11 de abr. de 2022

Eucaristia e a Liturgia da Palavra

Nos primeiros anos da Igreja, a Liturgia da Palavra e a Liturgia da Eucaristia não eram celebradas em conjunto. Os discípulos participavam dos serviços no Templo, ouviam as leituras da Bíblia, recitavam salmos e rezavam juntos com os judeus, depois iam para suas casas onde se reuniam para compartilhar o pão, isto é, celebrar a Eucaristia (Atos 2,46).


No entanto, esta prática logo tornou-se impossível devido à hostilidade da comunidade judaica e porque as Escrituras tinham um novo significado, alinhado aos ensinamentos de Cristo. Então eles pararam de ir ao Templo ou sinagogas para ler e ouvir as Escrituras, tiveram que criar o próprio lugar de oração, ou seja, foi a Liturgia da Palavra que conduziu até a Oração Eucarística. 


No segundo século, São Justino descreveu a Liturgia da Eucaristia já contendo os elementos essenciais da Missa atual. Não apenas a Liturgia da Palavra era parte integral, mas em adição às leituras do Velho Testamento, outras, que São Justino chamou de “Memórias dos Apóstolos”, isto é, as cartas e Evangelhos do Novo Testamento, também eram lidas. 


Quando ouvimos as leituras bíblicas na liturgia, elas tem um significado novo e mais forte que teriam em outro contexto. Quando lemos as Escrituras em casa ou as estudamos em um curso, elas nos servem para conhecer melhor a Bíblia, mas quando lemos na Liturgia, elas nos servem para conhecer melhor à Deus que se faz presente na partilha do pão e trazem à luz um novo aspecto do mistério que estamos prestes a receber. 


Isto já é visível na primeira Liturgia da Palavra, aquela entre Cristo Ressuscitado e os discípulos de Emaús. Enquanto ouviam a explicação da Palavra, seus corações foram tocados de uma maneira em reconheceram a Jesus quando partiu o pão. 


As palavras da Bíblia não são apenas lidas e ouvidas durante uma Missa, elas são revividas de uma maneira que seu significado se torna real e presente. Seja lá o que aconteceu naquele tempo, está também acontecendo neste momento, como os liturgistas adoram falar. Não somos apenas ouvintes, recipientes passivos, mas somos também aqueles que falam as palavras, que também vivem o momento. Nós somos colocados no lugar do povo da história. 


Alguns exemplos podem nos ajudar a entender esta idéia: Quando a primeira leitura na Missa é a história de como Deus falou com Moisés na sarça ardente (Ex 3), compreendemos que somos realmente nós que estamos em frente à sarça ardente. Quando lemos sobre os lábios de Isaías sendo tocados por uma brasa viva (Is 6), lembramos que nossos lábios receberam em breve o pão vivo, Cristo, aquele que lançou fogo sobre a Terra. (Lc 12, 49). Quando lemos como foi dito à Ezequiel  para comer os rolos da Lei e se alimentar deles (Ez 2,8-3,3), é como uma luz nos iluminando, somos nós que temos que nos alimentar da Palavra que se fez carne, Jesus. 


Passando ao Novo Testamento, da primeira leitura para o Evangelho, a idéia torna-se ainda mais clara. Se a mulher que sofria de hemorragia estava certa que poderia ser curada se pudesse tocar pelo menos a ponta do manto de Jesus, o que mais pode acontecer conosco que logo receberemos a Jesus, algo muito mais que apenas tocar seu manto?


Lembro certa vez que ouvi a história de Zaqueu e, de repente, ela se tornou real para mim, eu era Zaqueu, era para mim que Jesus estava dizendo: “Hoje irei à tua casa”! E quando recebi a comunhão, eu pude dizer com toda fé, “Ele veio para ficar na casa de um pecador”, e Jesus me respondeu “Hoje a Salvação entrou nesta casa” (Lc 19, 5-9).


O mesmo também é verdadeiro toda vez que o Evangelho é proclamado na Missa. Como podemos não nos identificar com o paralítico para quem Jesus diz “Teus pecados foram perdoados”, “Levantai … e vá para casa” (Mc 2,5.11). Ou com Simeão ao segurar Jesus bebê em seus braços (Lc 2,27-28)? Ou com Tomé que, tremendo, toca nas feridas de Jesus (Jo 20, 27-28)? 


No segundo Domingo do Tempo Comum, neste ano litúrgico, lemos um Evangelho em que Jesus diz a um homem com a mão paralisada: “ ‘Estende tua mão!’. Ele estendeu-a e a mão foi curada” (Mc 3,5). Nós não temos uma mão paralisada, mas todos nós temos,de certa maneira, uma alma paralisada, corações quebrados. Não achas que é para quem está ouvindo o que Jesus diz neste momento: “Estende tua mão, abre teu coração, com a fé e prontidão daquele homem”


Quando proclamada durante a liturgia, a Escritura age de uma maneira que está acima e além de qualquer explicação humana e é assim que os sacramentos agem. Estes são textos divinamente inspirados que possuem um poder de cura. Após ler o Evangelho, a Igreja convida o ministro a beijar o livro e dizer “Per evangelica dicta deleantur nostra delicta” - “Através das palavras do Evangelho sejam nossos pecados perdoados”.


Ao longo da história da Igreja, alguns eventos importantes ocorreram como resultado direto da audição das leituras da Missa. Por exemplo, certo dia um jovem ouviu o Evangelho em que Jesus diz a um jovem rico “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Então vem e segue-me” (Mt 19, 21).  Aquele jovem percebeu que a palavra estava sendo dita diretamente para ele, foi para casa e vendeu tudo o que tinha, dali se dirigiu ao deserto para permanecer em oração. O nome daquele jovem era Antão, e foi assim que o movimento monástico iniciou-se na Igreja. 


Muitos séculos depois, em Assis, um jovem recém convertido foi à Igreja com seu amigo. O Evangelho daquele dia era Jesus dizendo a seus discípulos: “Não leveis coisa alguma para o caminho, nem bordão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas” (Lc 9,3). Imediatamente ele virou-se para seu amigo e disse: “Ouviste isto? É isto que o Senhor quer de nós.” e assim iniciou-se o movimento franciscano. 


A Liturgia da Palavra é um dos melhores recursos para fazer a Missa algo novo e envolvente, evitando o perigo de uma repetição monótona que, em especial os jovens, acham algo chato e repetitivo. Mas para que isto ocorra, é importante investir mais tempo e oração na preparação da homilia. Os fiéis devem ser capazes de ver como a palavra de Deus está dirigida a eles, ilumina suas situações de vida e provê respostas para suas demandas existenciais.


Há duas maneiras de preparar a homilia. Você pode se sentar e, confiando no seu próprio conhecimento e preferências pessoais, escolher os temas a serem abordados. E, quando sua fala estiver preparada, ajoelhar-se diante do Senhor e pedir que Ele dê poder às suas palavras, que acrescente o Espírito à mensagem. Este é um bom método, mas não é profético. Para ser profético, deve-se fazer o contrário: primeiro ajoelhar-se perante o Senhor e perguntar o que Ele quer que seja dito. Deus tem em seu coração uma palavra especial para cada ocasião, e Ele nunca falha em revelar sua palavra ao padre que for insistente e humilde. Inicialmente não há nada além de uma mudança imperceptível de coração: uma pequena luz que ilumina o pensamento, uma palavra da Bíblia que lhe chama a atenção, que ajuda em uma situação. Pode parecer uma pequena semente, mas já contém tudo que é necessário.
Depois de rezar, você senta-se numa mesa, abre seus livros, consulta sua notas, organiza os pensamentos, estuda os padres da Igreja, os teólogos, os poetas, mas já não é mais a Palavra de Deus a serviço das tuas idéias, mas teus conhecimentos a serviço da palavra de Deus. Então a Palavra de Deus alcança todo seu poder.

Através de Espírito Santo

Mas uma coisa ainda deve ser acrescentada: toda atenção dada à Palavra de Deus não é suficiente. “O poder vem de Deus, deve descender sobre a celebração. Na Eucaristia a ação do Espírito Santo não é limitada ao momento da consagração, na oração que o padre recita. A presença de Deus é indispensável também na liturgia da palavra, assim como na comunhão.


O Espírito Santo continua, na Igreja, a ação do Ressuscitado que após a Páscoa “abriu a mente dos discípulos para o entendimento das Escrituras” (cf. Lc 24,25). A Bíblia, de acordo com a Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II, deve ser lida e interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que a inspirou” (DV, 12). A ação do Espírito Santo na liturgia da palavra é exercida através do espírito presente nos leitores e ouvintes. 


O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a Boa-Nova aos pobres. (Lc 4,18)


Assim o Senhor indicou de onde vêm a força da sua palavra. Seria um erro acreditar que somente a unção sacramental recebida na ordenação é suficiente. Isto permite a nós [padres] realizar certos atos sagrados, governar, pregar e administrar os sacramentos. A unção nos dá, por assim dizer, não necessariamente a autoridade para realizá-los, mas a autorização através da sucessão apostólica, mas isto não o mesmo sucesso apostólico!


Mas se a onça é dada pela presença do Espírito e é um dos seus dons, o que podemos fazer para sermos como os discípulos? Em primeiro lugar, devemos começar com uma certeza: “Vós, porém, tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas” (1Jo 2,20). Isto é, graças ao Batismo e Crisma, e, para alguns, a ordenação sacerdotal e episcopal, nós já recebemos a unção. De acordo com a doutrina católica, foi impresso em nossa alma uma qualidade permanente, como uma marca ou selo: “Ora, quem nos confirma a nós e a vós em Cristo, e nos consagrou, é Deus. Ele nos marcou com o seu selo e deu aos nossos corações o penhor do Espírito.” (2Cor 1,21,22).


Esta unção é como um perfume fechado, ele se mantém inerte e não podemos percebê-lo até que abre o frasco. Isto é o que ocorreu com o jarro de alabastro que a mulher do Evangelho utilizou (Mc 14,3). Esta é a parte da unção que nos toca. Não depende de nós criar o perfume, mas depende de nós remover os obstáculos que impedem sua propagação. Não é difícil entender o que significa para nós quebrar o vaso de alabastro. O vaso é nossa humanidade, nós mesmos, muitas vezes nosso árido intelectualismo. Abrir o frasco de perfume é não resistir a Deus, mas resistir ao mundo. 


Afortunadamente para nós, nem tudo depende de um esforço ascético. Neste caso, fé, oração e humildade são importantes. Assim, pede-se aos ungidos que antes de ler ou pregar, que o faça a serviço de Deus. Quando nos prepararmos para ler o Evangelho ou uma leitura, a liturgia pede que purifiquemos nossos corações e nossos lábios para que possamos proclamar o Evangelho dignamente. Porque não dizer algumas vezes, ou ao menos pensar: “Senhor, unge meu espírito e minha mente, para que possa proclamar tua palavra com a suavidade e poder do Espírito”


A unção não é necessária apenas para os proclamadores ler efetivamente a palavra, mas também é necessário para os ouvintes recebê-la. O evangelista João escreve para sua comunidade: “Vós, porém, tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. ... a sua unção vos ensina todas as coisas, assim é ela verdadeira e não mentira. Permanecei nele, como ela vos ensinou” (1 Jo 2,20-27).


Não que uma preparação humana seja inútil, mas ela não é suficiente. É o espírito que realmente instrui, isto é, Cristo e a inspiração do Espírito que instruem. Quando esta inspiração não ocorre, as palavras podem ser apenas barulho inútil. Tenhamos esperança que hoje o Senhor nos instruiu, nos deu essa inspiração interior, e não sejamos apenas barulho inútil.


-- Padre Raniero Cantalamessa, Primeira Homília de Quaresma, 11 de Março de 2022

* esta é a segunda parte de uma série de catequeses dadas pelo Padre Raniero na Quaresma de 2022.  Nos próximos dias publicarei a sequência.

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