21 de nov. de 2017

Eis que vem a ti teu rei, justo e salvador

Digamos também nós a Cristo: Bendito o que vem em nome do Senhor (Mt 21,9), rei de Israel (Mt 27,42). Levantemos para ele, quais folhas de palmeira, as derradeiras palavras na cruz. Vamos com entusiasmo para a frente, não com ramos de oliveira, mas com as honras das esmolas de uns aos outros. Estendamos a seus pés, como vestes, os desejos do coração. Deste modo, pondo seus passos em nós,esteja dentro de nós, e nós inteiros nele; e se manifeste ele totalmente em nós. Repitamos para Sião a aclamação do Profeta: Tem confiança, filha, não temas. Eis que vem a ti teu rei, manso e montado no jumentinho, filho da que leva o jugo (cf. Zc 9,9).
 
Jesus entra em Jerusálem, de Giotto(século XIV)
Vem aquele que está presente em todo o lugar e ocupa tudo, para realizar em ti a salvação  de tudo. Vem aquele que não veio chamar os justos, mas os pecadores à conversão (Mt 9,13), para fazer voltar os desviados pelo pecado. Não temas, pois. Está Deus no meio de ti, não serás abalada (cf. Dt 7,21).

De mãos erguidas, recebe-o, a ele que gravou nas próprias mãos tuas muralhas. Acolhe-o, a ele que cavou em suas palmas teus fundamentos. Recebe-o, a ele que tomou para si tudo o que é nosso, à exceção do pecado, a fim de mergulhar tudo que é nosso no que é dele. Alegra-te, cidade-mãe, Sião; não temas. Celebra tuas festas (Na 2,1). Glorifica por sua misericórdia quem em ti vem para nós. Mas também tu, rejubila-te com entusiasmo, filha de Jerusalém, canta, dança de alegria. Resplandece, resplandece (assim aclamamos junto com Isaías, o clarim sagrado), porque chegou tua luz e nasceu sobre ti a glória do Senhor (Is 60,1).

Que luz é esta? Só pode ser aquela que ilumina a todo homem que vem ao mundo (cf. Jo 1,9). A luz eterna, luz que não conhece o tempo e revelada no tempo, luz manifestada pela carne e oculta por natureza, luz que envolveu os pastores e se fez para os magos guia do caminho. Luz que desde o princípio estava no mundo, por quem foi feito o mundo e o mundo não a conheceu. Luz que veio ao que era seu, e os seus não a receberam.

Glória do Senhor. Qual glória? Na verdade, a cruz em que Cristo foi glorificado. Ele, esplendor da glória do Pai, como ele próprio, estando próxima a paixão, disse: Agora é glorificado o Filho do homem e Deus é glorificado nele; e o glorificará sem demora (cf. Jo 13,31-32). Chama de glória neste passo sua exaltação na cruz. Porque a cruz de Cristo é glória e, realmente, sua exaltação. Por isto diz: Eu, quando for exaltado, atrairei todos a mim (Jo 12,32).

-- Dos Sermões de Santo André de Creta, bispo (século VIII)

18 de nov. de 2017

Milagres e o processo de canonização

Os primeiros santos da Igreja foram mártires que permaneceram firmes à fé em Jesus Cristo mesmo sob a ameaça de torturas e mortes quando suas comunidades começaram a relembrar anualmente o martírio de seus conhecidos. Daí surgiu a necessidade de organizar calendários litúrgicos e escrever a história de cada santo, pois com o passar dos anos, o número de santos aumentava, e aqueles que haviam testemunhado os acontecimentos pessoalmente, faleciam.

O martírio de Santa Felicidade, testemunhado por cristãos
e não cristãos.
Neste contexto, não havia processo legal para definir a canonização dos santos, apenas era óbvio para os seus conhecidos que a pessoa havia sido martirizada por sua fé e, sem dúvida, havia entrado nos céus após fazer um sacrifício similar do próprio Jesus Cristo. Ou seja, o povo sabia que era uma santo por que havia testemunhado de sua santificação.

Mas nem todo cristão que havia tido uma vida justa morria martirizado. Por exemplo, alguns bispos que haviam sido eleitos por sua comunidade pelo seu exemplo de fé, quando faleciam por doenças, velhice ou algum acidente, também eram considerados santos. Logo, as comunidades passaram também a reconhecer a santidade de viúvas e virgens.

Com o passar dos séculos, o aumento no número de cristãos e o fim das perseguições, tornou-se impossível para os bispos conhecer seu rebanho intimamente a ponto de poder afirmar que haviam tido uma vida santificada. Passou então ser necessário algum tipo de investigação por parte das autoridades locais para melhor se informar dos fatos antes de declarar alguém santo. Como não havia ainda um processo formal, o método poderia variar bastante, mas há poucos registros para entender os detalhes de cada caso.

É certo que na Idade Média iniciou-se a considerar milagres realizados pela intercessão do santo como clara comprovação que a pessoa estava no céus pois somente estando nos céus uma alma poderia pedir diretamente a Deus que auxiliasse na cura ou qualqueroutro problema do fiel que pedia a graça. 

O Papa Alexandre III (1159-1181) centralizou o processo de canonização em Roma para resolver abusos que ocorriam na distante Suécia. O caso em consideração era claro, a igreja local começara a venerar um homem que havia sido morto enquanto estava bêbado, dando como verdadeiros certos relatos de milagres que ocorreram próximos ao túmulo do sujeito. Em uma carta ao Rei da Suécia, o Papa comunicou que novos santos só deveriam ser venerados após autorização de Roma.  

Papa Inocente II
Em 1198, Papa Inocente II definiu claramente os critérios para canonização: "duas coisas são necessárias para que uma pessoa seja considerada santa pela Igreja Militante, trabalhos de piedade durante sua vida e milagres após sua morte". Mais tarde esclareceu que "apenas os méritos acumulados em vida sem milagres ou apenas os milagres sem méritos não são evidência suficiente de santidade... pois um anjo do demônio pode se por um anjo de luz para enganar os homens, enquanto certas pessoas são muitos caridosas apenas para serem apreciadas pelos homens."  Note-se que nada foi dito quanto a quantidade de milagres ou sua natureza, mas os bispos locais passaram a coletar as informações e enviar à Roma para que o Papa desse sua aprovação final. 

Com a expansão do Cristianismo para novas áreas como América, Ásia e sul da África, relatos de martírios voltaram a se tornar comuns. O Papa Urbano VIII (1623-1644) constituiu uma comissão de teólogos com o objetivo de discutir se bastava o martírio ou a Igreja deveria continuar exigindo milagres dos novos mártires. O caso em questão era o Arcebispo de Polotsk (atual Bielorússia) Josafá Kuntsevych que fora morto por uma multidão de cristãos ortodoxos. O Papa reconhecia o martírio, mas até o momento não havia relatos de milagres.

Após discussões, o painel concluiu que nos casos claros de martírio público, como ocorria com os primeiros cristãos nos tempos da perseguição romana, milagres não eram necessários. Mas se os acontecimentos não fossem tão claros, os milagres seriam a confirmação da santidade e martírio, afinal havia a possibilidade de alguém, nos minutos finais, se arrepender de estar arriscando sua vida, o que invalidaria o martírio. Desta maneira, os milagres funcionavam como uma espécie de "seguro" de que o martírio tinha sido legítimo. Desta resposta percebe-se que o processo de canonização tinha se tornado bem mais legalístico e complexo, com documentos, testemunhas e decisões em cômites, algo bem diferente da espontaneidade dos primeiros cristãos.

No Código Canônico de 1917, a complexidade legal persistiu. A Lei passou a requerer para a beatificação dois, três ou quatro milagres para beatificação, dependendo da confiabilidade e número de testemunhas diretas ou indiretas, e mais dois milagres para a canonização. Portanto, em alguns casos era possível que até seis milagres fossem necessários, embora já havia uma previsão no canon 2116.2 de que o Papa poderia dispensar a obrigatoriedade dos milagres em casos específicos.

A partir dos anos 70, com o Papa Paulo VI, e depois São João Paulo II, tornou-se habitual beatificar com apenas um milagre e canonizar com mais outro. Também ajudou que era muito mais fácil documentar os casos e, com o avanço da ciência, separar milagres legítimos que ocorreram por intervenção divina, de outros acontecimentos explicáveis cientificamente. No entanto, isto criou a necessidade de utilizar cientistas para analisar os casos, envolvendo leigos, não apenas padres e teólogos na decisão. Embora o número de milagres tenha sido reduzido na prática, mesmo para os mártires, pelo menos dois milagres era o número "mágico".

Funeral de São João Paulo II, o povo reconhecendo que
havia sido santo.
No atual Código Canônico, o canon 1403.1 apenas indica que o processo de canonização deve ser guiado através de orientações claras estabelecidas pelo Papa. Em 1983, São João Paulo II publicou a Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister que estabeleceu o processo em uso nos dias atuais, prevendo, formalmente, uma vida exemplar, um milagre para beatificação e um milagre para canonização. O martírio comprovado dispensa a necessidade de milagres, mas o processo ainda é complicado, involve muitas pessoas e pode ser bem custoso.

O caso do próprio Papa João Paulo II representa uma evolução interessante com o povo em seu funeral já pedindo sua canonização pois sua vida tinha sido tão pública quanto possível graças aos meios de comunicação. Formalmente ainda foram documentados dois milagres, mas num ritmo muito mais rápido que o habitual. Santa Teresa de Cálcuta também seguiu o mesmo processo acelerado. Ainda, se assim desejar, o Papa tem poder para dispensar a exigência de milagres e acelerar o processo.

-- autoria própria


11 de nov. de 2017

A morte de São Martinho

São Martinho, ainda soldado, encontra o pobre
que mudaria sua vida.   
Martinho soube com muita antecedência o dia da sua morte e comunicou aos irmãos estar iminente a dissolução de seu corpo. Entretanto, surgiu a necessidade de ir à diocese de Candax, pois os eclesiásticos desta Igreja estavam em discórdia. Desejando restabelecer a paz, embora não ignorasse o fim de seus dias, não recusou partir, julgando que seria um excelente fecho de suas obras deixar a Igreja em paz.

Demorou-se por algum tempo na aldeia e na Igreja aonde fora, e a paz voltou para os clérigos. Quando já pensava em regressar ao mosteiro, começaram de repente a faltar-lhe as forças e, chamando os irmãos, disse-lhes que ia morrer. Diante disto todos se entristeceram grandemente, chorando e dizendo, a uma só voz: “Por que, pai, nos abandonas? A quem nos entregas, desolados? Lobos vorazes invadem teu rebanho; quem, ferido o pastor, nos livrará de seus dentes? Sabemos que desejas a Cristo, mas teus prêmios já estão seguros e não diminuirão com o adiamento! Tem compaixão de nós, a quem desamparas!” 

Comovido com estas lágrimas, ele que sempre possuíra entranhas de misericórdia, também chorou, segundo contam. Voltando-se então para o Senhor, respondeu aos queixosos somente com estas palavras: “Senhor, se ainda sou necessário a teu povo, não recuso o trabalho. Que se faça tua vontade”.

Que homem incomparável! O trabalho não o vence, a morte não o vencerá! Ele, que não se inclinava para nenhum dos lados, não temeria morrer e nem recusaria viver! No entanto, olhos e mãos sempre erguidos para o céu, não abandonava a oração o espírito invicto; e quando os presbíteros, que se haviam reunido junto dele, lhe pediram aliviar o frágil corpo, virando-o para o lado, disse: “Deixai-me, deixai-me, irmãos, olhar para o céu de preferência à terra, para que o espírito já se dirija ao caminho que o levará ao Senhor”. Dito isto, viu o demônio ali perto. “Por que estás aqui, fera nefasta? Nada em mim, ó cruel, encontrarás! O seio de Abraão me acolhe”.

Com estas palavras entregou o espírito ao céu. Martinho, feliz, é recebido no seio de Abraão; Martinho, pobre e humilde, entra rico no céu.

-- Das Cartas de Sulpício Severo, século V

São Martinho era soldado do exército quando num dia de inverno encontrou um pobre que estava passando frio. Martinho cortou metade de sua túnica e deu para o pobre. Naquela noite teve uma visão em que entrava nos céus carregado por anjos e lá encontrava Jesus Cristo que lhe agradeceu por ter sido salvo naquele dia tão frio. Foi então que resolveu mudar de vida e entrar em um convento.

8 de nov. de 2017

O poder da fé ultrapassa as forças humanas

A fé tem um só nome, mas duas maneiras de ser. Há um gênero de fé que se relaciona com os ensinamentos de Cristo, inclui a elevação de uma pessoa e sua concordância sobre determinado assunto; diz respeito ao interesse pessoal, conforme o Senhor: Quem ouve minhas palavras e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não incorre em condenação (Jo 5,24); e de novo: Quem crê no Filho não será julgado, mas passa da morte para a vida (cf. Jo 3,18.24). 

Ó bondade imensa de Deus para com os homens! Com efeito, os justos foram agradáveis a Deus pelo trabalho de muitos anos. Mas aquilo que alcançaram entregando-se corajosamente e por muitos anos ao serviço de Deus, isto mesmo em uma simples hora, Jesus te concede. Porque se creres que Jesus Cristo é Senhor e que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo e levado ao paraíso por aquele que nele introduziu o ladrão. E não hesites em acreditar ser isto possível, pois quem salvou o ladrão neste santo Gólgota, pela fé de uma só hora, pode também salvar-te a ti, se creres. 

O outro gênero é a fé que Cristo concede por graça especial. Pois a uns pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria, a outros a palavra da ciência, segundo o mesmo Espírito. A outros a fé, no mesmo Espírito, a outros o dom de curar (1Cor 12,8-9). 

Este carisma da fé dado pelo Espírito não se relaciona apenas com a palavra; torna ainda capaz de realizar coisas acima das forças humanas. Quem tiver uma fé assim, dirá a este monte: Vai daqui para ali; e irá (Mt 17,20). Quando, pois, pela fé, alguém disser isto, crendo que acontecerá sem hesitar em seu coração, então é sinal de que recebeu esta graça.  

Dela se disse: Se tivésseis fé como um grão de mostarda(Mt 17,20). Como o grão de mostarda, tão pequenino, possui uma força de fogo, e semeado em estreito pedaço de terra produz grandes ramos, que depois de crescidos podem dar sombra às aves do céu, assim também, num abrir e fechar de olhos, a fé realiza as maiores coisas na pessoa. Porque lhe dá uma ideia sobre Deus e o vê tanto quanto é capaz, inundada pela luz da fé. Percorre os confins da terra; e antes da consumação do mundo, já prevê o juízo e a entrega das recompensas prometidas. 

Guarda então a fé que de ti depende e que te leva a ele; para que recebas de suas mãos também aquela que age muito além das forças humanas.

-- Das catequeses de São Cirilo de Jerusalém, bispo (século IV) 

2 de nov. de 2017

Morramos com Cristo, para vivermos com ele

Santo Ambrósio, bispo
Percebemos que a morte é lucro, e a vida, castigo. Por isso Paulo diz: Para mim, viver é Cristo, e morrer é lucro (Fl 1,21). Como unir-se a Cristo, espírito da vida, senão pela morte do corpo? Morramos então com ele, para com ele vivermos. Morramos diariamente no desejo e em ato, para que, por este sacrifício, nossa alma aprenda a se subtrair das concupiscências corporais. Que ela, como se já estivesse nas alturas, onde não a alcançam os desejos terrenos, aceite a imagem da morte para não incorrer no castigo da morte. Pois a lei da carne luta contra a lei do espírito e apoia-se na lei do erro. Mas qual o remédio? Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24) A graça de Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor (cf. Rm 7,25s).

Temos o médico, usemos o remédio. Nosso remédio é a graça de Cristo, e corpo de morte é o nosso corpo. Portanto afastemo-nos do corpo e não se afaste de nós o Cristo! Embora ainda no corpo, não lhe obedeçamos, não abandonemos as leis naturais, mas prefiramos os dons da graça.

E que mais? Pela morte de um só, o mundo foi remido. Cristo, se quisesse, poderia não ter morrido. Não julgou, porém, dever fugir da morte como coisa inútil nem que nos salvaria melhor, evitando a morte. Com efeito, sua morte é a vida de todos. Somos marcados com sua morte, ao orar anunciamos sua morte, ao oferecer o sacrifício pregamos sua morte. Sua morte é vitória, é sacramento, é a solenidade anual do mundo.

Não diremos ainda mais sobre a sua morte, se provarmos pelo exemplo divino que dela resultou a imortalidade, e que a morte se redimiu a si mesma? Não se deve lastimar a morte, que é causa da salvação do povo. Não se deve fugir da morte, que o Filho de Deus não rejeitou, e da qual não fugiu.

Na verdade, a morte não era da natureza, mas converteu-se em natureza. No princípio, Deus não fez a morte, mas deu-a como remédio. Pelo pecado, condenado ao trabalho de cada dia e ao gemido intolerável, a vida dos homens começou a ser miserável. Era preciso dar fim aos males, para que a morte restituísse o que a vida perdera. Pois a imortalidade seria mais penosa que benéfica, se não fosse promovida pela graça [a uma vida nos céus].

Por isso, tem o espírito de afastar-se logo da vida tortuosa e das nódoas do corpo terreno, e lançar-se para a celeste assembléia, embora pertença só aos santos lá chegar, e cantar a Deus o louvor, descrito no livro profético, que os salmistas cantam: Grandes e maravilhosas tuas obras, Senhor Deus onipotente; justos e verdadeiros teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temeria e não glorificaria teu nome? Porque só tu és santo; todos os povos irão e se prostrarão diante de ti (Ap 15,3-4). Contemplar também, ó Jesus, tuas núpcias, nas quais a esposa, ao canto jubiloso de todos, é conduzida da terra ao céu – a ti virá toda carne (Sl 64,3) – já não mais manchada pelo mundo, mas unida ao espírito.

Era isto que o santo Davi desejava, acima de tudo, contemplar e admirar, quando dizia: Uma só coisa pedi ao Senhor, a ela busco: habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida e ver as delícias do Senhor (Sl 26,4).

-- Do Livro sobre a morte de seu irmão Sátiro, de Santo Ambrósio, bispo (Séc.IV)

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