1 de out. de 2022

É difícil ser cristão?

 

Está escrito: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28) cujo significado é explicado por São Hilário: “O Senhor chama para si todos aqueles que estão com dificuldades para cumprir a Lei e estão sobrecarregados pelos pecados do mundo”. E Logo a seguir, Jesus diz “meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11,30), portanto a Nova Lei é mais leve que a Velha Lei.

Há duas dificuldades que podem afetar as obras da virtude que são o objetivo da Lei. Uma é relativa às obras externas, que podem ser cansativas e percebidas como um peso por que a Velha Lei é muito abrangente, cheia de detalhes e pequenas cerimônias realizadas ao longo de todo dia, enquanto a Nova Lei aboliu muito daquelas práticas.

Outra dificuldade é relativa aos atos interiores, por exemplo, que as obras de caridade devem ser feitas com presteza e alegria. Esta dificuldade é resolvida pelo amor, por que um ato que é difícil realizar, torna-se fácil pelo amor. Até os filósofos afirmam que é fácil cumprir a Lei, mas fazê-lo alegremente, sem murmurar, é difícil se a pessoa não for justa. De acordo, lemos em (1Jo 5,3) “Eis o amor de Deus: que guardemos seus mandamentos. E seus mandamentos não são penosos”. Santo Agostinho completa: "os mandamentos não são pesados para o homem que ama, mas são um peso para os que não amam”.

Logo, as tribulações sofridas por aqueles que observam a Nova Lei são facilmente resolvidas se considerarmos o Amor que anima estes mesmos mandamentos, como explica Santo Agostinho: “o amor faz tudo mais leve e facilita tudo que parece difícil e além da nossa capacidade”.

-- São Tomás de Aquino

15 de set. de 2022

A Comunhão com a Santíssima Trindade

Refletir sobre a Eucaristia é como ver horizontes se abrindo na nossa frente, nossa visão alcançamos ainda mais longe do que podíamos ver antes. De fato, o horizonte cristológico da comunhão que contemplamos até agora pode ser expandido se considerarmos a Santíssima Trindade. Através da comunhão com Cristo entramos em comunhão com a Trindade. Eu sua oração sacerdotal, Jesus diz ao Pai: “para que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim” (Jo 17, 22-23). Estas palavras, “eu neles e tu em mim” indicam que Jesus está em nós e que o Pai é Jesus. Logo, não é possível receber a comunhão sem receber ao Pai também. As palavras de Cristo: “Aquele que me vê, vê ao Pai” (Jo 14,9) também significa “aquele que me recebe, recebe ao Pai”.

Isto é verdadeiro se considerarmos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma só e inseparável natureza divina. Sobre isto escreveu Santo Hilário de Poitiers: “Estamos unidos a Cristo que é inseparável do Pai, mesmo permanecendo junto ao Pai, Cristo permanece unido a nós, logo nós também estamos em unidade com o Pai. De fato, Cristo tem a mesma natureza do Pai, de certo modo nós, também, através de Cristo, também temos a mesma natureza do Pai”.

Durante a Eucaristia o que ocorreu durante a vida terrena de Cristo é sacramentalmente replicado. No momento do nascimento, é o Espírito Santo que traz Cristo ao mundo (pois Maria concebeu através da ação do Espírito Santo), no momento da morte foi Cristo que deu ao mundo o Espírito Santo (ao enviá-lo no dia de Pentecostes). Da mesma maneira, no momento da consagração é o Espírito Santo que age e transforma o pão em Corpo de Cristo e, no momento da comunhão, é Cristo que nos dá o Espírito Santo.

Santo Irineu, doutor da Igreja, diz que o Espírito Santo é nossa comunhão com Cristo. Na comunhão Jesus vem até nós, nos concedendo o Espírito. Não como aquele que há muito tempo enviou o Espírito Santo, mas como um que naquele momento, a cada dia, está nos concedendo o Espírito, ao repetir seu sacrifício no altar, Ele novamente “emite seu Espírito” (cf. Jo 19,30). Tudo isso que expliquei é visualizado no ícone da Santíssima Trindade, que mostra os três anjos ao redor do altar. A Santíssima Trindade nos dá a Eucaristia e através dela recebemos a Santíssima Trindade. A Eucaristia não é apenas nossa Páscoa diária, é também nosso Pentecostes diário!

 -- Frei Raniero Cantalemessa, terceira catequese no Tempo de Quaresma, 25 de Março de 2022. 

20 de ago. de 2022

A Comunhão é a união mística entre Cristo e a Igreja



Na nossa catequese mistagógica sobre a Eucaristia, após a Liturgia da Palavra e a Consagração, alcançamos o terceiro momento, a comunhão.

Este é o momento da Missa que mais claramente expressa a unidade e igualdade de todos batizados, acima de qualquer distinção de ministério ou posição na Igreja. Até este momento a distinção de ministério está presente, na Liturgia da Palavra há uma diferença entre o que ensina e os ouvintes, na consagração há o padre consagrando e o povo participando, mas na Comunhão não há nenhuma diferença. A comunhão recebida por um simples batizado é a mesma recebida pelo padre ou bispo. A comunhão Eucarística é uma proclamação sacramental de que a koinonia* está em primeiro lugar na Igreja e é mais importante que a hierarquia.

Vamos refletir sobre a Comunhão Eucarística a partir de um texto de São Paulo (1Cor 10:16-17):

O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão.

A palavra “corpo” ocorre duas vezes, mas com significados diferentes. Na primeira vez, “o corpo de Cristo”, indica o corpo real de Cristo, nascido de Maria, morto e ressuscitado; na segunda vez, “formamos um só corpo”, indica o corpo místico da Igreja. Não é possível falar de forma mais clara e direta que a Eucaristia é sempre uma comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs, que há uma dimensão vertical e outra horizontal. Vamos falar, agora, da primeira:

Comunhão com Cristo

Que tipo de comunhão é criada entre nós e Cristo na Eucaristia? Em João 6,57  Jesus diz: “Assim como o Pai que me enviou vive, e eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha carne viverá por mim.” A preposição “por” indica uma causa e um objetivo. Significa que aquele que recebe o corpo de Cristo vive dEle, isto é, por causa dEle, pela graça da vida que recebe dEle; também significa que vive para servir à sua glória e reino. Assim como Cristo vive em união com o Pai, pelo mistério da sagrada Eucaristia, seu corpo e sangue, vivemos por Jesus e para Jesus.

De fato, é um princípio fundamental da vida que os mais fortes se alimentam dos mais fracos, por exemplo uma planta assimila os minerais do solo, enquanto os animais se alimentam de vegetais, não ao contrário. Em todos os casos da natureza, aquele que come assimila os nutrientes dos mais fracos. No nível espiritual, também é o divino que assimila o humano, não ao contrário, mas, ao contrário da natureza, na Comunhão aquele que é comido que incorpora que o recebe. Para aqueles que se aproximam para recebê-lo, Jesus repete o que disse para São Agostinho: “Não és tu que me receberás, mas Eu que te receberei”.

Um filósofo ateísta diz: “O homem é aquilo que ele come” (F. Feuerbach), indicando que no homem não há qualquer diferença qualitativa entre matéria e espírito, que tudo se resume a compostos orgânicos e matéria. Um ateísta, mesmo sem saber, dá uma excelente formulação do mistério cristão: Graças a Eucaristia, o cristão é realmente aquilo que come! São Leão Magno escreveu a muitos séculos: “Nossa participação no corpo e sangue de Cristo nos transforma naquilo que recebemos”.

Na Eucaristia, portanto, não há somente uma comunhão entre Cristo e nós, mas também assimilação; comunhão não é apenas a união de dois corpos, duas mentes, duas vontades, também é o recebimento de um corpo, de uma mente e da vontade de Cristo: “quem se une ao Senhor torna-se com ele um só espírito.” (1 Cor 6,17).

Mas a nutrição, o comer e beber, não é a única analogia que podemos fazer sobre a Eucaristia, mesmo que seja indispensável. Há algo que ela não pode expressar pois é uma comunhão entre objetos materiais, não entre pessoas. Gostaria de insistir em outra analogia que pode nos ajudar a compreender a natureza da comunhão Eucarísitica como uma comunhão entre pessoas que procuram esta comunhão.

A Carta aos Efésios diz que o casamento é um símbolo da união entre Cristo e a Igreja: “Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne (Gn 2,24). Esse mistério é grande, quero dizer, com referên­cia a Cristo e à Igreja. Em resumo, o que importa é que cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido.” (Ef 5, 31-33). A Eucaristia, para usar uma imagem forte mas verdadeira, é a consumação do casamento entre Cristo e a Igreja. Uma vida cristã sem Eucaristia é como um casamento que não é consumado. No momento da Comunhão, o celebrante diz: “Benditos são aqueles chamados para Ceia do Senhor”,  no livro do Apocalipse, do qual esta expressão foi retirada, diz ainda mais explicitamente: “Ele me diz, então: ‘Escreve: Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro’. Disse-me ainda: ‘Estas são palavras autênticas de Deus.’“ (Ap 19, 9).

Como explica São Paulo, a consequência imediata do casamento é que o corpo, isto é, toda pessoa, do marido pertence à esposa e, vive versa, a esposa pertence ao marido (cf. 1Cor 7,4). Isto significa que a Palavra encarnada, incorruptível, que dá a vida, passa a ser “minha”, mas também que minha carne, minha humanidade, se transforma em Cristo. Na Eucaristia recebemos o corpo e sangue de Cristo, mas Cristo também recebe nosso corpo e sangue! Jesus, conforme escreveu Santo Hilário: “Quando Ele diz ‘Tomai e comei, este é o meu corpo’, nós o recebemos, mas também podemos dizer ‘tome, este é o meu corpo’”.

Tentemos agora entender as consequências de tudo isto. Na sua vida humana, Jesus não teve todas experiências humanas possíveis. Para começar, ele era homem, não mulher, ele não experimentou algumas coisas que metade da humanidade experimenta; ele não foi casado, então não teve a experiência de estar unido à outra pessoa, ter filhos, ou pior, perder um filho; ele morreu jovem, não experimentou a velhice, etc…

Mas agora, através da Eucaristia, Ele tem toda esta experiência. Ele vive a condição de uma mulher, de um doente, de um velho, um pobre imigrante, de uma pessoa sendo bombardeada, etc..

Não há nada em nossa vida que não seja familiar à Cristo. Ninguém deve dizer: “Jesus não sabe o que é ser casado, perder um filho, estar doente, velho ou ser negro!” O que Cristo não viveu enquanto estava neste mundo, Ele vive e experimenta através do Espírito, graças à comunhão espiritual da Sagrada Missa. Santa Isabel da Trindade compreendeu profundamente este mistério e escreveu para sua mãe: “A noiva pertence ao seu noivo. Meu noivo me recebeu, Ele me quer para acrescentar humanidade à Ele”.

Que coisa maravilhosa, que consolação é pensar que nossa humanidade passa a fazer parte da humanidade de Cristo! Mas também que responsabilidade! Se meus olhos se transforma nos olhos de Cristo, minha boca na de Cristo, esta é uma excelente razão para não deixar meus olhos se perderem em imagens lascivas, minha língua não falar contra o próximo, meu corpo não se transformar em instrumento de pecado. “Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo algum!” (1 Cor 6,15).

E ainda, isto não é tudo, a parte mais bela ainda está faltando. O corpo da esposa pertence ao noivo, mas também o corpo do noivo pertence à esposa. Na comunhão, aquele que está dando também está recebendo, recebendo nada mesmo que a santidade de Cristo! Onde este maravilhoso comércio que a liturgia nos fala ocorreria na vida dos fiéis se não fosse no momento da comunhão?

Ali temos a oportunidade de dar para Jesus nossas sujeiras, nossos pecados, e receber o manto da justiça (cf. Is 61,10). De fato, está escrito que “É por sua graça que estais em Jesus Cristo, que, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção” (1 Cor 1,30). Aquilo que se tornou para nós estava destinado para nós, é algo que nos pertence. “Ou não sabeis que o vosso corpo ..., já não vos pertenceis? Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.” (1 Cor 6,19-20). No sentido contrário, também aquilo que pertence a Deus pertence a nós, mas temos que lembrar que pertencemos a Cristo por direito, mas Ele pertence a nós por graça!

Esta é uma descoberta capaz de dar asas a nossas vidas espirituais. Este é um grande passo de fé e devemos rezar a Deus para não morrermos sem fazer esta caminhada.

-- Padre Raniero Cantalamessa, terceira catequese no Tempo de Quaresma, 25 de Março de 2022.

*koinonia é o compartilhamento, a comunhão dos bens espirituais da Igreja; também pode ser estendida aos bens materiais, o que é comum nas ordens religiosas.



11 de jul. de 2022

A vida humana é sagrada

 

* O Papa João Paulo II celebrou uma missa em Washington, capital dos EUA, em 07 de Outubro de 1979. Esta foi a homíla daquela missa. 

O domingo de hoje assinala o princípio do anual "Programa para o respeito da vida", graças ao qual a Igreja dos Estados Unidos pretende insistir na própria convicção da inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases. Renovemos, pois, todos juntos, o nosso respeito pelo valor da vida humana, lembrando-nos que, mediante Cristo, toda a vida humana foi remida.

Não hesito em proclamar, perante todos vós e perante todo o mundo, que cada vida humana — desde o momento da sua concepção e durante todas as fases que se seguem — é sagrada, porque a vida humana é criada à imagem e semelhança de Deus. Nada supera a grandeza nem a dignidade da pessoa humana. A vida humana não é apenas uma ideia ou uma abstracção; a vida humana é a realidade concreta de um ser que é capaz de amor e de serviço para com a humanidade.

Permiti-me que repita aquilo que disse durante a peregrinação à minha terra: "Se se inflige o direito do homem à vida no momento em que ele começa a ser concebido no seio materno, ataca-se indirectamente toda a ordem moral que serve para assegurar os bens invioláveis do homem. A vida ocupa entre eles o primeiro lugar. A Igreja defende o direito à vida, não só por respeito à majestade do Criador que é o primeiro dador desta vida, mas também por respeito ao bem essencial do homem" (João Paulo II, Homilia em Towy Targ; em L'Oss. Rom., ed. port., 15.7.79, p. 6).

A vida humana é preciosa porque é um dom de Deus cujo amor é infinito: e quando Deus dá a vida, dá-a para sempre. A vida é também preciosa porque é a expressão e o fruto do amor. É esta a razão pela qual a vida deve ter origem no contexto dó matrimónio e pela qual o matrimónio e o amor recíproco dos pais devem ser caracterizados pela generosidade em prodigar-se. O grande perigo para a vida da família numa sociedade cujos ídolos são o prazer, a comodidade e a independência, está no fato de os homens fecharem o coração e tornarem-se egoístas. O medo de um compromisso permanente pode transformar o amor mútuo entre marido e mulher em dois amores de si próprios — dois amores que existem um ao pé do outro, até acabarem por separar-se.

No sacramento do matrimônio o homem e a mulher — que pelo Batismo se tornaram membros de Cristo e têm o dever de manifestar na sua vida as atitudes de Cristo — recebem a certeza do auxílio de que têm necessidade para o próprio amor crescer numa união fiel e indissolúvel e para conseguirem responder generosamente ao dom da paternidade. Como declarou o Concílio Vaticano II: "Por meio deste Sacramento, o próprio Cristo torna-se presente na vida dos cônjuges e acompanha-os, a fim de que possam amar-se mutuamente e amar os seus filhós, precisamente como Cristo amou a sua Igreja e se deu a si mesmo por ela" (Cfr. Gaudium et Spes, 48; Ef 5, 25).

Para que o matrimônio cristão favoreça o bem total e o desenvolvimento do casal, deve ser inspirado pelo Evangelho, e assim abrir-se à nova vida — nova vida dada e aceita generosamente. Os cônjuges são também chamados a criar uma atmosfera familiar em que os filhos sejam felizes e vivam plena e dignamente uma vida humana e cristã.

Para ser possível viver-se uma vida familiar alegre, impõem-se sacrifícios quer da parte dos pais quer da parte dos filhos. Cada membro da família deve tornar-se, de modo especial, o servo dos outros compartilhando as cargas deles. É necessário cada um ter a solicitude não só da própria vida, mas também da vida dos outros membros da família: das suas carências, das suas esperanças e dos seus ideais. As decisões a propósito do número dos filhos e dos sacrifícios que daí derivam não devem ser tomadas só em vista de aumentar as próprias comodidades e manter uma existência tranquila. Refletindo neste ponto diante de Deus, ajudados pela graça que vem do Sacramento, e guiados pelos ensinamentos da Igreja, os pais recordarão a si próprios que é mal menor negar aos próprios filhos certas comodidades e vantagens materiais do que privá-los da presença de irmãos e irmãs que poderiam ajudá-los a desenvolver a sua humanidade e a realizar a beleza da vida em todas as suas fases e em toda a sua variedade.

Se os pais compreendessem plenamente as exigências e as oportunidades encerradas neste grande Sacramento, não deixariam de se unir a Maria no hino de louvor ao Autor da vida — a Deus —, que os escolheu como seus colaboradores.

Papa João Paulo II e o Presidente Jimmy Carter

Todos os seres humanos deveriam apreciar a individualidade de cada pessoa como criatura de Deus, chamada a ser irmão ou irmã de Cristo em razão da Encarnação e da Redenção Universal. Para nós a sacralidade da pessoa humana é fundada nestas premissas. E é nestas mesmas premissas que se funda a nossa celebração da vida — de toda a vida humana. Isto explica os nossos esforços para defender a vida humana de qualquer influência ou acção que a possa ameaçar ou debilitar, assim como os nossos esforços para tornar cada vida mais humana em todos os seus aspectos.

Por conseguinte, reagiremos todas as vezes que a vida humana for ameaçada. Quando o caráter sagrado da vida antes do nascimento for atacado, nós reagiremos para proclamar que ninguém tem o direito de destruir a vida antes do nascimento. Quando se falar de uma criança como de um peso ou se considera a mesma como meio para satisfazer uma necessidade emocional, nós interviremos para insistir em que todas as crianças são dom Único e irrepetível de Deus, que têm direito a uma família unida no amor. Quando a instituição do matrimônio for abandonada ao egoísmo humano e reduzida a um acordo temporâneo e condicional que se pode dissolver facilmente, nós reagiremos afirmando a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Quando o valor da família for ameaçado por pressões sociais e econômicas, nós reagiremos reafirmando que a família é necessária não só para o bem privado de cada pessoa, mas também para o bem comum de cada sociedade, nação e estado (João Paulo II, Audiência Geral, 3.1.79). Quando depois a liberdade for usada para sujeitar os fracos, esbanjar as riquezas naturais e a energia, e para negar aos homens as necessidades essenciais, nós reagiremos para reafirmar os princípios da justiça e do amor social. Quando os doentes, os anciãos ou os moribundos forem abandonados, nós reagiremos proclamando que eles são dignos de amor, de solicitude e de respeito.

Faço minhas as palavras que Paulo VI dirigiu o ano passado aos Bispos Americanos: "Estamos convencidos, além disso, que todos os esforços empreendidos para salvaguardar os direitos humanos beneficiam actualmente a vida em si mesma. Tudo o que se dirige — no direito ou nos fatos — a banir a discriminação baseada na 'raça, origem, cor, cultura, sexo ou religião' (cfr. Octogesima Adveniens, 16), é serviço prestado à vida. Quando os direitos das minorias, são protegidos, quando os diminuídos mental ou fisicamente são assistidos, quando é concedida voz aos marginalizados da sociedade, em todos estes casos, são favorecidas a dignidade da vida humana, a plenitude da vida humana e a santidade da vida humana... Em especial, cada contribuição para melhorar o clima moral da sociedade e enfrentar a permissividade e o hedonismo, e ainda toda a assistência à família, que é a fonte da nova vida, tudo isso é favorecer os valores da vida" (Paulo VI, Discurso aos Bispos Americanos, em L'Oss. Rom., ed. port. 4.6.1978. p. 4).

Muito está ainda por fazer a fim de se conseguir ajudar aqueles cuja vida é ameaçada e reavivar a esperança daqueles que têm medo da vida. Requer-se coragem para resistir às pressões e aos falsos "slogans", para proclamar a dignidade suprema de cada vida, e exigir que a própria sociedade a proteja. Desejo pois dirigir uma palavra de louvor a todos os membros da Igreja Católica e das outras Igrejas cristãs, a todos os homens e mulheres da herança judeo-cristã, assim como a todos os homens de boa vontade, a fim de se unirem num esforço comum para a defesa da vida na sua plenitude e para a promoção de todos os direitos humanos:

A nossa celebração da vida faz parte da nossa celebração da Eucaristia. Nosso Senhor e Salvador, mediante a Sua morte e Ressurreição, tornou-se para nós "o pão da vida" e o penhor da vida eterna. N'Ele encontramos a coragem, a perseverança e a inventiva de que temos necessidade para promover e defender a vida nas nossas famílias e no mundo inteiro.

Queridos irmãos e irmãs: temos confiança em que Maria, Mãe de Deus e Mãe da Vida, nos dará a sua ajuda para que o nosso modo de viver reflita sempre a nossa admiração e reconhecimento pelo dom do amor de Deus que é a vida. Sabemos que Ela nos ajudará a usar todos os dias que nos são dados como oportunidade para defender a vida antes do nascimento e para tornar mais humana a vida dos nossos irmãos, onde quer que eles se encontrem.

A intercessão de Nossa Senhora do Rosário, cuja festa celebramos hoje, nos conceda podermos todos chegar um dia à plenitude da vida em Cristo Jesus nosso Senhor. Ámen.

-- Santo Papa João Paulo II, homília de 7 de Outubro de 1979.

27 de jun. de 2022

É ele o Senhor, nosso Deus; nós, povo de suas pastagens


 As palavras que cantamos contêm nossa declaração: somos ovelhas de Deus, porque ele é o Senhor nosso Deus, que nos fez. Ele é o nosso Deus, nós somos o povo de suas pastagens e as ovelhas de suas mãos. Não foram os pastores que fizeram suas ovelhas, não foram eles que criaram os animais que levam a pastar. Mas o Senhor, nosso Deus, por ser Deus e criador, foi ele mesmo que fez para si as ovelhas que possui e que apascenta. Não foi um a criar aquelas que ele apascenta, nem outro a apascentar as que criou!

            Declaramos, pois, neste cântico, que somos as suas ovelhas, o povo de suas pastagens, as ovelhas de suas mãos. Ouçamos agora o que nos diz, a nós, a suas ovelhas. Primeiro, ele falava aos pastores; agora, porém, fala às ovelhas. Postos entre os pastores, nós ouvíamos as suas palavras com tremor, e vós, com segurança. Que acontece nestas palavras de hoje? Será que por alternância, nós com segurança, vós, com tremor? Absolutamente não. Primeiro porque, se somos pastores, o pastor ouve com tremor não apenas o que é dito aos pastores, mas também o que se diz às ovelhas. Se ouve tranquilo o que se diz às ovelhas, pouco se importa com elas. Em seguida, e já o dissemos à vossa caridade, há duas coisas a considerar em nós: uma, que somos cristãos; outra que somos prelados. Por sermos prelados, somos contados entre os pastores, se formos bons. Por sermos cristãos, convosco também somos ovelhas. Portanto, quer fale o Senhor aos pastores, quer fale às ovelhas, temos de ouvir tudo com tremor, sem que diminua a solicitude de nosso coração.

            Ouçamos então, irmãos, a razão pela qual o Senhor castiga as ovelhas más e o que promete às suas. E vós, assim diz, sois minhas ovelhas. Antes do mais, que felicidade ser do rebanho de Deus, tão grande que se alguém nela pensar, irmãos, até mesmo nas lágrimas e nas tribulações de agora, lhe vem imensa alegria. De quem foi dito: Que apascentas Israel, é aquele mesmo de quem se diz: Não cochilará nem há de dormir quem guarda Israel. Por conseguinte, ele vigia sobre nós acordados, vigia sobre nós adormecidos. Se, pois, o rebanho de um homem se sente seguro pelo pastor homem, que segurança não deve ser a nossa por ser Deus mesmo que nos apascenta, e não apenas porque nos alimenta, mas também porque nos fez?

            Vós, ovelhas minhas, assim diz o Senhor Deus: eis que distingo entre ovelha e ovelha, entre bodes e cabritos. Que fazem aqui no rebanho de Deus os cabritos? Nas mesmas pastagens, nas mesmas fontes e, no entanto, cabritos destinados à esquerda se misturam aos da direita. São tolerados antes de ser separados. Provam a paciência das ovelhas à semelhança da paciência de Deus. Ele fará, sim, a separação, uns à esquerda, outros à direita.

-- Santo Agostinho, bispo (século V)

18 de jun. de 2022

Tomai e comei, este é o meu corpo. Tomai e bebei, este é o meu sangue


Agora podemos identificar algumas consequências práticas da doutrina sobre a Eucaristia em nossas vidas diárias. Se na consagração nós [padres] dizemos "Tomai e comei, este é o meu corpo. Tomai e bebei, este é o meu sangue", devemos entender o que as palavras "corpo" e "sangue" significam., isto é, o que estamos ofertando.

Na Bíblia corpo não indica apenas uma parte ou o objeto físico que combinado com a alma e o espírito formam um ser humano completo. Na linguagem bíblica utilizada por Jesus e Paulo, corpo indica também como a pessoa vive, toda condição corporal e mortal da pessoa. Corpo, portanto, significa a vida completa de uma pessoa, seus atos, pensamentos e emoções. Ao instituir a Eucaristia, Jesus nos deixou a sua vida como um dom, do primeiro instante da incarnação até o último momento, com tudo que concretamente se realizou na sua vida: os momentos de silêncio, orações, trabalho, dificuldades, humilhações, etc...

Jesus também disse "Este é o meu sangue", mas por que ele acrescenta a palavra "sangue" se ele já havia dado seu corpo e o sangue é parte do corpo? Ele está acrescentando sua morte! Após nos dar sua vida, Ele também nos deixa a parte mais preciosa da sua vida, sua morte. De fato, o termo sangue não indica apenas uma parte do corpo de uma pessoa, também indica um evento: a morte. Se o sangue é onde reside a vida, como era entendido naquela época, derramar seu sangue é dar sua vida. A Eucaristia é o mistério do corpo e sangue de Jesus, isto é, de sua vida e morte!

Agora pergunto, pensando em nós, ao ofertarmos nosso corpo e nosso sangue junto com o de Jesus na Missa, o que estamos realmente ofertando? Também somos chamados a ofertar o Jesus ofereceu: nossa vida e nossa morte. Com a palavra corpo, estamos dando tudo que constitui nossa vida neste mundo: tempo, saúde, energia, habilidades, afetos, até pequenos gestos como um sorriso. Com a palavra sangue, estamos nos referindo a nossa morte, não necessariamente a morte definitiva, um martírio por Jesus e nossos irmãos. Tudo em nós prepara e antecipa a morte: humiliações, falhas, doenças, limitações da idade, tudo que nos mortifica.

Tudo isto requer que após sairmos da Missa, façamos o nosso mlhor para realizar o que acabamos de dizer, que realmente tentemos, com todas nossas limitações, oferecer aos nossos irmãos e irmãs, nosso corpo, isto é, nosso tempo, energia e atenção, nossa vida. É necessário que após termos dito "tomai e comei", nos deixemos realmente ser consumidos, inclusive por aqueles que não o fazem com todo amor, respeito e delicadeza que desejamos. Santo Inácio de Antioquia, quando estava indo para Roma, onde seria morto, escreveu: "Eu sou trigo de Cristo, que eu seja devorado pelos dentes afiados das feras para me tornar o puro pão do Senhor". Cada um de nós, se olharmos atentamente, possuimos estes dentes afiados das feras, e atacamos com críticas, discussões, brigas abertas ou escondidas, diferentes visões e caráter.

Vamos imaginar o que aconteceria se celebrarmos a Missa com esta participações especial, se todos disséssemos, no momento da consagração, alguns em voz alta, outros em silêncio, "tomai e comei". Um padre e, ainda mais, um bispo, celebra a Missa desta maneira e depois vai pelo resto do dia: ele reza, prega, confessa, recebe pessoas, visita doentes, escuta, ensina, etc.... o dia deve também ser uma Eucaristia. Um grande pregador francês, Pierre Olivaint (1816-1871), costumava dizer: "Na manhã, quando celebro a Missa, eu sou o sacerdote e Jesus a vítima; ao longo do dia, Jesus é o sacerdote e eu sou a vítima". É assim que um padre imita o Bom Pastor, quando ele dá a vida às suas ovelhas.

Nossa participação na Eucaristia

Gostaria de concluir, usando um exemplo bastante humano, o que ocorre na celebração eucarística. Imaginem uma grande família, onde haja um filho, o mais velho, que admira e ama seu pai. Para seu aniversário, ele gostaria dar um presente precioso, mas antes de dar o presente, ele pede a todos seus irmãos e irmãs que também assinem o cartão. O pai recebe o presente como uma prova de amor de todos seus filhos e filhas, sem distinção, quando, na realidade, foi apenas o mais velho que pagou pelo presente. 

Isto é o que acontece no sacrifício eucarístico, Jesus admira e ama o Senhor infinitamente. Ele deseja dar todos os dias, até o final dos tempos, o mais precioso presente que alguém pode imaginar, sua própria vida. Na Missa, Ele convida seus irmãos e irmãs a colocar sua assiantura no presente, para que chegue até o Pai como um presente de todos seus filhos, mesmo que apenas um tenha se sacrificado por ele. E que sacrifício foi o de Jesus!

Nossa participação, nossa assinatura, são as pequenas gotas de água que são acrecentadas ao cálice de vinho. Elas não são nada mais do que água, mas misturadas ao vinho do cálice, tornam-se uma coisa só. A nossa assinatura é o Amém solene que a assembléia pronuncia ou canta, ao final da doxologia "Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória agora e para sempre" respondemos "AMÉM!".

Sabemos que quem assina um contrato deve honrar sua assinatura. Isto significa que ao deixarmos a Missa, devemos fazer da nossa vida um dom de amor ao Pai eplo bem de nossos irmãos e irmãs. Nós, eu repito, não somos apenas chamados a celebrar a Eucaristia, mas fazermos eucaristia. Que Deus possa nos ajudar!

-- Padre Raniero Cantalamessa, segunda catequese no Tempo de Quaresma, 18 de Março de 2022.

--  Esta é a terceira parte de uma catequese sobre Eucaristia. Na primeira parte, Padre Raniero falou da Eucaristia na tradição judaica e como Jesus transformou sua natureza ai dizer: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” e "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós". Na segunda parte, falou do papel dos padres na Eucaristia.


6 de jun. de 2022

Maria, Mãe da Igreja

 

Considerando as estreitas relações de Maria com a Igreja, para a glória da Santa Virgem e para nosso conforto, proclamamos Maria Santíssima Mãe da Igreja, isto é, de todo o povo de Deus, tanto dos fiéis como dos Pastores, que lhe chamam Mãe amorosíssima; e queremos que, com este título suavíssimo, a Mãe de Deus seja doravante ainda mais honrada e invocada por todo o povo cristão.

Trata-se de um título que não é novo para a piedade dos cristãos; pois é justamente com este nome de Mãe, de preferência a qualquer outro, que os fiéis e a Igreja toda costumam dirigir-se a Maria. Na verdade, ele pertence à genuína substância da devoção a Maria, achando sua justificação na própria dignidade da Mãe do Verbo Encarnado.

Efetivamente, assim como a Maternidade divina é o fundamento da especial relação de Maria com Cristo e da sua presença na economia da salvação operada por Cristo Jesus, assim também essa Maternidade constitui o fundamento principal das relações de Maria com a Igreja, sendo ela a Mãe daquele que, desde o primeiro instante da sua Encarnação, no seu seio virginal, uniu a si, como Cabeça, o seu Corpo Místico, que é a Igreja. Maria, pois, como Mãe de Cristo, também é Mãe dos fiéis e de todos os Pastores, isto é, da Igreja.

Portanto, é com ânimo cheio de confiança e de amor filial que elevamos o olhar para ela, não obstante a nossa indignidade e fraqueza. Ela, que em Jesus nos deu a fonte da graça, não deixará de socorrer a Igreja com seu auxílio materno, sobretudo neste tempo em que a Esposa de Cristo se empenha, com novo alento, na sua missão salvadora.

A nossa confiança é ainda mais reavivada e corroborada quando consideramos os laços estreitíssimos que prendem esta nossa Mãe celeste ao gênero humano. Embora na riqueza das admiráveis prerrogativas com que Deus a adornou para fazê-la digna Mãe do Verbo Encarnado, ela está, todavia, pertíssimo de nós. Filha de Adão, como nós, e por isto nossa irmã por laços de natureza, ela é, entretanto, a criatura preservada do pecado original em vista dos méritos de Cristo, e que, aos privilégios obtidos junta a virtude pessoal de uma fé total e exemplar, merecendo o elogio evangélico de: Bem-aventurada és tu, porque acreditaste (Lc 1,45).

Na sua vida terrena, ela realizou a perfeita figura do discípulo de Cristo, espelho de todas as virtudes, e encarnou as bem-aventuranças evangélicas proclamadas por Cristo Jesus. Por isso, toda a Igreja, na sua incomparável variedade de vida e de obras, encontra nela a forma mais autêntica de perfeita imitação de Cristo.

--  Do Discurso de São Paulo VI, papa, no encerramento da terceira sessão do Concílio Vaticano II (21 de novembro de 1964)

4 de jun. de 2022

Quem está comigo, está junto do fogo



 
Prezados irmãos e irmãs!

Na solene celebração do Pentecostes, somos enviados a professar a nossa fé na presença e na ação do Espírito Santo e a invocar a sua efusão sobre nós, sobre a Igreja e sobre o mundo inteiro. Portanto, façamos nossa, e com intensidade particular, a invocação da própria Igreja:  Veni, Sancte Spiritus! Uma invocação tão simples e imediata, mas ao mesmo tempo extraordinariamente profunda, que brota em primeiro lugar do Coração de Cristo. Com efeito, o Espírito é o dom que Jesus pediu e pede continuamente ao Pai pelos seus amigos; o primeiro e principal dom que nos obteve com a sua Ressurreição e Ascensão ao Céu.

Desta oração de Cristo fala-nos o trecho evangélico, que tem como contexto a Última Ceia. O Senhor Jesus disse aos seus discípulos:  "Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre" (Jo 14, 15-16). Aqui revela-se-nos o Coração orante de Jesus, o seu Coração filial e fraterno. Esta oração alcança o seu ápice e o seu cumprimento na cruz, onde a invocação de Cristo se identifica com o dom total que Ele faz de si mesmo, e deste modo o seu rezar torna-se por assim dizer o próprio selo do seu doar-se em plenitude por amor ao Pai e à humanidade:  invocação e doação do Espírito Santo encontram-se, compenetram-se e tornam-se uma única realidade. "E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre". Na realidade, a oração de Jesus – a da Última Ceia e a da cruz – é uma oração que permanece também no Céu, onde Cristo está sentado à direita do Pai. Com efeito, Jesus vive sempre o seu sacerdócio de intercessão a favor do povo de Deus e da humanidade, e portanto reza por todos pedindo ao Pai o dom do Espírito Santo.

A narração do Pentecostes no livro dos Atos dos Apóstolos – ouvimo-lo na primeira leitura – (cf. At 2, 1-11) apresenta o "novo curso" da obra de Deus, baseado na ressurreição de Cristo, obra que envolve o homem, a história e o cosmos. Do Filho de Deus morto e ressuscitado, que voltou para o Pai, emana agora sobre a humanidade com energia inédita o sopro divino, o Espírito Santo. E o que produz esta nova e poderosa autocomunicação de Deus? Onde existem lacerações e estraneidades, ela cria unidade e compreensão. Tem início um processo de reunificação entre as partes da família humana, divididas e dispersas; as pessoas, muitas vezes reduzidas a indivíduos em competição ou em conflito entre si, alcançadas pelo Espírito de Cristo, abrem-se à experiência da comunhão, que pode empenhá-las a ponto de fazer delas um novo organismo, um novo sujeito:  a Igreja. Este é o efeito da obra de Deus:  a unidade; por isso, a unidade é o sinal de reconhecimento, o "cartão de visita" da Igreja no curso da sua história universal. Desde o início, do dia do Pentecostes, ela fala todas as línguas. A Igreja universal precede as Igrejas particulares, as quais devem conformar-se sempre com ela, segundo um critério de unidade e universalidade. A Igreja nunca permanece prisioneira de confins políticos, raciais ou culturais; não se pode confundir com os Estados e nem sequer com as Federações de Estados, porque a sua unidade é de outro tipo e aspira a atravessar todas as fronteiras humanas.

Amados irmãos, disto deriva um critério prático de discernimento para a vida cristã:  quando uma pessoa, ou uma comunidade, se fecha no seu próprio modo de pensar e de agir, é sinal que se afastou do Espírito Santo. O caminho dos cristãos e das Igrejas particulares deve confrontar-se sempre com o da Igreja, una e católica, e harmonizar-se com ele. Isto não significa que a unidade criada pelo Espírito Santo é uma espécie de igualitarismo. Pelo contrário, ela é sobretudo o modelo de Babel, ou seja, a imposição de uma cultura da unidade que poderíamos definir "técnica". Com efeito, a Bíblia diz-nos (cf. Gn 11, 1-9) que em Babel todos falavam uma só língua. Pelo contrário, no Pentecostes os Apóstolos falam línguas diferentes, de modo que cada um compreenda a mensagem no seu próprio idioma. A unidade do Espírito manifesta-se na pluralidade da compreensão. A Igreja é por sua natureza una e múltipla, destinada como está a viver em todas as nações, em todos os povos e nos mais diversificados contextos sociais. Ela responde à sua vocação, de ser sinal e instrumento de unidade de todo o gênero humano (cf. Lumen gentium, 1), apenas se permanece autônoma de qualquer Estado e de toda a cultura particular. Sempre e em cada lugar, a Igreja deve ser verdadeiramente católica e universal, a casa de todos, onde cada um se pode encontrar.

A narração dos Atos dos Apóstolos oferece-nos também outra sugestão muito concreta. A universalidade da Igreja é expressa pelo elenco dos povos, segundo a antiga tradição:  "Somos Partas, Médios, Elamitas...", etc. Pode-se observar aqui que São Lucas vai além do número 12, que já expressa sempre uma universalidade. Ele olha além dos horizontes da Ásia e do noroeste da África, e acrescenta outros três elementos:  os "Romanos", ou seja, o mundo ocidental; os "judeus e prosélitos", incluindo de modo novo a unidade entre Israel e o mundo; e enfim "Cretenses e Árabes", que representam Ocidente e Oriente, ilhas e terra firme. Esta abertura de horizontes confirma ulteriormente a novidade de Cristo na dimensão do espaço humano, da história das gentes:  o Espírito Santo envolve homens e povos e, através deles, supera muros e barreiras.

No Pentecostes, o Espírito Santo manifesta-se como fogo. A sua chama desceu sobre os discípulos reunidos, acendeu-se neles e infundiu-lhes o novo ardor de Deus. Realiza-se assim aquilo que o Senhor Jesus tinha predito:  "Vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já tivesse sido ateado!" (Lc 12, 49). Juntamente com os fiéis das diversas comunidades, os Apóstolos levaram esta chama divina até aos extremos confins da Terra; abriram assim um caminho para a humanidade, uma senda luminosa, e colaboraram com Deus que com o seu fogo quer renovar a face da terra. Como é diferente este fogo, daquele das guerras e das bombas! Como é diverso o incêndio de Cristo, propagado pela Igreja, em relação aos que são acendidos pelos ditadores de todas as épocas, também do século passado, que atrás de si deixam terra queimada. O fogo de Deus, o fogo do Espírito Santo, é aquele da sarça que ardia sem se consumir (cf. Êx 3, 2). É uma chama que arde, mas não destrói; aliás, ardendo faz emergir a parte melhor e mais verdadeira do homem, como numa fusão faz sobressair a sua forma interior, a sua vocação à verdade e ao amor.


Um Padre da Igreja, Orígenes, numa das suas Homilias sobre Jeremias, cita um dito atribuído a Jesus, não contido nas Sagradas Escrituras mas talvez autêntico, que reza assim:  "Quem está comigo está junto do fogo" (Homilia sobre Jeremias l. I [III]). Com efeito, em Cristo habita a plenitude de Deus, que na Bíblia é comparado com o fogo. Há pouco pudemos observar que a chama do Espírito Santo arde mas não queima. E todavia, ela realiza uma transformação, e por isso deve consumir algo no homem, as escórias que o corrompem e o impedem nas suas relações com Deus e com o próximo. Porém, este efeito do fogo divino assusta-nos, temos medo de nos "queimar", preferiríamos permanecer assim como somos. Isto depende do facto que muitas vezes a nossa vida é delineada segundo a lógica do ter, do possuir, e não do doar-se. Muitas pessoas crêem em Deus e admiram a figura de Jesus Cristo, mas quando se lhes pede que abandonem algo de si mesmas, então elas recuam, têm medo das exigências da fé. Existe o temor de ter que renunciar a algo de bonito, ao que estamos apegados; o temor de que seguir Cristo nos prive da liberdade, de certas experiências, de uma parte de nós mesmos. Por um lado, queremos permanecer com Jesus, segui-lo de perto, e por outro temos medo das consequências que isto comporta.

Caros irmãos e irmãs, temos sempre necessidade de ouvir o Senhor Jesus dizer-nos aquilo que Ele repetia aos seus amigos:  "Não tenhais medo!". Como Simão Pedro e os outros, temos que deixar que a sua presença e a sua graça transformem o nosso coração, sempre sujeito às debilidades humanas. Temos que saber reconhecer que perder algo, aliás, perder-se a si mesmo pelo Deus verdadeiro, o Deus do amor e da vida, é na realidade ganhar, encontrar-se mais plenamente a si próprio. Quem se confia a Jesus experimenta já nesta vida a paz e a alegria do coração, que o mundo não pode dar, e nem sequer pode tirar, uma vez que foi Deus quem no-las concedeu. Portanto, vale a pena deixar-se tocar pelo fogo do Espírito Santo! A dor que nos causa é necessária para a nossa transformação. É a realidade da cruz:  não é por acaso que, na linguagem de Jesus, o "fogo" é sobretudo uma representação do mistério da cruz, sem o qual o cristianismo não existe. Por isso, iluminados e confortados por estas palavras de vida, elevemos a nossa invocação:  Vinde, Espírito Santo! Ateai em nós o fogo do vosso amor! Sabemos que esta é uma oração audaz, com a qual pedimos para ser tocados pela chama de Deus; mas sabemos sobretudo que esta chama – e só ela – tem o poder de nos salvar. Para defender a nossa vida, não queremos perder a vida eterna que Deus nos quer conceder. Temos necessidade do fogo do Espírito Santo, porque só o Amor redime. Amém! 

-- Papa Bento XVI, Homília na Festa de Pentecostes, 2010.

3 de jun. de 2022

Eucaristia: sacerdote e vítima


 Esta é a segunda parte de uma catequese sobre Eucaristia. Na primeira parte, Padre Raniero falou da Eucaristia na tradição judaica e como Jesus transformou sua natureza ai dizer: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” e "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós". É interessante antes ler a primeira parte.


Até aqui abordei os aspectos litúrgicos e rituais da consagração eucarística. Agora vou falar de outro aspecto, de um tipo mais pessoal e existencial, isto é, do papel que nós, padres e fiéis, temos no momento da Missa. Para entender o papel de um padre na consagração, é de importância vital entender a natureza do sacríficio e sacerdócio de Cristo por que é deles que o sacerdócio cristão se origina, tanto o sacerdócio de inistros ordenados quanto dos fiéis batizados.

De fato não somos mais "sacerdotes segundo a ordem de Melquisedec", somos "sacerdotes segundo a ordem de Jesus Cristo"; no altar agimos "in persona Christi", representamos o sacerdote principal, Jesus Cristo. No simpósio sobre o sacerdócio, realizado neste local mês passado, abordou este assunto muito mais do que posso fazer em minha breve reflexão, mas é necessário dizer algo, aqui, para a compreensão da Eucaristia.  

A Carta aos hebreus explica a novidade e excepcionalidade do sacerdócio de Cristo: "sem levar consigo o sangue de carneiros ou novilhos, mas com seu próprio sangue, [Cristo] entrou de uma vez por todas no santuário, adquirindo-nos uma redenção eterna" (Hb 9,12). Todos sacerdotes oferecem algo não pessoal, mas Cristo ofereceu a si mesmo; sacerdotes comuns oferecem vítimas, Cristo foi a própria vítima! Santo Agostinho resumiu em poucas palavras este novo tipo de sacerdócio no qual o celebrante e a vítima são a mesma pessoa: “Ideo sacerdos quia sacrificium”, "sacerdote porque é vítima". O teólogo francês René Girard definiu o sacrifício de Cristo como "o acontecimento central na vida religiosa da humanidade", pois coloca um fim na aliança entre o sagrado e a violência.


Em Cristo é Deus que se tornou vítima, não é mais o ser humano oferecendo sacrifícios para agradar a Deus e torná-lo favorável; é Deus que sacrifica a si mesmo em favor da humanidade, permitindo que seu único Filho morra por nossa salvação (cf. Jo 3,16). Jesus não ofereceu o sangue de outros, mas com seu próprio sangue, ele não colocou suas culpas nas costas de outros, animais ou pessoas, mas ele colocou nossos pecados nos seus próprios ombros: "Ele
carregou os nossos pecados em seu corpo" (1Pe 2,24). 

O que significa é que na Missa, nós padres, devemos também ser sacerdotes e vítimas ao mesmo tempo. Em vista disto, devemos refletir sobre as palavras da consagração: "Este é meu sacrifício oferecido por vós". Sobre isto gostaria de compartilhar minha experiência, como eu descobri o significado eclesial e pessoal da consagração eucarística. Nos primeiros anos de sacerdócio, no momento da consagração em fechava meus olhos, inclinava minha cabeça e tentava me afastar o máximo possível de tudo que acontecia ao redormpara me identificar com Jesus, quando Ele pronunciou pela primeira vez aquela frase: "Tomai e comei...". A liturgia mesmo convidava a esta atitude, com as palavras pronunciadas em latim, inclinado sobre as espécies a serem consagradas.

Então ocorrreu a reforma litúrgica do Vaticano II. As missas começaram a ser celebradas olhando a assembléia, não mais Latim, mas passamos a usar a linguagem do povo. Isto me ajudou a entender que minha atitude não expressava o real significado da minha participação na consagração: que o Jesus do Cenáculo já não existe mais! Quem está presente é Jesus ressuscitado, o Cristo que morreu, mas agora vive para a eternidade (cf. Ap 1,18). Este é o "Jesus total", Cabeça e Corpo unidos. Logo, se este é o Cristo total que pronuncia as palavras da consagração, eu também as pronuncio junto com Ele. Sim, eu as pronuncio "in persona Christi", em nome de Cristo, mas também em primeira pessoas, isto é, em meu nome. A partir do dia em que entendi isto, eu parei de fechar meus olhos no momento da consagração, mas dnha mantê-los abertos para olhar os irmãos na minha frente, ou, se estava celebrando sozinho, pensar  na inteira Igreja, e virado para eles, dizer como Jesus: "Tomai e comei, este é o meu corpo oferecido por vós; tomai e bebei, este é o meu sangue derramado por vós".

Mais tarde, Santo Agostinho me ajudou a remover todas as dúvidas que tinha. "Aquilo que a Igreja oferece, ele oferece a si mesma", como ele escreveu em uma famosa passagem de [do livro] Cidade de Deus. Mais próxima a nós está a mística mexicana Concepcion Cabrera de Armida, conhecida Conchita, que morreu em 1937 e foi beatificada em 2015. Para o seu filho jesuíta, que estava próximo a ser ordenado, ela escreveu: "Meu filho lembre que quando segurar em suas mãos a Sagrada Hóstia, não vais dizer 'olhem o Corpo de Cristo, olhem o Sangue de Cristo', mas irás dizer 'este 'o meu Corpo, meu Sangue', ou seja, terás que passar por uma total transformação, deixar de ser você e ser um novo Jesus".

Tudo isto se aplica não apenas a padres e bispos, mas a todos batizados. Um famoso texto do Concílio explica desta maneira:

Os fiéis, incorporados na Igreja pelo Batismo ... pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica (Lumen Gentium 10-11).

No altar há dois corpos de Cristo: o corpo real, nascido da Virgem Maria, morto, ressuscitado e que acendeu ao céus; e o corpo místico, que é a Igreja. De fato, seu corpo está realmente presente no altar e seu corpo místico também está misticamente presente, "misticamente" por que há uma união inseparável entre a Igreja e sua Cabeça. Não há confusão entre as duas presenças, ambas são distintas e inseparáveis.

Assim como há duas ofertas no altar, uma que se torna em corpo e sangue de Cristo, o pão e vinho, e aquele que se torna o corpo místico de Cristo, também há duas epicleses na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo. Na primeira é dito "
Senhor, nós te pedimos: santificai estas ofertas, espalhando-los em seu Espírito, para que se tornem para nós o corpo e o sangue de Jesus Cristo, nosso Senho", na segunda, que é recitada após a consagração, dizemos "enviai teu Espírito Santo para que nos tornemos um só corpo e um só espírito em Cristo. Que o Espírito Santo nos faça um sacrifício perene agradável ao Senhor".

Esta é a forma como a Eucaristia e a Igreja se relacionam: a Eucaristia faz a Igreja fazendo da Igreja uma Eucaristia! A Eucaristia não é apenas, genericametne, a fonte ou causa da santidade da Igreja, é também o seu modelo. A santidade do cristão é realizada através da Eucaristia, deve ser uma santidade Eucarística. Os cristãos não podem se limitar a celebrar a Eucaristia, devem ser uma Eucaristia com Jesus.


-- Padre Raniero Cantalamessa, segunda catequese no Tempo de Quaresma, 18 de Março de 2022.

NT: as epiclises variam entre as diferentes Orações Eucarísticas, Padre Raniero cita apenas uma das formas.


16 de mai. de 2022

Frases de Santa Maria Mazzarello


Santa Maria Mazzarelo
, cuja festa recém festejamos em 13 de Maio, fundou a Ordem das Filhas de Maria Auxiliadora, com a aprovação de Dom Bosco, em 1867, e foi escolhida como sua primeira superiora. A Ordem logo começou a se espalhar pela Europa e América e, como parte de sua função, Madre Mazzarello escreveu muitas cartas para as irmãs. Aqui algumas frases da Santa:

  • Eu gostaria de animar em vossos corações um amor pelo sacrifício e desprezo de suas vontades. Nos tornamos irmãs para garantir os céus, mas sacrifícios e obediência são necessários para ganhá-lo. Carreguemos nossas cruzes com coragem, e um dia seremos felizes. 
  • Irmãs, vocês tem amado umas às outras, tem praticado a caridade entre vós? Espero que sim, mas nestas coisas sempre é possível melhorar. Portanto, para agradarem a nossa querida mãe, Nossa Senhora, sejam caridosas, dêem bons conselhos, com gentileza, e sempre aceitem os conselhos, não importa de quem os recebam. Coragem irmãs, esta vida passa rapidamente, mas nossas obras permanecerão no momento da morte. Caprichos, orgulhos e vaidades irão causar muitas angústias no momento da morte.
  • Esta vida passa rapidamente e no momento da morte estaremos felizes por todas mortificações e batalhas contra o orgulho e nossas vontades. Eu peço que nunca percas a coragem é que nos colocarão no caminho da perfeição, desde que tenhamos uma sincera humildade.
  • Irmãs, eu vos desejo um feliz ano novo repleto de bençãos de céu. Lembrem-se que este pode ser o último ano de suas vidas, que sabe se veremos o final do ano? Devemos estar sempre preparadas e com nossa casa em ordem, deste modo não temeremos a morte. Lutem contra o orgulho, este é um terrível inimigo que nos faz perder os frutos de nossas boas ações. Rezem ferventemente por mim e, também, por suas irmãs. Não se esqueçam daqueles que já partiram para a próxima vida e dos que são missionários na América.
  • Minhas amadas irmãs, eu exorto que amem-se umas às outras, sempre pratiquem a caridade, ajudem-se mutuamente, aceitem os defeitos umas das outras, apontado-os sempre com caridade e gentileza. Cuidem de sua saúde, lembrem-se que demos nossa vida, ela já não nos pertence, nós a demos à comunidade, mas devemos cuidá-la e usá-la para a glória de Deus.
  • Estou triste que a Duquesa esteja chateada convosco. Queridas irmãs, isto não importa. As flores das roseiras sempre florescem, mas antes brotam os espinhos, e assim também aconteceu convosco. Permaneçam alegres, estes problemas do mundo passarão.
  • Você fez o retiro? Então deves estar cheia de fervor, seja um exemplo de obediência, caridade e correção em tudo. Seja muito cuidadosa para não deixar a chama que o Senhor acendeu nestes dias de retiro se extinguir, lembre-se que não basta ter boas intenções, é preciso colocá-las em prática se queremos preparar para nós uma bela coroa para o dia que entrarmos nos céus. Coragem, minha boa Teresa, seja sempre humilde e sincera, reze bastante, mas com o coração, respeite a madre superiora, sempre faça cada ato como se fosse o último em tua vida, deste modo estarás sempre feliz.
  • Tenha coragem, é verdade que não podemos fazer tudo que gostaríamos, mas com humildade e oração podemos permanecer próximas ao Senhor, e quando Ele está conosco, tudo é favorável. Nunca te canses de praticar as virtudes, por mais um pouco e um dia estaremos juntas nos céus! Que grande festa teremos!
  • Muitas vezes nossa imaginação faz tudo parecer muito triste, quando na verdade é tudo muito bom.
  • Amem-se umas às outras, amem sua superiora como se ela fosse Nossa Senhora, e tratem-na com todo respeito. Minhas queridas irmãs, lembrem-se que onde reina a caridade há o Paraíso. Jesus permanece com as irmãs que são humildes, obedientes e caridosas. Ajam de tal maneira que Jesus queira permanecer entre vocês.
  • Sejam muito devotas à Virgem Maria, nossa amada mãe. Imitem suas virtudes, especialmente  humildade, pureza e tranquilidade. Se agirem desta maneira, serão felizes nesta vida e após a morte.

 -- Tradução própria

26 de abr. de 2022

O sacramento da unidade e da caridade

A edificação espiritual do corpo de Cristo realiza-se na caridade, segundo as palavras de São Pedro: Como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo (1Pd 2,5). Esta edificação espiritual atinge sua maior eficácia no momento em que o próprio Corpo do Senhor, que é a Igreja, no sacramento do pão e do cálice, oferece o corpo e o sangue de Cristo: o cálice que bebemos é a comunhão com o sangue de Cristo; e o pão que partimos, é a comunhão com o corpo de Cristo. Porque há um só pão, nós todos participamos desse único pão (cf. 1Cor 10,16-17).

Por isso pedimos que a mesma graça que faz da Igreja o Corpo de Cristo, faça com que todos os membros, unidos pelos laços da caridade, perseverem firmemente na unidade do corpo.

E com razão suplicamos que isto se realize em nós pelo dom daquele Espírito que é ao mesmo tempo o Espírito do Pai e do Filho; porque sendo a Santíssima Trindade, na unidade de natureza, igualdade e amor, o único e verdadeiro Deus, é unânime a ação das três Pessoas divinas na obra santificadora daqueles que adota como filhos.

Eis por que está escrito: O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5).

O Espírito Santo, que é unidade do Pai e do Filho, realiza agora naqueles a quem concedeu a graça da adoção divina, transformação idêntica à que realizou naqueles que receberam o mesmo Espírito, conforme lemos no livro dos Atos dos Apóstolos: A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma (At 4,32). Quem fez dessa multidão dos que creram em Deus um só coração e uma só alma, foi aquele Espírito que é unidade do Pai e do Filho e com o Pai e o Filho é um só Deus.

Por isso, o Apóstolo exorta a conservarmos com toda a solicitude esta unidade do espírito no vínculo da paz, quando diz aos efésios: Eu, prisioneiro no Senhor, vos exorto a caminhardes de acordo com a vocação que recebestes: com toda a humildade e mansidão, suportando-vos uns aos outros com paciência, no amor. Aplicai-vos a guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz. Há um só Corpo e um só Espírito (Ef 3,1-4).

Deus, com efeito, enquanto conserva na Igreja o amor que ela recebeu pelo Espírito Santo, transforma-a num sacrifício agradável a seus olhos. De modo, que, recebendo continuamente esse dom da caridade espiritual, a Igreja possa sempre se apresentar como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.

 -- Dos “Livros a Monimo”, de São Fulgêncio, bispo de Ruspe (século VI)

23 de abr. de 2022

Homilia da Canonização de Irmã Faustina Kowalska

 


 1. "Confitemini Domino quoniam bonus, quoniam in aeternum misericordia eius".

"Louvai o Senhor, porque Ele é bom, porque é eterno o Seu amor" (Sl 118, 1). Assim canta a Igreja na Oitava de Páscoa, como que recolhendo dos lábios de Cristo estas palavras do Salmo, dos lábios de Cristo ressuscitado, que no Cenáculo traz o grande anúncio da misericórdia divina e confia aos apóstolos o seu ministério: "A paz seja convosco! Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós... Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos" (Jo 20, 21-23).

Antes de pronunciar estas palavras, Jesus mostra as mãos e o lado. Isto é, indica as feridas da Paixão, sobretudo a chaga do coração, fonte onde nasce a grande onda de misericórdia que inunda a humanidade. Daquele Coração a Irmã Faustina Kowalska, a Beata a quem de agora em diante chamaremos Santa, verá partir dois fachos de luz que iluminam o mundo: "Os dois raios, explicou-lhe certa vez o próprio Jesus representam o sangue e a água" (Diário, Libreria Editrice Vaticana, pág. 132).

2. Sangue e água! O pensamento corre rumo ao testemunho do evangelista João que, quando um soldado no Calvário atingiu com a lança o lado de Cristo, vê jorrar dali "sangue e água" (cf. Jo 19, 34). E se o sangue evoca o sacrifício da cruz e o dom eucarístico, a água, na simbologia joanina, recorda não só o baptismo, mas também o dom do Espírito Santo (cf. Jo 3, 5; 4, 14; 7, 37-39).

A misericórdia divina atinge os homens através do Coração de Cristo crucificado: "Minha filha, dize que sou o Amor e a Misericórdia em pessoa", pedirá Jesus à Irmã Faustina (Diário, pág. 374). Cristo derrama esta misericórdia sobre a humanidade mediante o envio do Espírito que, na Trindade, é a Pessoa-Amor. E porventura não é a misericórdia o "segundo nome" do amor (cf. Dives in misericordia, 7), cultuado no seu aspecto mais profundo e terno, na sua atitude de cuidar de toda a necessidade, sobretudo na sua imensa capacidade de perdão?

É deveras grande a minha alegria, ao propor hoje à Igreja inteira, como dom de Deus para o nosso tempo, a vida e o testemunho da Irmã Faustina Kowalska. Pela divina Providência a vida desta humilde filha da Polónia esteve completamente ligada à história do século XX, que há pouco deixámos atrás. De facto, foi entre a primeira e a segunda guerra mundial que Cristo lhe confiou a sua mensagem de misericórdia. Aqueles que recordam, que foram testemunhas e participantes nos eventos daqueles anos e nos horríveis sofrimentos que daí derivaram para milhões de homens, bem sabem que a mensagem da misericórdia é necessária.

Jesus disse à Irmã Faustina: "A humanidade não encontrará paz, enquanto não se voltar com confiança para a misericórdia divina" (Diário, pág. 132). Através da obra da religiosa polaca, esta mensagem esteve sempre unida ao século XX, último do segundo milénio e ponte para o terceiro. Não é uma mensagem nova, mas pode-se considerar um dom de especial iluminação, que nos ajuda a reviver de maneira mais intensa o Evangelho da Páscoa, para o oferecer como um raio de luz aos homens e às mulheres do nosso tempo.

3. O que nos trarão os anos que estão diante de nós? Como será o futuro do homem sobre a terra? A nós não é dado sabê-lo. Contudo, é certo que ao lado de novos progressos não faltarão, infelizmente, experiências dolorosas. Mas a luz da misericórdia divina, que o Senhor quis como que entregar de novo ao mundo através do carisma da Irmã Faustina, iluminará o caminho dos homens do terceiro milénio.

Assim como os Apóstolos outrora, é necessário porém que também a humanidade de hoje acolha no cenáculo da história Cristo ressuscitado, que mostra as feridas da sua crucifixão e repete: A paz seja convosco! É preciso que a humanidade se deixe atingir e penetrar pelo Espírito que Cristo ressuscitado lhe dá. É o Espírito que cura as feridas do coração, abate as barreiras que nos separam de Deus e nos dividem entre nós, restitui ao mesmo tempo a alegria do amor do Pai e a da unidade fraterna.

4. É importante, então, que acolhamos inteiramente a mensagem que nos vem da palavra de Deus neste segundo Domingo de Páscoa, que de agora em diante na Igreja inteira tomará o nome de "Domingo da Divina Misericórdia". Nas diversas leituras, a liturgia parece traçar o caminho da misericórdia que, enquanto reconstrói a relação de cada um com Deus, suscita também entre os homens novas relações de solidariedade fraterna. Cristo ensinou-nos que "o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado a "ter misericórdia" para com os demais. "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mt 5, 7)" (Dives in misericordia, 14). Depois, Ele indicou-nos as múltiplas vias da misericórdia, que não só perdoa os pecados, mas vai também ao encontro de todas as necessidades dos homens. Jesus inclinou-se sobre toda a miséria humana, material e espiritual.

A sua mensagem de misericórdia continua a alcançar-nos através do gesto das suas mãos estendidas rumo ao homem que sofre. Foi assim que O viu e testemunhou aos homens de todos os continentes a Irmã Faustina que, escondida no convento de Lagiewniki em Cracóvia, fez da sua existência um cântico à misericórdia: Misericordias Domini in aeternum cantabo.

5. A canonização da Irmã Faustina tem uma eloquência particular: mediante este acto quero hoje transmitir esta mensagem ao novo milénio. Transmito-a a todos os homens para que aprendam a conhecer sempre melhor o verdadeiro rosto de Deus e o genuíno rosto dos irmãos.

Amor a Deus e amor aos irmãos são de facto inseparáveis, como nos recordou a primeira Carta de João: "Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e guardamos os Seus mandamentos" (5, 2). O Apóstolo recorda-nos nisto a verdade do amor, indicando-nos na observância dos mandamentos a medida e o critério.

Com efeito, não é fácil amar com um amor profundo, feito de autêntico dom de si. Aprende-se este amor na escola de Deus, no calor da sua caridade. Ao fixarmos o olhar n'Ele, ao sintonizarmo-nos com o seu coração de Pai, tornamo-nos capazes de olhar os irmãos com olhos novos, em atitude de gratuidade e partilha, de generosidade e perdão. Tudo isto é misericórdia!

Na medida em que a humanidade souber aprender o segredo deste olhar misericordioso, manifesta-se como perspectiva realizável o quadro ideal, proposto na primeira leitura: "A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia mas, entre eles, tudo era comum" (Act 4, 32). Aqui a misericórdia do coração tornou-se também estilo de relações, projecto de comunidade, partilha de bens. Aqui floresceram as "obras da misericórdia", espirituais e corporais. Aqui a misericórdia tornou-se um concreto fazer-se "próximo" dos irmãos mais indigentes.

6. A Irmã Faustina Kowalska deixou escrito no seu Diário: "Sinto uma tristeza profunda, quando observo os sofrimentos do próximo. Todas as dores do próximo se repercutem no meu coração; trago no meu coração as suas angústias, de tal modo que me abatem também fisicamente.

Desejaria que todos os sofrimentos caíssem sobre mim, para dar alívio ao próximo" (pág. 365). Eis a que ponto de partilha conduz o amor, quando é medido segundo o amor de Deus!

É neste amor que a humanidade de hoje se deve inspirar, para enfrentar a crise de sentido, os desafios das mais diversas necessidades, sobretudo a exigência de salvaguardar a dignidade de cada pessoa humana. A mensagem de misericórdia divina é assim, implicitamente, também uma mensagem sobre o valor de todo o homem. Toda a pessoa é preciosa aos olhos de Deus; Cristo deu a vida por cada um; o Pai dá o seu Espírito a todos, oferecendo-lhes o acesso à Sua intimidade.

7. Esta mensagem consoladora dirige-se sobretudo a quem, afligido por uma provação particularmente dura ou esmagado pelo peso dos pecados cometidos, perdeu toda a confiança na vida e se sente tentado a ceder ao desespero. Apresenta-se-lhe o rosto suave de Cristo, chegando-lhe aqueles raios que partem do seu Coração e iluminam, aquecem e indicam o caminho, e infundem esperança. Quantas almas já foram consoladas pela invocação "Jesus, confio em Ti", que a Providência sugeriu através da Irmã Faustina! Este simples acto de abandono a Jesus dissipa as nuvens mais densas e faz chegar um raio de luz à vida de cada um.

"Jezu ufam tobie!"

8. Misericordias Domini in aeternum cantabo (Sl 88 [89], 2). À voz de Maria Santíssima, "Mãe da misericórdia", à voz desta nova Santa, que na Jerusalém celeste canta a misericórdia juntamente com todos os amigos de Deus, unamos também nós, Igreja peregrinante, a nossa voz.

E tu, Faustina, dom de Deus ao nosso tempo, dádiva da terra da Polónia à Igreja inteira, obtém-nos a graça de perceber a profundidade da misericórdia divina, ajuda-nos a torná-la experiência viva e a testemunhá-la aos irmãos! A tua mensagem de luz e de esperança se difunda no mundo inteiro, leve à conversão os pecadores, amenize as rivalidades e os ódios, abra os homens e as nações à prática da fraternidade. Hoje, ao fixarmos contigo o olhar no rosto de Cristo ressuscitado, fazemos nossa a tua súplica de confiante abandono e dizemos com firme esperança:

Jesus Cristo, confio em Ti!

"Jezu, ufam tobie!". 

 -- Papa João Paulo II, 30 de Abril de 2000

19 de abr. de 2022

Eucaristia e a Oração Judaica


O objeto desta catequese mistagógica é a parte central da Missa, a Oração Eucarística, a parte  que inclui a consagração do corpo e sangue de Cristo. Farei dois tipos de observações, uma litúrgica e ritual, outra teológica e existencial.

Do ponto de vista ritual e litúrgico, temos hoje uma fonte que os Padres da Igreja e os doutores medievais não tiveram. A nova fonte é a reaproximação entre cristãos e judeus. Nos primeiros dias da igreja vários fatores históricos acentuaram as diferenças entre Cristianismo e Judaísmo, ao ponto de contrastar um com outro, como fez Santo Inácio de Antioquia. Distinguir-se dos judeus em vários pontos, como a data da Páscoa, dias de jejuns e muitas outras coisas, se tornou um tipo de “moda”. A acusação contra muitos adversários e heréticos naqueles tempos era chamá-los de “judaizantes”.

A tragédia do povo judaico, o Holocausto, e um novo clima de diálogo com o Judaísmo iniciado no Concílio Vaticano II, tornou possível uma melhor compreensão da matriz judaica na Eucaristia. Assim como a Páscoa Cristã não pode ser plenamente compreendida se não for considerada como o cumprimento das profecias da Páscoa Judaica, a Eucaristia também não pode ser compreendida se não for como o cumprimento de tudo o que os judeus fazem e dizem durante a refeição ritual. Um primeiro resultado importante desta mudança é que, hoje em diante, nenhum estudioso sério pode explicar a Eucaristia Cristã como sendo baseada em algum culto misterioso do Helenismo, como foi tentado por algum tempo.

Os Padres da Igreja mantiveram as Escrituras do povo judeu, mas não sua liturgia, já que não mais tinham acesso à ela após a separação entre a Igreja  e a Sinagoga. Eles, então, utilizaram as figuras contidas nas Escrituras, o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná, mas perderam o contexto litúrgico na qual o povo judaico celebrava estes fatos, em especial, na Páscoa (o Seder) e nas celebrações semanais nas sinagogas. O primeiro nome que designa a Eucaristia no Novo Testamento, como escrito por Paulo, é “refeição do Senhor” (1 Cor 11,20), o que é uma evidente referência à ceia judaica, que agora é diferente pela fé em Jesus. A Eucaristia é um sacramento de continuidade, não de oposição, entre o Velho e Novo Testamento, entre o Judaísmo e o Cristianismo.

A Eucaristia e a Berakah Judaica

Esta é a perspectiva que o Papa Bento XVI apresenta no capítulo sobre a instituição da Eucaristia no seu segundo livro sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião prevalente entre os estudiosos, ele aceita a cronologia joanina segundo a qual a Última Ceia não era uma ceia pascal mas uma solenidade de despedida. Citando Louis Bouyer, ele acrescenta que é possível traçar o desenvolvimento da liturgia eucarística cristã, isto é, do cânon, a partir da Berakah (bendição) judaica. 

Por várias razões culturais e históricas, a partir dos tempos medievais, a teologia tem tentado explicar a Eucaristia com base na filosofia, em particular, utilizando as noções aristotélicas de substância e acidente. Isto também era uma maneira de colocar os novos conhecimentos da época a serviço da fé e imitar a mesma metodologia dos Padres da Igreja. Hoje em dia, temos que fazer o mesmo com nosso conhecimento, no nosso caso, com o conhecimento histórico e litúrgico, mais que princípios filosóficos. No contexto de alguns estudos já iniciados por Louis Bouyer, eu gostaria de mostrar como esta luz tem iluminado nossa compreensão da Eucaristia Cristã quando consideramos como os Evangelhos narram a instituição da Eucaristia e o que sabemos sobre rituais judeus. Desta maneira, as inovações de Jesus não são diminuídas, mas ressaltadas.

A ligação entre o velho e o novo rito é dada pela Didaqué, um texto da era apostólica, onde encontramos o primeiro rascunho da anáfora eucarística. O rito da sinagoga era composto de uma série de preces, a Berakah, que, em grego, pode ser traduzido como Eucaristia. No início da refeição, cada um toma o cálice em suas mãos e repete, quase a mesma frase utilizada no ofertório: “Bendito és tu Senhor, nosso Deus, Rei eterno, que nos deu o fruto da vinha”.

Mas a refeição oficialmente iniciava apenas quando o pai da família, ou o líder da comunidade, partia o pão e distribuía entre os presentes. E, de fato, Jesus tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e distribuiu aos apóstolos dizendo: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” E aqui o rito que era apenas preparação, torna-se realidade. A figura torna-se o evento.

Após a benção do pão, os pratos usuais eram servidos. Quando a refeição está próxima do final, todos estão prontos para o grande ritual final que conclui a celebração e lhe dá um sentido mais profundo. Todos lavam suas mãos novamente, pois já haviam feito no início da refeição, então Jesus, tendo um cálice de vinho misturado com água, entoa três orações de agradecimento: a primeira a Deus Criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira porque Deus continua agindo no tempo presente. Após as preces, o cálice passa de mão e mão, e todos bebem. Este rito antigo foi realizado por Jesus muitas vezes, Ele certamente o conhecia muito bem.

Lucas diz que Jesus, após a refeição, toma o cálice e diz: “Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós” (Lc 22,20). Algo decisivo ocorre neste momento quando Jesus acrescenta suas palavras à tradicional oração de agradecimento, à Berakah judaica. Aquele ritual era uma ceia sagrada na qual o povo celebrava e agradecia a Deus, o seu Salvador, por tê-los salvo e feito uma aliança de amor que fora selada com o sangue de um cordeiro. Agora, naquele exato momento, Jesus anunciou que decidira dar sua vida em nosso favor e declarava que a Velha Aliança que celebravam estava concluída. Naquele momento, com estas simples palavras, Jesus fazia uma nova e eterna Aliança com seu Sangue.

-- Padre Raniero Cantalamessa, Primeira Homília de Quaresma, 18 de Março de 2022 

* esta é a terceira parte de uma série de catequeses dadas pelo Padre Raniero na Quaresma de 2022.  Nos próximos dias publicarei a sequência.

* tradução própria 

* a imagem é o quadro A Ültima Ceia, pintado por Simon Benning, cc 1525. Está exposto no J. Paul Getty Museum, Los Angeles.

11 de abr. de 2022

Eucaristia e a Liturgia da Palavra

Nos primeiros anos da Igreja, a Liturgia da Palavra e a Liturgia da Eucaristia não eram celebradas em conjunto. Os discípulos participavam dos serviços no Templo, ouviam as leituras da Bíblia, recitavam salmos e rezavam juntos com os judeus, depois iam para suas casas onde se reuniam para compartilhar o pão, isto é, celebrar a Eucaristia (Atos 2,46).


No entanto, esta prática logo tornou-se impossível devido à hostilidade da comunidade judaica e porque as Escrituras tinham um novo significado, alinhado aos ensinamentos de Cristo. Então eles pararam de ir ao Templo ou sinagogas para ler e ouvir as Escrituras, tiveram que criar o próprio lugar de oração, ou seja, foi a Liturgia da Palavra que conduziu até a Oração Eucarística. 


No segundo século, São Justino descreveu a Liturgia da Eucaristia já contendo os elementos essenciais da Missa atual. Não apenas a Liturgia da Palavra era parte integral, mas em adição às leituras do Velho Testamento, outras, que São Justino chamou de “Memórias dos Apóstolos”, isto é, as cartas e Evangelhos do Novo Testamento, também eram lidas. 


Quando ouvimos as leituras bíblicas na liturgia, elas tem um significado novo e mais forte que teriam em outro contexto. Quando lemos as Escrituras em casa ou as estudamos em um curso, elas nos servem para conhecer melhor a Bíblia, mas quando lemos na Liturgia, elas nos servem para conhecer melhor à Deus que se faz presente na partilha do pão e trazem à luz um novo aspecto do mistério que estamos prestes a receber. 


Isto já é visível na primeira Liturgia da Palavra, aquela entre Cristo Ressuscitado e os discípulos de Emaús. Enquanto ouviam a explicação da Palavra, seus corações foram tocados de uma maneira em reconheceram a Jesus quando partiu o pão. 


As palavras da Bíblia não são apenas lidas e ouvidas durante uma Missa, elas são revividas de uma maneira que seu significado se torna real e presente. Seja lá o que aconteceu naquele tempo, está também acontecendo neste momento, como os liturgistas adoram falar. Não somos apenas ouvintes, recipientes passivos, mas somos também aqueles que falam as palavras, que também vivem o momento. Nós somos colocados no lugar do povo da história. 


Alguns exemplos podem nos ajudar a entender esta idéia: Quando a primeira leitura na Missa é a história de como Deus falou com Moisés na sarça ardente (Ex 3), compreendemos que somos realmente nós que estamos em frente à sarça ardente. Quando lemos sobre os lábios de Isaías sendo tocados por uma brasa viva (Is 6), lembramos que nossos lábios receberam em breve o pão vivo, Cristo, aquele que lançou fogo sobre a Terra. (Lc 12, 49). Quando lemos como foi dito à Ezequiel  para comer os rolos da Lei e se alimentar deles (Ez 2,8-3,3), é como uma luz nos iluminando, somos nós que temos que nos alimentar da Palavra que se fez carne, Jesus. 


Passando ao Novo Testamento, da primeira leitura para o Evangelho, a idéia torna-se ainda mais clara. Se a mulher que sofria de hemorragia estava certa que poderia ser curada se pudesse tocar pelo menos a ponta do manto de Jesus, o que mais pode acontecer conosco que logo receberemos a Jesus, algo muito mais que apenas tocar seu manto?


Lembro certa vez que ouvi a história de Zaqueu e, de repente, ela se tornou real para mim, eu era Zaqueu, era para mim que Jesus estava dizendo: “Hoje irei à tua casa”! E quando recebi a comunhão, eu pude dizer com toda fé, “Ele veio para ficar na casa de um pecador”, e Jesus me respondeu “Hoje a Salvação entrou nesta casa” (Lc 19, 5-9).


O mesmo também é verdadeiro toda vez que o Evangelho é proclamado na Missa. Como podemos não nos identificar com o paralítico para quem Jesus diz “Teus pecados foram perdoados”, “Levantai … e vá para casa” (Mc 2,5.11). Ou com Simeão ao segurar Jesus bebê em seus braços (Lc 2,27-28)? Ou com Tomé que, tremendo, toca nas feridas de Jesus (Jo 20, 27-28)? 


No segundo Domingo do Tempo Comum, neste ano litúrgico, lemos um Evangelho em que Jesus diz a um homem com a mão paralisada: “ ‘Estende tua mão!’. Ele estendeu-a e a mão foi curada” (Mc 3,5). Nós não temos uma mão paralisada, mas todos nós temos,de certa maneira, uma alma paralisada, corações quebrados. Não achas que é para quem está ouvindo o que Jesus diz neste momento: “Estende tua mão, abre teu coração, com a fé e prontidão daquele homem”


Quando proclamada durante a liturgia, a Escritura age de uma maneira que está acima e além de qualquer explicação humana e é assim que os sacramentos agem. Estes são textos divinamente inspirados que possuem um poder de cura. Após ler o Evangelho, a Igreja convida o ministro a beijar o livro e dizer “Per evangelica dicta deleantur nostra delicta” - “Através das palavras do Evangelho sejam nossos pecados perdoados”.


Ao longo da história da Igreja, alguns eventos importantes ocorreram como resultado direto da audição das leituras da Missa. Por exemplo, certo dia um jovem ouviu o Evangelho em que Jesus diz a um jovem rico “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Então vem e segue-me” (Mt 19, 21).  Aquele jovem percebeu que a palavra estava sendo dita diretamente para ele, foi para casa e vendeu tudo o que tinha, dali se dirigiu ao deserto para permanecer em oração. O nome daquele jovem era Antão, e foi assim que o movimento monástico iniciou-se na Igreja. 


Muitos séculos depois, em Assis, um jovem recém convertido foi à Igreja com seu amigo. O Evangelho daquele dia era Jesus dizendo a seus discípulos: “Não leveis coisa alguma para o caminho, nem bordão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas” (Lc 9,3). Imediatamente ele virou-se para seu amigo e disse: “Ouviste isto? É isto que o Senhor quer de nós.” e assim iniciou-se o movimento franciscano. 


A Liturgia da Palavra é um dos melhores recursos para fazer a Missa algo novo e envolvente, evitando o perigo de uma repetição monótona que, em especial os jovens, acham algo chato e repetitivo. Mas para que isto ocorra, é importante investir mais tempo e oração na preparação da homilia. Os fiéis devem ser capazes de ver como a palavra de Deus está dirigida a eles, ilumina suas situações de vida e provê respostas para suas demandas existenciais.


Há duas maneiras de preparar a homilia. Você pode se sentar e, confiando no seu próprio conhecimento e preferências pessoais, escolher os temas a serem abordados. E, quando sua fala estiver preparada, ajoelhar-se diante do Senhor e pedir que Ele dê poder às suas palavras, que acrescente o Espírito à mensagem. Este é um bom método, mas não é profético. Para ser profético, deve-se fazer o contrário: primeiro ajoelhar-se perante o Senhor e perguntar o que Ele quer que seja dito. Deus tem em seu coração uma palavra especial para cada ocasião, e Ele nunca falha em revelar sua palavra ao padre que for insistente e humilde. Inicialmente não há nada além de uma mudança imperceptível de coração: uma pequena luz que ilumina o pensamento, uma palavra da Bíblia que lhe chama a atenção, que ajuda em uma situação. Pode parecer uma pequena semente, mas já contém tudo que é necessário.
Depois de rezar, você senta-se numa mesa, abre seus livros, consulta sua notas, organiza os pensamentos, estuda os padres da Igreja, os teólogos, os poetas, mas já não é mais a Palavra de Deus a serviço das tuas idéias, mas teus conhecimentos a serviço da palavra de Deus. Então a Palavra de Deus alcança todo seu poder.

Através de Espírito Santo

Mas uma coisa ainda deve ser acrescentada: toda atenção dada à Palavra de Deus não é suficiente. “O poder vem de Deus, deve descender sobre a celebração. Na Eucaristia a ação do Espírito Santo não é limitada ao momento da consagração, na oração que o padre recita. A presença de Deus é indispensável também na liturgia da palavra, assim como na comunhão.


O Espírito Santo continua, na Igreja, a ação do Ressuscitado que após a Páscoa “abriu a mente dos discípulos para o entendimento das Escrituras” (cf. Lc 24,25). A Bíblia, de acordo com a Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II, deve ser lida e interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que a inspirou” (DV, 12). A ação do Espírito Santo na liturgia da palavra é exercida através do espírito presente nos leitores e ouvintes. 


O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a Boa-Nova aos pobres. (Lc 4,18)


Assim o Senhor indicou de onde vêm a força da sua palavra. Seria um erro acreditar que somente a unção sacramental recebida na ordenação é suficiente. Isto permite a nós [padres] realizar certos atos sagrados, governar, pregar e administrar os sacramentos. A unção nos dá, por assim dizer, não necessariamente a autoridade para realizá-los, mas a autorização através da sucessão apostólica, mas isto não o mesmo sucesso apostólico!


Mas se a onça é dada pela presença do Espírito e é um dos seus dons, o que podemos fazer para sermos como os discípulos? Em primeiro lugar, devemos começar com uma certeza: “Vós, porém, tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas” (1Jo 2,20). Isto é, graças ao Batismo e Crisma, e, para alguns, a ordenação sacerdotal e episcopal, nós já recebemos a unção. De acordo com a doutrina católica, foi impresso em nossa alma uma qualidade permanente, como uma marca ou selo: “Ora, quem nos confirma a nós e a vós em Cristo, e nos consagrou, é Deus. Ele nos marcou com o seu selo e deu aos nossos corações o penhor do Espírito.” (2Cor 1,21,22).


Esta unção é como um perfume fechado, ele se mantém inerte e não podemos percebê-lo até que abre o frasco. Isto é o que ocorreu com o jarro de alabastro que a mulher do Evangelho utilizou (Mc 14,3). Esta é a parte da unção que nos toca. Não depende de nós criar o perfume, mas depende de nós remover os obstáculos que impedem sua propagação. Não é difícil entender o que significa para nós quebrar o vaso de alabastro. O vaso é nossa humanidade, nós mesmos, muitas vezes nosso árido intelectualismo. Abrir o frasco de perfume é não resistir a Deus, mas resistir ao mundo. 


Afortunadamente para nós, nem tudo depende de um esforço ascético. Neste caso, fé, oração e humildade são importantes. Assim, pede-se aos ungidos que antes de ler ou pregar, que o faça a serviço de Deus. Quando nos prepararmos para ler o Evangelho ou uma leitura, a liturgia pede que purifiquemos nossos corações e nossos lábios para que possamos proclamar o Evangelho dignamente. Porque não dizer algumas vezes, ou ao menos pensar: “Senhor, unge meu espírito e minha mente, para que possa proclamar tua palavra com a suavidade e poder do Espírito”


A unção não é necessária apenas para os proclamadores ler efetivamente a palavra, mas também é necessário para os ouvintes recebê-la. O evangelista João escreve para sua comunidade: “Vós, porém, tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. ... a sua unção vos ensina todas as coisas, assim é ela verdadeira e não mentira. Permanecei nele, como ela vos ensinou” (1 Jo 2,20-27).


Não que uma preparação humana seja inútil, mas ela não é suficiente. É o espírito que realmente instrui, isto é, Cristo e a inspiração do Espírito que instruem. Quando esta inspiração não ocorre, as palavras podem ser apenas barulho inútil. Tenhamos esperança que hoje o Senhor nos instruiu, nos deu essa inspiração interior, e não sejamos apenas barulho inútil.


-- Padre Raniero Cantalamessa, Primeira Homília de Quaresma, 11 de Março de 2022

* esta é a segunda parte de uma série de catequeses dadas pelo Padre Raniero na Quaresma de 2022.  Nos próximos dias publicarei a sequência.

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