9 de abr. de 2022

A Eucaristia - Introdução e história da salvação

 * Esta é a parte introdutória de uma série de catequeses dadas pleo Padre Raniero Cantalamessa para o Papa e cardeais no Vaticano durante a Quaresma de 2022. Nos próximos dias publicarei a continuação das catequeses.
 
Entre os muitos problemas que a pandemia tem causado à humanidade, há pelo menos um efeito positivo do ponto de vista da fé. Ela nos conscientes da necessidade da Eucaristia e do vazio que sua ausência cria, ela nos ajudou a compreender que não devemos ter a Eucaristia como algo corriqueiro. No período mais agudo da crise, em 2020, estava muito impressionado, e acho muitos outros também, em como era importante assistir a Santa Missa celebrada pelo Papa todas manhãs.

Muitas igrejas locais e nacionais decidiram dedicar este ano a catequeses especiais sobre a Eucaristia, pois há como um renascimento do desejo de receber a Comunhão na Igreja Católica. Acho uma decisão oportuna e um exemplo a ser seguido, e daqui que dar minha pequena contribuição, dedicando minhas reflexões pascais ao mistério da Eucaristia.

A Eucaristia está no centro de todos os tempos litúrgicos, na Quaresma não mais que em outros tempos pois ela é celebrada todos dias. Qualquer progresso que fazemos para compreendê-la é um progresso na nossa vida espiritual e da comunidade eclesial. Porém, também é, infelizmente, algo considerado comum, devido à repetição, resulta em um ato  considerado simples e comum na rotina diária. São João Paulo II, na carta Ecclesia de Eucharistia, escrita em 2003, diz que os cristãos devem redescobrir e sempre manter vivo um certo deslumbramento Eucarístico. Este é o propósito destas catequeses: redescobrir a maravilha da Eucaristia.

Falar de Eucaristia nestes tempos de pandemia e agora com os horrores de uma guerra não significa deixar de lado a dramática realidade que vivemos, mas é uma ajuda para  entendermos essa realidade de um ponto de vista mais elevado. A Eucaristia está presente na história como um evento que mudou para sempre os papéis do vencedor e das vítimas. Na cruz, Cristo fez da vítima o real vencedor, “Victor quia victima”, como definiu Santo Agostinho: vencedor porque é a vítima. A Eucaristia nos oferece a chave verdadeira para compreender a história. Ela nos assegura que Jesus está conosco, não apenas como uma intenção ou ideia, mas realmente neste mundo que parece ter saído de controle. Ele repete para nós: “Coragem! Eu venci o mundo.” (Jo 16,33).

A Eucaristia na História da Salvação

 O Sacrifício de Isaac, Laurent de la Hyre
Qual é o lugar da Eucaristia na história da salvação? A resposta é que ela não está em um momento específico, ela é a história completa. A Eucaristia coexiste com a história da Salvação. Assim como num belo dia sol o céu inteiro pode ser refletido em uma gota de água, a Eucaristia reflete toda história da salvação.


A Eucaristia, no entanto, está presente na história da salvação de três maneiras diferentes  ou três estágios: no Velho Testamento está presente como figura, no Novo Testamento como um acontecimento, no nosso tempo, o tempo da Igreja, como um sacramento. A figura antecipa e prepara o acontecimento, o sacramento prolonga e atualiza Jesus Cristo.

No Velho Testamento, como disse, a Eucaristia está presente como “figura”. Uma destas figuras foi o maná no deserto, outra foi o sacrifício de Melquisedec, outro ainda a imolação de Isaac. No hino Lauda Sion, composto por São Tomás de Aquino para a festa de Corpus Christi, cantamos:

Foi já predito em figuras

Na imolação de Isaac,

e o Cordeiro pascal;

e no maná do deserto…


É devido a esta função de prefiguração da Eucaristia que São Tomás chamou os rituais do Velho Testamento como sacramentos da Velha Lei.

Com a vinda de Cristo, sua morte e ressurreição, a Eucaristia não é mais uma figura, mas um acontecimento, uma realidade. Chamamos um acontecimento porque é algo que historicamente aconteceu, foi um evento único no tempo e espaço, que ocorreu uma única vez e é irrepetível: “É certo que Cristo apareceu uma só vez ao final dos tempos para destruição do pecado pelo sacrifício de si mesmo”. (Hb 9,26).

Finalmente, neste tempo da Igreja, a Eucaristia está presente como um sacramento, através do sinal do pão e vinho, instituído por Cristo. É importante que entendamos bem a diferença entre acontecimento e sacramento, na prática é a diferença entre história e liturgia. Deixemos Santo Agostinho nos ajudar:

Sabemos e acreditamos com fé inabalável que Cristo morreu uma única vez por nós, o justo pelos pecadores, o Senhor pelos servos. Sabemos perfeitamente que isto ocorreu apenas uma vez e que o sacramento periodicamente renova o sacrifício, como se a história que aconteceu uma única vez fosse repetida muitas e muitas vezes. O acontecimento e o sacramento não estão em conflito, como se o sacrifício fosse uma farsa e somente o acontecimento fosse verdadeiro. De fato, o que a história proclama ter ocorrido uma única vez, o sacramento renova no coração dos fiéis. A história conta o que aconteceu, e como aconteceu, a liturgia nos assegura que o passado não seja esquecido, não no sentido de que repete o mesmo acontecimento, mas no sentido de que celebramos o fato.

Falar sobre a relação entre o sacrifício da cruz e a Missa é algo muito importante e tem sido um ponto de grande divisão entre católicos e protestantes. Santo Agostinho utiliza, como vimos, dois verbos: renovar e celebrar, que são perfeitamente corretos, em especial se entendermos um em relação ao outro: a Missa renova o evento da cruz ao celebrá-lo, mas não o refaz, e renova-o, não é mera lembrança. A palavra que alcança um maior consenso ecumênico hoje em dia e, talvez, o verbo representar, como utilizado por Paulo VI na encíclica Misterium Fidei,  com o sentido de re-apresentar, isto é, tornar presente novamente. Neste sentido, podemos dizer que a Eucaristia representa a crucificação.

De acordo com a história, houve uma única Eucaristia, aquela realizada por Jesus através de sua vida e morte; de acordo com a liturgia, graças ao sacramento, muitas Eucaristias foram e serão celebradas até o final dos tempos. O evento aconteceu uma única vez,o sacramento é realizado toda vez. Graças ao sacramento da Eucaristia nós participamos, misteriosamente, do acontecimento passado, ele  se torna presente para nós e podemos também testemunhá-lo.

Nestas reflexões de Quaresma falaremos sobre a Eucaristia, isto é, sobre o sacramento. Na Igreja antiga havia uma catequese especial, chamada mistagógica, que era reservada aos bispos e dada somente após o Batismo. O propósito era resvalar aos neófitos o significado dos ritos celebrados e a profundeza dos mistérios da fé: batismo, crisma e unção, mas, em especial, da Eucaristia. O que pretendemos fazer aqui é como uma catequese mistagógica. Mas estarmos firmemente ancorados no sacramento e sua natureza ritual, vamos seguir o desenvolvimento da Missa em suas três partes: liturgia da palavra, liturgia eucarística (a anáfora) e a Comunhão, e incluir, ao final, uma reflexão sobre a adoração eucarística fora da Missa.

-- Padre Raniero Cantalamessa, Primeira Homília de Quaresma, 11 de Março de 2022.

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