A Igreja nunca permanece prisioneira de confins políticos, raciais ou culturais; não se pode confundir com os Estados e nem sequer com as Federações de Estados, porque a sua unidade é de outro tipo e aspira a atravessar todas as fronteiras humanas.

Amados irmãos, disto deriva um critério prático de discernimento para a vida cristã:  quando uma pessoa, ou uma comunidade, se fecha no seu próprio modo de pensar e de agir, é sinal que se afastou do Espírito Santo. O caminho dos cristãos e das Igrejas particulares deve confrontar-se sempre com o da Igreja, una e católica, e harmonizar-se com ele. Isto não significa que a unidade criada pelo Espírito Santo é uma espécie de igualitarismo. Pelo contrário, ela é sobretudo o modelo de Babel, ou seja, a imposição de uma cultura da unidade que poderíamos definir "técnica". Com efeito, a Bíblia diz-nos (cf. Gn 11, 1-9) que em Babel todos falavam uma só língua. Pelo contrário, no Pentecostes os Apóstolos falam línguas diferentes, de modo que cada um compreenda a mensagem no seu próprio idioma. A unidade do Espírito manifesta-se na pluralidade da compreensão. A Igreja é por sua natureza una e múltipla, destinada como está a viver em todas as nações, em todos os povos e nos mais diversificados contextos sociais. Ela responde à sua vocação, de ser sinal e instrumento de unidade de todo o gênero humano (cf. Lumen gentium, 1), apenas se permanece autônoma de qualquer Estado e de toda a cultura particular. Sempre e em cada lugar, a Igreja deve ser verdadeiramente católica e universal, a casa de todos, onde cada um se pode encontrar.

A narração dos Atos dos Apóstolos oferece-nos também outra sugestão muito concreta. A universalidade da Igreja é expressa pelo elenco dos povos, segundo a antiga tradição:  "Somos Partas, Médios, Elamitas...", etc. Pode-se observar aqui que São Lucas vai além do número 12, que já expressa sempre uma universalidade. Ele olha além dos horizontes da Ásia e do noroeste da África, e acrescenta outros três elementos:  os "Romanos", ou seja, o mundo ocidental; os "judeus e prosélitos", incluindo de modo novo a unidade entre Israel e o mundo; e enfim "Cretenses e Árabes", que representam Ocidente e Oriente, ilhas e terra firme. Esta abertura de horizontes confirma ulteriormente a novidade de Cristo na dimensão do espaço humano, da história das gentes:  o Espírito Santo envolve homens e povos e, através deles, supera muros e barreiras.

No Pentecostes, o Espírito Santo manifesta-se como fogo. A sua chama desceu sobre os discípulos reunidos, acendeu-se neles e infundiu-lhes o novo ardor de Deus. Realiza-se assim aquilo que o Senhor Jesus tinha predito:  "Vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já tivesse sido ateado!" (Lc 12, 49). Juntamente com os fiéis das diversas comunidades, os Apóstolos levaram esta chama divina até aos extremos confins da Terra; abriram assim um caminho para a humanidade, uma senda luminosa, e colaboraram com Deus que com o seu fogo quer renovar a face da terra. Como é diferente este fogo, daquele das guerras e das bombas! Como é diverso o incêndio de Cristo, propagado pela Igreja, em relação aos que são acendidos pelos ditadores de todas as épocas, também do século passado, que atrás de si deixam terra queimada. O fogo de Deus, o fogo do Espírito Santo, é aquele da sarça que ardia sem se consumir (cf. Êx 3, 2). É uma chama que arde, mas não destrói; aliás, ardendo faz emergir a parte melhor e mais verdadeira do homem, como numa fusão faz sobressair a sua forma interior, a sua vocação à verdade e ao amor.


Um Padre da Igreja, Orígenes, numa das suas Homilias sobre Jeremias, cita um dito atribuído a Jesus, não contido nas Sagradas Escrituras mas talvez autêntico, que reza assim:  "Quem está comigo está junto do fogo" (Homilia sobre Jeremias l. I [III]). Com efeito, em Cristo habita a plenitude de Deus, que na Bíblia é comparado com o fogo. Há pouco pudemos observar que a chama do Espírito Santo arde mas não queima. E todavia, ela realiza uma transformação, e por isso deve consumir algo no homem, as escórias que o corrompem e o impedem nas suas relações com Deus e com o próximo. Porém, este efeito do fogo divino assusta-nos, temos medo de nos "queimar", preferiríamos permanecer assim como somos. Isto depende do facto que muitas vezes a nossa vida é delineada segundo a lógica do ter, do possuir, e não do doar-se. Muitas pessoas crêem em Deus e admiram a figura de Jesus Cristo, mas quando se lhes pede que abandonem algo de si mesmas, então elas recuam, têm medo das exigências da fé. Existe o temor de ter que renunciar a algo de bonito, ao que estamos apegados; o temor de que seguir Cristo nos prive da liberdade, de certas experiências, de uma parte de nós mesmos. Por um lado, queremos permanecer com Jesus, segui-lo de perto, e por outro temos medo das consequências que isto comporta.

Caros irmãos e irmãs, temos sempre necessidade de ouvir o Senhor Jesus dizer-nos aquilo que Ele repetia aos seus amigos:  "Não tenhais medo!". Como Simão Pedro e os outros, temos que deixar que a sua presença e a sua graça transformem o nosso coração, sempre sujeito às debilidades humanas. Temos que saber reconhecer que perder algo, aliás, perder-se a si mesmo pelo Deus verdadeiro, o Deus do amor e da vida, é na realidade ganhar, encontrar-se mais plenamente a si próprio. Quem se confia a Jesus experimenta já nesta vida a paz e a alegria do coração, que o mundo não pode dar, e nem sequer pode tirar, uma vez que foi Deus quem no-las concedeu. Portanto, vale a pena deixar-se tocar pelo fogo do Espírito Santo! A dor que nos causa é necessária para a nossa transformação. É a realidade da cruz:  não é por acaso que, na linguagem de Jesus, o "fogo" é sobretudo uma representação do mistério da cruz, sem o qual o cristianismo não existe. Por isso, iluminados e confortados por estas palavras de vida, elevemos a nossa invocação:  Vinde, Espírito Santo! Ateai em nós o fogo do vosso amor! Sabemos que esta é uma oração audaz, com a qual pedimos para ser tocados pela chama de Deus; mas sabemos sobretudo que esta chama – e só ela – tem o poder de nos salvar. Para defender a nossa vida, não queremos perder a vida eterna que Deus nos quer conceder. Temos necessidade do fogo do Espírito Santo, porque só o Amor redime. Amém! 

-- Papa Bento XVI, Homília na Festa de Pentecostes, 2010.

3 de jun. de 2022

Eucaristia: sacerdote e vítima


 Esta é a segunda parte de uma catequese sobre Eucaristia. Na primeira parte, Padre Raniero falou da Eucaristia na tradição judaica e como Jesus transformou sua natureza ai dizer: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” e "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós". É interessante antes ler a primeira parte.


Até aqui abordei os aspectos litúrgicos e rituais da consagração eucarística. Agora vou falar de outro aspecto, de um tipo mais pessoal e existencial, isto é, do papel que nós, padres e fiéis, temos no momento da Missa. Para entender o papel de um padre na consagração, é de importância vital entender a natureza do sacríficio e sacerdócio de Cristo por que é deles que o sacerdócio cristão se origina, tanto o sacerdócio de inistros ordenados quanto dos fiéis batizados.

De fato não somos mais "sacerdotes segundo a ordem de Melquisedec", somos "sacerdotes segundo a ordem de Jesus Cristo"; no altar agimos "in persona Christi", representamos o sacerdote principal, Jesus Cristo. No simpósio sobre o sacerdócio, realizado neste local mês passado, abordou este assunto muito mais do que posso fazer em minha breve reflexão, mas é necessário dizer algo, aqui, para a compreensão da Eucaristia.  

A Carta aos hebreus explica a novidade e excepcionalidade do sacerdócio de Cristo: "sem levar consigo o sangue de carneiros ou novilhos, mas com seu próprio sangue, [Cristo] entrou de uma vez por todas no santuário, adquirindo-nos uma redenção eterna" (Hb 9,12). Todos sacerdotes oferecem algo não pessoal, mas Cristo ofereceu a si mesmo; sacerdotes comuns oferecem vítimas, Cristo foi a própria vítima! Santo Agostinho resumiu em poucas palavras este novo tipo de sacerdócio no qual o celebrante e a vítima são a mesma pessoa: “Ideo sacerdos quia sacrificium”, "sacerdote porque é vítima". O teólogo francês René Girard definiu o sacrifício de Cristo como "o acontecimento central na vida religiosa da humanidade", pois coloca um fim na aliança entre o sagrado e a violência.


Em Cristo é Deus que se tornou vítima, não é mais o ser humano oferecendo sacrifícios para agradar a Deus e torná-lo favorável; é Deus que sacrifica a si mesmo em favor da humanidade, permitindo que seu único Filho morra por nossa salvação (cf. Jo 3,16). Jesus não ofereceu o sangue de outros, mas com seu próprio sangue, ele não colocou suas culpas nas costas de outros, animais ou pessoas, mas ele colocou nossos pecados nos seus próprios ombros: "Ele
carregou os nossos pecados em seu corpo" (1Pe 2,24). 

O que significa é que na Missa, nós padres, devemos também ser sacerdotes e vítimas ao mesmo tempo. Em vista disto, devemos refletir sobre as palavras da consagração: "Este é meu sacrifício oferecido por vós". Sobre isto gostaria de compartilhar minha experiência, como eu descobri o significado eclesial e pessoal da consagração eucarística. Nos primeiros anos de sacerdócio, no momento da consagração em fechava meus olhos, inclinava minha cabeça e tentava me afastar o máximo possível de tudo que acontecia ao redormpara me identificar com Jesus, quando Ele pronunciou pela primeira vez aquela frase: "Tomai e comei...". A liturgia mesmo convidava a esta atitude, com as palavras pronunciadas em latim, inclinado sobre as espécies a serem consagradas.

Então ocorrreu a reforma litúrgica do Vaticano II. As missas começaram a ser celebradas olhando a assembléia, não mais Latim, mas passamos a usar a linguagem do povo. Isto me ajudou a entender que minha atitude não expressava o real significado da minha participação na consagração: que o Jesus do Cenáculo já não existe mais! Quem está presente é Jesus ressuscitado, o Cristo que morreu, mas agora vive para a eternidade (cf. Ap 1,18). Este é o "Jesus total", Cabeça e Corpo unidos. Logo, se este é o Cristo total que pronuncia as palavras da consagração, eu também as pronuncio junto com Ele. Sim, eu as pronuncio "in persona Christi", em nome de Cristo, mas também em primeira pessoas, isto é, em meu nome. A partir do dia em que entendi isto, eu parei de fechar meus olhos no momento da consagração, mas dnha mantê-los abertos para olhar os irmãos na minha frente, ou, se estava celebrando sozinho, pensar  na inteira Igreja, e virado para eles, dizer como Jesus: "Tomai e comei, este é o meu corpo oferecido por vós; tomai e bebei, este é o meu sangue derramado por vós".

Mais tarde, Santo Agostinho me ajudou a remover todas as dúvidas que tinha. "Aquilo que a Igreja oferece, ele oferece a si mesma", como ele escreveu em uma famosa passagem de [do livro] Cidade de Deus. Mais próxima a nós está a mística mexicana Concepcion Cabrera de Armida, conhecida Conchita, que morreu em 1937 e foi beatificada em 2015. Para o seu filho jesuíta, que estava próximo a ser ordenado, ela escreveu: "Meu filho lembre que quando segurar em suas mãos a Sagrada Hóstia, não vais dizer 'olhem o Corpo de Cristo, olhem o Sangue de Cristo', mas irás dizer 'este 'o meu Corpo, meu Sangue', ou seja, terás que passar por uma total transformação, deixar de ser você e ser um novo Jesus".

Tudo isto se aplica não apenas a padres e bispos, mas a todos batizados. Um famoso texto do Concílio explica desta maneira:

Os fiéis, incorporados na Igreja pelo Batismo ... pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica (Lumen Gentium 10-11).

No altar há dois corpos de Cristo: o corpo real, nascido da Virgem Maria, morto, ressuscitado e que acendeu ao céus; e o corpo místico, que é a Igreja. De fato, seu corpo está realmente presente no altar e seu corpo místico também está misticamente presente, "misticamente" por que há uma união inseparável entre a Igreja e sua Cabeça. Não há confusão entre as duas presenças, ambas são distintas e inseparáveis.

Assim como há duas ofertas no altar, uma que se torna em corpo e sangue de Cristo, o pão e vinho, e aquele que se torna o corpo místico de Cristo, também há duas epicleses na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo. Na primeira é dito "
Senhor, nós te pedimos: santificai estas ofertas, espalhando-los em seu Espírito, para que se tornem para nós o corpo e o sangue de Jesus Cristo, nosso Senho", na segunda, que é recitada após a consagração, dizemos "enviai teu Espírito Santo para que nos tornemos um só corpo e um só espírito em Cristo. Que o Espírito Santo nos faça um sacrifício perene agradável ao Senhor".

Esta é a forma como a Eucaristia e a Igreja se relacionam: a Eucaristia faz a Igreja fazendo da Igreja uma Eucaristia! A Eucaristia não é apenas, genericametne, a fonte ou causa da santidade da Igreja, é também o seu modelo. A santidade do cristão é realizada através da Eucaristia, deve ser uma santidade Eucarística. Os cristãos não podem se limitar a celebrar a Eucaristia, devem ser uma Eucaristia com Jesus.


-- Padre Raniero Cantalamessa, segunda catequese no Tempo de Quaresma, 18 de Março de 2022.

NT: as epiclises variam entre as diferentes Orações Eucarísticas, Padre Raniero cita apenas uma das formas.


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