19 de abr. de 2022

Eucaristia e a Oração Judaica


O objeto desta catequese mistagógica é a parte central da Missa, a Oração Eucarística, a parte  que inclui a consagração do corpo e sangue de Cristo. Farei dois tipos de observações, uma litúrgica e ritual, outra teológica e existencial.

Do ponto de vista ritual e litúrgico, temos hoje uma fonte que os Padres da Igreja e os doutores medievais não tiveram. A nova fonte é a reaproximação entre cristãos e judeus. Nos primeiros dias da igreja vários fatores históricos acentuaram as diferenças entre Cristianismo e Judaísmo, ao ponto de contrastar um com outro, como fez Santo Inácio de Antioquia. Distinguir-se dos judeus em vários pontos, como a data da Páscoa, dias de jejuns e muitas outras coisas, se tornou um tipo de “moda”. A acusação contra muitos adversários e heréticos naqueles tempos era chamá-los de “judaizantes”.

A tragédia do povo judaico, o Holocausto, e um novo clima de diálogo com o Judaísmo iniciado no Concílio Vaticano II, tornou possível uma melhor compreensão da matriz judaica na Eucaristia. Assim como a Páscoa Cristã não pode ser plenamente compreendida se não for considerada como o cumprimento das profecias da Páscoa Judaica, a Eucaristia também não pode ser compreendida se não for como o cumprimento de tudo o que os judeus fazem e dizem durante a refeição ritual. Um primeiro resultado importante desta mudança é que, hoje em diante, nenhum estudioso sério pode explicar a Eucaristia Cristã como sendo baseada em algum culto misterioso do Helenismo, como foi tentado por algum tempo.

Os Padres da Igreja mantiveram as Escrituras do povo judeu, mas não sua liturgia, já que não mais tinham acesso à ela após a separação entre a Igreja  e a Sinagoga. Eles, então, utilizaram as figuras contidas nas Escrituras, o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná, mas perderam o contexto litúrgico na qual o povo judaico celebrava estes fatos, em especial, na Páscoa (o Seder) e nas celebrações semanais nas sinagogas. O primeiro nome que designa a Eucaristia no Novo Testamento, como escrito por Paulo, é “refeição do Senhor” (1 Cor 11,20), o que é uma evidente referência à ceia judaica, que agora é diferente pela fé em Jesus. A Eucaristia é um sacramento de continuidade, não de oposição, entre o Velho e Novo Testamento, entre o Judaísmo e o Cristianismo.

A Eucaristia e a Berakah Judaica

Esta é a perspectiva que o Papa Bento XVI apresenta no capítulo sobre a instituição da Eucaristia no seu segundo livro sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião prevalente entre os estudiosos, ele aceita a cronologia joanina segundo a qual a Última Ceia não era uma ceia pascal mas uma solenidade de despedida. Citando Louis Bouyer, ele acrescenta que é possível traçar o desenvolvimento da liturgia eucarística cristã, isto é, do cânon, a partir da Berakah (bendição) judaica. 

Por várias razões culturais e históricas, a partir dos tempos medievais, a teologia tem tentado explicar a Eucaristia com base na filosofia, em particular, utilizando as noções aristotélicas de substância e acidente. Isto também era uma maneira de colocar os novos conhecimentos da época a serviço da fé e imitar a mesma metodologia dos Padres da Igreja. Hoje em dia, temos que fazer o mesmo com nosso conhecimento, no nosso caso, com o conhecimento histórico e litúrgico, mais que princípios filosóficos. No contexto de alguns estudos já iniciados por Louis Bouyer, eu gostaria de mostrar como esta luz tem iluminado nossa compreensão da Eucaristia Cristã quando consideramos como os Evangelhos narram a instituição da Eucaristia e o que sabemos sobre rituais judeus. Desta maneira, as inovações de Jesus não são diminuídas, mas ressaltadas.

A ligação entre o velho e o novo rito é dada pela Didaqué, um texto da era apostólica, onde encontramos o primeiro rascunho da anáfora eucarística. O rito da sinagoga era composto de uma série de preces, a Berakah, que, em grego, pode ser traduzido como Eucaristia. No início da refeição, cada um toma o cálice em suas mãos e repete, quase a mesma frase utilizada no ofertório: “Bendito és tu Senhor, nosso Deus, Rei eterno, que nos deu o fruto da vinha”.

Mas a refeição oficialmente iniciava apenas quando o pai da família, ou o líder da comunidade, partia o pão e distribuía entre os presentes. E, de fato, Jesus tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e distribuiu aos apóstolos dizendo: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” E aqui o rito que era apenas preparação, torna-se realidade. A figura torna-se o evento.

Após a benção do pão, os pratos usuais eram servidos. Quando a refeição está próxima do final, todos estão prontos para o grande ritual final que conclui a celebração e lhe dá um sentido mais profundo. Todos lavam suas mãos novamente, pois já haviam feito no início da refeição, então Jesus, tendo um cálice de vinho misturado com água, entoa três orações de agradecimento: a primeira a Deus Criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira porque Deus continua agindo no tempo presente. Após as preces, o cálice passa de mão e mão, e todos bebem. Este rito antigo foi realizado por Jesus muitas vezes, Ele certamente o conhecia muito bem.

Lucas diz que Jesus, após a refeição, toma o cálice e diz: “Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós” (Lc 22,20). Algo decisivo ocorre neste momento quando Jesus acrescenta suas palavras à tradicional oração de agradecimento, à Berakah judaica. Aquele ritual era uma ceia sagrada na qual o povo celebrava e agradecia a Deus, o seu Salvador, por tê-los salvo e feito uma aliança de amor que fora selada com o sangue de um cordeiro. Agora, naquele exato momento, Jesus anunciou que decidira dar sua vida em nosso favor e declarava que a Velha Aliança que celebravam estava concluída. Naquele momento, com estas simples palavras, Jesus fazia uma nova e eterna Aliança com seu Sangue.

-- Padre Raniero Cantalamessa, Primeira Homília de Quaresma, 18 de Março de 2022 

* esta é a terceira parte de uma série de catequeses dadas pelo Padre Raniero na Quaresma de 2022.  Nos próximos dias publicarei a sequência.

* tradução própria 

* a imagem é o quadro A Ültima Ceia, pintado por Simon Benning, cc 1525. Está exposto no J. Paul Getty Museum, Los Angeles.

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