30 de jan. de 2013

Todos os povos se convertam ao Senhor

Queridos irmãos e irmãs,

"Na verdade, vós sois um Deus escondido" (Is 45, 15). Este versículo, que introduz o Cântico proposto para as Laudes de sexta-feira da primeira semana do Saltério, é tirado da meditação de Isaías sobre a grandeza de Deus, manifestada na criação e na história:  um Deus que se revela, embora permaneça escondido na impenetrabilidade do seu mistério. Por definição, Ele é o "Deus absconditus". Nenhum pensamento o pode compreender. O homem só pode contemplar a sua presença no universo, como  que  seguindo  os  seus  passos, prostrado diante dele na oração e no louvor.

O contexto histórico, a partir do qual nasce esta meditação, é o da surpreendente libertação que Deus ofereceu ao seu povo, no tempo do exílio babilónico. Quem é que teria pensado que, um dia, os exilados de Israel podiam voltar para a sua pátria? Olhando para o poder babilónico, eles só podiam desesperar. Todavia, eis o grande anúncio, a surpresa de Deus, que vibra nas palavras do profeta:  como no tempo do Êxodo, Deus há-de intervir. E se então tinha derrotado a resistência do faraó com castigos tremendos, agora escolhe um rei, Ciro da Pérsia, para vencer o poder babilónico e restituir a liberdade a Israel.

"Vós sois um Deus escondido, o Deus de Israel, o Salvador" (Ibidem). Com estas palavras, o profeta convida a reconhecer que Deus age na história, mesmo quando não se manifesta na linha de vanguarda. Dir-se-ia que se encontra "nos bastidores". Ele é o criador misterioso e invisível que respeita a liberdade das suas criaturas mas, ao mesmo tempo, tem nas suas mãos o destino das vicissitudes do mundo. A certeza da acção providencial de Deus é fonte de esperança para o crente, que sabe que pode contar com a presença constante daquele "que formou a terra e a consolidou" (Ibid., v. 18).

Com efeito, o ato criativo não é um episódio que se perde na noite dos tempos, de maneira que o mundo, depois daquele início, se deva considerar como que abandonado em si mesmo. Deus tira constantemente do ser a criação que saiu das suas mãos. Reconhecê-lo é também confessar a sua unicidade:  "Não fui Eu, o Senhor? Não há outro Deus fora de mim" (Ibid., v. 21). Por definição, Deus é o Único. Nada lhe pode ser comparado. Tudo lhe é subordinado. Daqui, também a rejeição da idolatria, em relação à qual o profeta anuncia palavras severas:  "Nada disto compreendem os que trazem o seu ídolo de madeira e dirigem as suas súplicas a um deus incapaz de os salvar" (Ibid., 20). Como é que nos podemos pôr em adoração, diante  de  um  produto  realizado  pelo homem?

À nossa sensibilidade contemporânea, esta polémica poderia parecer excessiva, como se visasse as imagens consideradas em si mesmas, sem compreender que lhes pode ser atribuído um valor simbólico, compatível com a adoração espiritual do único Deus. Sem dúvida, aqui entra em jogo a sábia pedagogia divina que, através de uma rígida disciplina de exclusão das imagens, salvaguardou Israel das contaminações politeístas. Partindo do rosto de Deus, que se manifestou na encarnação de Jesus Cristo, a Igreja reconheceu, durante o segundo Concílio de Niceia (a. 787), a possibilidade de recorrer às imagens sagradas, contanto que estas sejam compreendidas  no  seu  valor  essencial  de relação.

Todavia, subsiste a importância desta admoestação profética em relação a todas as formas de idolatria, com frequência dissimuladas mais do que no uso impróprio das imagens, nas atitudes com que os homens e as coisas são considerados como valores absolutos e substitutos do próprio Deus.

Sob o ponto de vista da criação, o hino leva-nos para o terreno da história, onde Israel pôde experimentar muitas vezes o poder benéfico e misericordioso de Deus, a sua fidelidade e a sua providência. Em particular, na libertação do exílio manifestou-se uma vez mais o amor de Deus pelo seu povo, e isto aconteceu de maneira tão evidente e surpreendente, que o profeta chama os próprios "sobreviventes de entre as nações" a testemunhar. Convida-os a discutir, se podem: "Congregai-vos, vinde, aproximai-vos todos juntos, sobreviventes de entre as nações" (Ibidem). 

A conclusão a que o profeta chega é de que a intervenção do Deus de Israel é inquestionável. Então, manifesta-se uma magnífica perspectiva universalista. Deus proclama:  "Convertei-vos a mim e sereis salvos, confins todos da terra, porque Eu sou Deus e não há outro" (Ibid., v. 22).

Assim, torna-se evidente que a predilecção com que Deus escolheu Israel como seu povo não significa um acto de exclusão mas, pelo contrário, um acto de amor de que toda a humanidade é destinada a beneficiar.
Desta forma delineia-se, já no Antigo Testamento, aquela concepção "sacramental" da história da salvação, que vê na eleição especial dos filhos de Abraão e, em seguida, dos discípulos de Cristo na Igreja, não um privilégio que "fecha" e "exclui", mas o sinal e o instrumento de um amor universal.

O convite à adoração e a oferta da salvação dizem respeito a todos os povos:  "Todo o joelho se dobrará diante de mim, toda a língua jurará por mim" (Ibid., v. 23). Ler estas palavras numa perspectiva cristã significa ter no pensamento a revelação completa do Novo Testamento  que,  em  Cristo,  indica "um Nome que está acima de todo o nome" (Fl 2, 9), de tal maneira que, "ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na Terra e nos Infernos, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai" (Ibid., vv. 10-11).

Através deste Cântico, as nossas Laudes matutinas adquirem proporções universais, dando voz também a quantos ainda não receberam a graça de conhecer Cristo. Trata-se de um louvor que se faz "missionário", levando-nos a percorrer todos os caminhos, anunciando que Deus se manifestou em Jesus como o Salvador do mundo.

-- Papa João Paulo II, na audiência de 31 de Outubro de 2001.

29 de jan. de 2013

Sobre a Interpretação dos Salmos


* Primeira parte de uma carta escrita por Santo Atanásio de Antioquia para um cristão chamado Marcelino. Nela, o santo fala sobre da importância dos salmos como se estivesse contando algo que um ancião sábio lhe havia dito.


Introdução

Querido Marcelino,

Admiro teu fervor cristão: sobrelevas perfeitamente tua atual situação, e, ainda que muito te faça sofrer, não descuidas em absoluto as asceses. Perguntei ao portador de tua carta pelo gênero de vida que levas agora que estás doente e ele me informou que bem dedicas teu tempo à Escritura Santa, tendo, todavia, com maior freqüência o livro dos Salmos entre as mãos, tratando de compreender o sentido que cada um esconde. Te felicito, pois tenho idêntica paixão pelos Salmos, como a tenho pela Escritura inteira.

Encontrando-me numa ocasião (invadido) por semelhantes sentimentos, tive um encontro com um ancião estudioso e quero transcrever-te a conversação que sobre os Salmos, - Saltério em mão! - sustento comigo. O que aquele velho mestre me transmitiu é agradável e, ao mesmo tempo, instrutivo. Eis aqui o que me disse:

Santo Atanásio de Antioquia
Toda a nossa Escritura, filho meu, tanto do Antigo como do Novo (Testamento), é, tal como está escrito, inspirada por Deus e útil para ensinar (2Tim 3,16). Porém, o livro dos Salmos, se feita uma reflexão atenta, possui algo que merece uma especial atenção.

Cada um dos livros, com efeito, nos oferece e nos entrega seu próprio ensinamento: O Pentateuco, por exemplo, relata o começo do mundo e a vida dos Patriarcas, a saída de Israel do Egito, como também a entrega da Lei. O Triteuco relata a distribuição da terra, as façanhas dos Juízes, como também a genealogia de Davi. Os livros dos Reis e das Crônicas relatam os feitos dos reis. Esdras descreve a libertação do cativeiro, o retorno do povo, a reconstrução do templo e da cidade. Os (livros dos) Profetas predizem a vinda do Salvador, recordam os Mandamentos, advertem e exortam aos pecadores, como também profetizam acerca das nações. O livro dos Salmos é como um jardim em cujo solo crescem todas estas plantas e, ademais, melodiosamente cantadas, senão que nos mostra o que lhe é privativo, já que ao cantar (salmos) agrega o seu próprio.

Canta os acontecimentos do Gênesis no salmo 18: "Os céus apregoam a glória de Deus e o firmamento proclama a obra de suas mãos" (Sal 18,1) e, no salmo 23: "A terra e tudo que ela contem é do Senhor; o mundo e tudo que o habita, Ele o fundou sobre os mares" (Sal 23,1-2). Os temas do Êxodo, Números e Deuteronômio os canta formosamente nos salmos 77 e 113: "Quando Israel saiu do Egito, a casa de Jacó, de um povo bárbaro, Judá foi seu santuário e Israel seu domínio" (Sal 113,1-2). Similares temas canta no salmo 104: "Enviou a Moisés seu servo, e a Aarão, seu eleito. Confiou-lhes suas palavras e suas maravilhas na terra de Cam. Enviou a obscuridade e escureceu; mas se rebelaram contra suas palavras. Transformou suas águas em sangue, e deu morte a seus peixes. Sua terra produziu rãs, até nas habitações do rei. Falou e se encheu de moscas e de mosquitos todo seu território" (Sal 104,26-31). É fácil descobrir que todo este salmo, como também o 105, foram escritos em referência a todos estes acontecimentos. As coisas que se referem ao sacerdócio e ao tabernáculo as proclama naquele do salmo 28: "Ao sair do tabernáculo, dizendo: 'Ofereçam ao Senhor, filhos de Deus, ofereçam-lhe glória e honra'" (Sal 28,1).

Os fatos concernentes a Josué e aos Juízes os refere brevemente o salmo 106 com as palavras: "Fundaram cidades para habitar nelas, semearam campos e plantaram vinhas" (Sal 106, 36-37). Pois foi sob Josué que se lhes entregou a terra prometida. Ao repetir reiteradamente no mesmo salmo: "Então gritaram ao Senhor em sua atribulação, e Ele os livrou de todas suas angústias" (Sal 106,6), está indicando o livro dos Juizes. Já que quando eles gritavam os suscitavam juízes a seu devido tempo para livrar a seu povo daqueles que o afligiam. O referente aos reis se canta no salmo 19 ao dizer: "Alguns se vangloriam em carros, outros em cavalos, porém, nós, no nome do Senhor nosso Deus. Eles foram detidos e caíram; porem nós nos levantamos e mantivemo-nos em pé. Senhor, salva ao Rei e escuta-nos quando te invocamos!" (Sal 19,8-10). E o que se refere a Esdras, o canta no salmo 125 (um dos salmos graduais): "Quando o Senhor trocou o cativeiro de Sião, ficamos consolados" (Sal 125,1); e novamente no 121: "Me alegrei quando me disseram: 'Vamos à casa do Senhor'. Nossos pés percorreram teus palácios, Jerusalém; Jerusalém está edificada qual cidade completamente povoada. Pois ali sobem as tribos, as tribos do Senhor, como testemunho para Israel" (Sal 121,1-4).

Praticamente cada salmo remete aos profetas. Sobre a vinda do Salvador e Daquele que devia vir ser Deus, assim se expressa o salmo 49: "O Senhor nosso Deus virá manifestamente, e não se calará" (Sal 49,2-3); e o salmo 117: "Bendito o que vem em nome do Senhor! Nós os temos abençoados desde a casa do Senhor; o Senhor (é) Deus e ele se nos manifestou" (Sal 117,26-27). Ele é o Verbo do Pai, como o canta o 106: "Ele enviou seu Verbo e os curou, os salvou de suas corrupções" (Sal 106,20). O Deus que vem é ele mesmo o Verbo enviado. Sabendo que este Verbo é o Filho de Deus, faz dizer ao Pai no salmo 44: "Meu coração proferiu um Verbo bom" (Sal 44,1), e também no salmo 109: "De meu seio antes da aurora eu te engendrei" (Sal 109,3). Quem pode dizer-se engendrado pelo Pai senão seu Verbo e sua Sabedoria? Sabendo que é a ele ao que o Pai dizia: "Que seja a luz e o firmamento e todas as coisas", o livro dos Salmos também contém palavras similares: "O Verbo do Senhor afiançou os céus e pelo Espírito de sua boca toda sua potência" (Sal 32,6).

O salmista não ignorava que Aquele que devia vir fosse também o Ungido, já que propriamente dele fala (como sujeito principal) o salmo 44: "Teu trono, ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos; é cetro de retitude o cetro de teu Reino. Hás amado a justiça e odiado a iniquidade; por isso Deus, tu Deus, te ungiu com o óleo da alegria em preferência a teus companheiros" (Sal 44,7-8). Para que nada se imagine que ele vem só em aparência, aclara que é este mesmo o que se fará homem e que é por ele por quem tudo foi criado, por ele afirma no salmo 86: "A mãe Sião dirá: um homem, um homem foi engendrado nela, o Altíssimo em pessoa a fundou" (Sal 86,5). O que eqüivale a afirmar: o Verbo era Deus, tudo foi feito por ele, e, o Verbo se fez carne. Conhecendo, igualmente, o nascimento virginal, o Salmista não se calou, senão que o expressou claramente no salmo 44, ao dizer: "Escuta, filha minha, e veja; inclina teu ouvido, esqueça teu povo e a casa de teu pai, porque o rei está cativado de tua beleza" (Sal 44, 11-12). Novamente, isto eqüivale ao dito por Gabriel: "Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!" (Lc 1,28). Depois de haver afirmado que ele é o Ungido, mostra à parte seu nascimento humano da Virgem, ao dizer: "Escuta, filha minha". Gabriel a chama por seu nome, Maria, porque é um estranho - enquanto ao parentesco se refere - porém, Davi, o salmista, já que ela é de sua família, a chama, com toda razão, 'sua filha'.

Havendo afirmado que se faria homem, os Salmos mostram logicamente que ele é passível segundo a carne. O salmo 2 prevê a conspiração dos judeus: "Por que se rebelaram os pagãos? Por que conceberam projetos vãos? Os reis da terra se prepararam, os chefes conspiraram contra o Senhor e contra seu Ungido" (Sal 2, 1-2). No salmo 21, o Salvador mesmo dá a conhecer seu gênero de morte: "...me aprisionas no pó da morte, me rodeia um bando de mastins; a assembléia dos perversos me circunda. Furaram minhas mãos e meus pés. Contaram todos os meus ossos. Eles me vigiaram, dividiram minha roupa e jogaram a sorte sobre a minha túnica" (Sal 21,17-19). Furar suas mãos e seus pés, que outra coisa é senão indicar sua crucifixão? Depois de ensinar tudo isto, acrescente que o Senhor padeceu por nossa causa, e não pela sua. E, com seus próprios lábios, afirma novamente no salmo 87: "Pesadamente repousa sobre mim a tua ira" (Sal 87,17), e no salmo 68: "Eis de volta o que não havia arrebatado" (Sal 68,5). Pois se bem não devia pagar as contas de crime algum, ele morreu - porém sofrendo por nossa causa, tomando sobre si a cólera que nos estava destinada, por nossos pecados, como o disse em Isaías, Ele carregou nossas fraquezas; o que se faz evidente quando afirmamos no salmo 137: "O Senhor os recompensa por minha causa", e o Espírito disse no salmo 71 que: "ele salva aos filhos do pobre e quebra aos que acusam em falso... pois ele resgata o pobre do opressor e redime o indigente que não tem protetor" (Sal 71, 4.12).

Por isso predisse também sua ascensão aos céus, dizendo no salmo 23: "Príncipes, levantem seus portões e abram suas portas eternas para entrar o rei da glória" (Sal 23,7.9). E no 46: "Deus ascende entre aclamações, o Senhor ao som de trombeta(s)" (Sal 46,6). Também seu sentar-se (à direita de Deus) o anuncia no salmo 109: "Disse o Senhor a meu Senhor, senta-te a minha direita até que ponha teus inimigos como estrado para teus pés" (Sal 109,1). Até a destruição do diabo se anuncia a vocês no salmo 9: "Te sentas em teu trono qual juiz que julga justamente. Repreendeste aos povos e pereceu o ímpio" (Sal 9,5-6). Tampouco calou que receberia pleno poder para julgar, de parte do Pai, e que viria com autoridade sobre tudo, ao afirmar no 71: "Ó Deus, concede teu juízo ao rei, e tua justiça ao filho do rei, para que julgue a teu povo com justiça, e a teus pobres com retidão" (Sal 71,1-2). E no salmo 49 disse: "Convoca ao céu, no alto, e a terra, para julgar a seu povo...E os céus proclamaram sua justiça, pois Deus é juiz" (Sal 49,4.6). E no 81 lemos: "Deus está em pé na assembléia dos deuses, e rodeado de deuses, (os) julga" (Sal 81,1). Sobre a vocação dos pagãos muito se fala em nosso livro, porém, sobretudo no salmo 46: "Povos todos, aplaudam, aclamem a Deus com vozes jubilosas" (Sal 46,2). De maneira similar no 71: "Diante de si se prostram os etíopes e seus inimigos lamberam ó pó; os reis de Tarsis, e as ilhas, oferecem seus dons. Os reis da Arábia e de Sabá lhe ofereceram regalos. E o adoraram todos os reis da terra; todos os povos lhe serviram" (Sal 71,9-11). Tudo isto o cantam os Salmos e se anuncia em cada um dos outros Livros.

Não sendo um ignorante, o ancião agregava: em cada livro da Escritura se significam realidades idênticas, sobretudo em relação com o Salvador, pois todos estão intimamente relacionados, sinfonicamente concordes no Espírito. Por isso, do mesmo modo que é possível descobrir no Saltério o conteúdo dos outros Livros, também se encontra com freqüência o conteúdo do primeiro nos restantes. Assim, por exemplo, Moisés compôs um hino, e Isaías canta e Habacuc suplica com um cântico. Mais ainda, em todos os livros é possível encontrar profecias, leis e relatos. O mesmo Espírito o abarca todo, e de acordo ao dom destinado a cada qual, proclama a graça peculiar, repartindo-a em plenitude, seja como capacidade de profetizar, ou de legislar, ou de relatar o sucedido, ou o dom dos Salmos. Se bem que o Espírito é uno e indivisível, dele provêm todos os dons particulares e em cada dom está totalmente presente, ainda que cada um o percebe segundo as revelações e dons recebidos e na medida e forma das necessidades, de modo que na medida em que cada um se deixa guiar pelo Espírito se faz servidor do Verbo. É por isso, como o disse anteriormente, que quando Moisés está legislando, algumas vezes também profetiza e outras vezes canta; e os Profetas ao profetizar, algumas vezes proclamam mandatos, como aquele: "Purifiquem-se. Limpa teu coração de toda imundície, ó Jerusalém" (Is 1,16; Jr 4,14); e outras vezes relatam historias como o faz Daniel com os acontecimentos concernentes a Susana, ou Isaías quando relata o de Rabsaces e Senaquerib. O risco característico do livro dos Salmos, como já dissemos, é o do canto, e por ele modula melodiosamente o que em outros livros se narra com detalhe. Porém, algumas vezes até legisla: "Abandona a ira e deixa a cólera" (Sal 36,8); e "Afasta-te do mal, opera o bem; deseja a paz e corre atrás dela" (Sal 33,15). E outras vezes relata o caminho de Israel e profetiza acerca do Salvador, como o dissemos anteriormente.

A graça do Espírito é comum (a todos os livros), estando a mesma de acordo à tarefa encomendada e segundo o Espírito a concede. Os mais e os menos não provocam distinção alguma sempre que cada qual efetue e leve a cabo sua própria missão. Porém, em sendo assim, o livro dos Salmos tem, neste mesmo terreno, um dom e graça peculiares, uma propriedade de particular relevo. Pois junto às qualidades, que lhe são comuns e similares com os Livros restantes, tem ademais uma maravilhosa peculiaridade: contém exatamente descritos e representados todos os movimentos da alma, suas trocas e mudanças, de modo que uma pessoa sem experiência, ao estudá-los e ponderando-os, pode ir-se modelando à sua imagem. Pois os outros livros somente expõem a lei e estipula o que se deva, ou não, cumprir. Escutando as profecias, somente se sabe da vinda do Salvador. Prestando atenção às descrições históricas, somente se chega a averiguar os fatos dos reis e dos santos. O livro dos Salmos, ademais de ditos ensinamentos, permite reconhecer ao leitor as emoções de sua própria alma e se as ensina, pelo modo como algo o afeta ou o perturba; de acordo com este livro pode ter uma idéia aproximada do que deve dizer. Por isso, não se contenta com escutar simplesmente, senão que sabe como falar e como atuar para curar seu mal. É certo que também os outros livros tem palavras que proíbem o mal, porém, este também descreve como afastar-se dele. Por exemplo: fazer penitência é um preceito; fazer penitência significa deixar de pecar; aqui se indica não só como fazer penitência e o que é necessário dizer para arrepender-se. Assim mesmo Paulo disse: "A atribulação produz na alma a constância; a constância, a virtude provada; a virtude provada, a esperança; e a esperança não fica despojada" (Rom. 5,3-5). Os Salmos descrevem e mostram, ademais, como suportar as atribulações, o que deve fazer o afligido, o que deve dizer uma vez passada a atribulação, como cada um é posto à prova, quais são os pensamentos do que espera no Senhor... O de dar graças em toda circunstância é também um preceito. Os Salmos indicam o que deve dizer aquele que dá graças. Sabendo, por outro lado, que os que pretendem viver piedosamente serão perseguidos, aprendemos dos Salmos como clamar quando fugimos em meio a perseguição, e que palavras dirigir a Deus uma vez escapando dela. Somos convidados a bendizer ao Senhor, encontramos as expressões adequadas para manifestar-lhe nossa confissão. Os Salmos expressam como devemos elogiar ao Senhor, que palavras lhe rendem homenagem de modo adequado. Para toda ocasião e sobre todo argumento, encontraremos então poemas divinos adequados às nossas emoções e sensibilidade.

-- Santo Atanásio de Alexandria, bispo (século IV)

26 de jan. de 2013

Terceiro Domingo do Tempo Comum - Ano C


Neste domingo a primeira leitura conta como o povo de Israel que retornava do exílio da Babilônia e estava reconstruindo o Templo de Jerusalem também reaprendia os ensinamentos de Deus ouvindo a Palavra de Deus com explicações dos sacerdotes e escribas. E o povo estava entre exultante, bendizendo a Deus, e temeroso por achar impossível cumprir os mandamentos, ao que o Profeta responde: "Não fiqueis tristes nem choreis!" (Ne 8,9). 

O Salmo é uma resposta perfeita, pois o povo canta "Vossas Palavras, Senhor, são espírito e vida" (Sl 18). Como bem disse o Papa João Paulo II na sua Homília no Monte das Bem-Aventuranças, os mandamentos são os conselhos de Deus para nos dar uma vida mais feliz e perfeita, aqui e ns céus, não devem, portanto, ser temidos. 

Na segunda leitura São Paulo compara a Igreja, Corpo Místico de Deus, a um corpo onde cada um desempenha uma função dentro da unidade. Assim temos o Papa, Bispos, padres, diáconos e leigos, ministros diversos, funções variadas, devendo todos deixar-se conduzir por Deus Pai nas suas atividades.

O Evangelho é um anúncio da missão de Cristo: anunciar a Boa Nova, realizar milagres, trazer a salvação ao mundo e proclamar um ano de graças especiais, um ano como estamos vivendo hoje, uma ano da fé. Por especial inspiração de Deus, os evangelistas escreveram alguns dos exemplos e ensinamentos de Cristo, que transmitidos através dos séculos, são atualizados pela Igreja em nosso favor.

25 de jan. de 2013

Combati o bom combate

São Paulo na prisão, pintura de Rembrandt (1627)

Na estreiteza do cárcere, Paulo parecia habitar no céu. Recebia os açoites e feridas com mais alegria do que outros que recebem coroas de triunfo; e não apreciava menos as dores do que os prêmios, porque considerava estas mesmas dores como prêmios que desejava, e até as chamava de graças. Considerai com atenção o significado disto: prêmio, para ele, era partir, para estar com Cristo (cf. Fl 1,23), ao passo que viver na carne significava o combate. Mas, por causa de Cristo, sobrepunha ao desejo do prêmio a vontade de prosseguir o combate, pois considerava ser isto mais necessário.

Estar longe de Cristo representava para ele o combate e o sofrimento, mais ainda, o máximo combate e a mais intensa dor. Pelo contrário, estar com Cristo era um prêmio único. Paulo, porém, por amor de Cristo, prefere o combate ao prêmio.

Talvez algum de vós afirme: Mas ele sempre dizia que tudo lhe era suave por amor de Cristo! Isso também eu afirmo, pois as coisas que são para nós causa de tristeza eram para ele enorme prazer. E por que me refiro aos perigos e tribulações que sofreu? Na verdade, seu profundo desgosto o levava a dizer: Quem é fraco, que eu também não seja fraco com ele? Quem é escandalizado, que eu não fique ardendo de indignação? (2Cor 11,29).

Rogo-vos, pois, que não vos limiteis a admirar este tão ilustre exemplo de virtude, mas, imitai-o. Só assim poderemos ser participantes da sua glória.

E se algum de vós se admira por eu dizer que quem imita os méritos de Paulo participará da sua recompensa, ouça o que ele mesmo afirma: Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé. Agora está reservada para mim a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos que esperam com amor a sua manifestação gloriosa (2Tm 4,7-8).

Cela onde São Paulo e São Pedro foram aprisionados, localizada
em Roma, próximo ao Forum. Na época romana era basicamente
um buraco no chão com guardas no nível da rua. Rembrandt é
ótimo mas não é realista.
Por conseguinte, já que é oferecida a todos a mesma coroa de glória, esforcemo-nos todos por ser dignos dos bens prometidos.

Não devemos considerar em Paulo apenas a grandeza e a excelência das virtudes, a prontidão de espírito e o propósito firme, pelos quais mereceu tão grande graça; mas pensemos também que a sua natureza era em tudo igual à nossa; e assim, também a nós, as coisas que são muito difíceis parecerão fáceis e leves. Suportando-as valorosamente neste breve espaço de tempo em que vivemos, ganharemos aquela coroa incorruptível e imortal, pela graça e misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo. A ele a glória e o poder, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.

-- Das Homilias de São João Crisóstomo, bispo (século IV)

23 de jan. de 2013

Salmo 50: Senhor, tende piedade de mim

Caríssimos Irmãos e Irmãs: 

Escutamos o Miserere, uma das orações mais célebres do Saltério, o Salmo penitencial mais intenso e repetido, o cântico do pecado e do perdão, a meditação mais profunda sobre a culpa e a graça. A Liturgia das Horas faz-nos repeti-lo nas Laudes de cada sexta-feira. Desde há muitos séculos numerosos corações de fiéis judeus e cristãos elevam aos céus como que um suspiro de arrependimento e de esperança dirigido a Deus misericordioso.
A tradição judaica colocou o Salmo nos lábios de Davi, convidado pelas palavras severas do profeta Natan a fazer penitência (cf. vv. 1-2; 2 Sam 11, 12), o qual lhe reprovava o adultério cometido com Betsabé e o homicídio de seu marido, Urias. Mas o Salmo enriquece-se nos séculos seguintes, com a oração de muitos outros pregadores, que retomam os temas do "coração novo" e do "Espírito" de Deus infundido no homem redimido, segundo o ensinamento dos profetas Jeremias e Ezequiel (cf. v. 12; Jr 31, 31-34; Ez 11, 19; 36, 24-28).

São dois os horizontes que o Salmo 50 delineia. Em primeiro lugar, está a região tenebrosa do pecado (cf. vv. 3-11), na qual se encontra o homem desde o início da sua existência:  "Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-me no pecado" (v. 7). Mesmo se esta declaração não pode ser assumida como uma formulação explícita da doutrina do pecado original como foi delineada pela teologia cristã, não há dúvida de que ela lhe corresponde:  de fato, exprime a dimensão profunda da inata debilidade moral do homem. O Salmo, nesta primeira fase, apresenta-se como uma análise do pecado, feita diante de Deus. São três as palavras hebraicas usadas para definir esta triste realidade, que provém da liberdade humana mal empregue.

A primeira palavra, hattá, significa literalmente "não atingir o alvo": o pecado é uma aberração que nos afasta de Deus, meta fundamental das nossas relações, e por conseguinte também do próximo.

A segunda palavra hebraica é "awôn, que remete para a imagem de "torcer", "curvar". Por conseguinte, o pecado é um desvio sinuoso do caminho reto; é a inversão, a deturpação, a deformação do bem e do mal, no sentido declarado por Isaías:  "Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas" (Is 5, 20). Precisamente por este motivo, na Bíblia, a conversão é indicada como um "voltar" (em hebraico shûb) ao caminho reto, corrigindo o percurso.

A terceira palavra que o salmista usa para falar do pecado é peshá. Ela exprime a rebelião do súdito em relação ao soberano e, por conseguinte, é um desafio aberto dirigido a Deus e ao seu projeto para a história humana.

Mas se o homem confessa o seu pecado, a justiça salvífica de Deus está pronta para o purificar radicalmente. Desta forma passa-se para a segunda parte espiritual do Salmo, a luminosa da graça (cf. vv. 12-19). De fato, através da confissão das culpas abre-se para quem reza um horizonte de luz no qual Deus atua. O Senhor não age apenas negativamente, eliminando o pecado, mas regenera a humanidade pecadora através do seu Espírito vivificante:  infunde no homem um "coração" novo e puro, ou seja, um conhecimento renovado, e abre-lhe a possibilidade de uma fé límpida e de um culto agradável a Deus.

Orígenes fala a este propósito de uma terapia divina, que o Senhor realiza através da sua palavra e mediante a obra regeneradora de Cristo:  "Assim como Deus predispôs para o corpo o remédio das ervas terapêuticas misturadas com sabedoria, assim também preparou remédios para a alma com as palavras que infundiu, distribuindo-as nas divinas Escrituras... Deus também deu outra atividade médica, cujo arquiatra é o Salvador, o qual diz de si mesmo:  "não são os sadios que precisam do médico, mas os doentes". Ele era o médico por excelência capaz de curar qualquer debilidade, qualquer enfermidade" (Homilias sobre os Salmos, Florença, 1991, pp. 247-249).

A riqueza do Salmo 50 mereceria uma exegese cuidadosa de cada uma das suas partes. É o que faremos quando ele voltar a ressoar nas várias sextas-feiras das Laudes. O olhar de conjunto, que agora dirigimos a esta grande súpplica bíblica, já nos revela algumas componentes fundamentais de uma espiritualidade que deve reflectir-se na existência quotidiana dos fiéis. Em primeiro lugar, há um profundo sentido do pecado, entendido como uma escolha livre, conotada negativamente a nível moral e teologal:  "Contra Vós apenas é que eu pequei,  pratiquei  o  mal  perante  os Vossos olhos" (v. 6). Depois, verifica-se também  no  Salmo  um  profundo  sentido  da  possibilidade  de  conversão:   o pecador, sinceramente arrependido (cf. v. 5), apresenta-se em toda a sua miséria e despojamento a Deus, suplicando-lhe que não o afaste da sua presença (cf. v. 13).

Por fim, no Miserere, vê-se uma radicada convicção do perdão divino que "apaga, lava e purifica" o pecador (cf. vv. 3-4) e chega até a transformá-lo numa criatura nova que tem espírito, língua, lábios e coração transformados (cf. vv. 14-19). "Mesmo se os nossos pecados afirmava santa Faustina Kowalska fossem escuros como a noite, a misericórdia divina é mais forte do que a nossa miséria. É necessária uma só coisa:  que o pecador abra pelo menos um pouco da porta do seu coração... o resto fá-lo-á Deus... Tudo se iniciou com a tua misericórdia e tudo terminará com a tua misericórdia" (M. Winowska, O ícone do Amor misericordioso. A mensagem da Irmã Faustina,Roma, 1981, pág. 271).

-- Papa João Paulo II, na audiência de 24 de Outubro de 2001

22 de jan. de 2013

Preces pela vida


Por todas crianças que ainda habitam o ventre de sua mãe; para que sejam amados e valoridos. Roguemos ao Senhor.

Por todos que trabalham para defender a vida; que Deus os recompense por sua bondade. Roguemos ao Senhor.

Por todos os membros da suprema Corte; que o respeito por nosso inaleanável a vida os guei em todas as suas decisões. Roguemos ao Senhor.

Por todas as mães que hoje estão dando a luz; para que seu amor e cuidado inspirem a todos apreciar mais profundamente a beleza da vida. Roguemos ao Senhor.

Por todos pais; para que guiem seus filhos até Jesus. Roguemos ao Senhor.

Por todos futuros padres, para que a esperança preencha seus corações todos os dias. Roguemos ao Senhor.

Por todas mulheres atormentadas pela lembrança de abortos cometidos; para que Deus delicadamente cure sua dor. Roguemos ao Senhor.

Por todos que o pecado do aborto atinigu; pelas crianças, pais, doutores e seus auxiliares, todos que tenham participado deste pecado; para que sintam arrependimento, misericórdia e paz. Roguemos ao Senhor.

-- Preces para o Dia de Oração pela Vida, liturgia organizada pela United States Conference of Catholic Bishops (Conferência America de Bispos Católicos) - tradução própria.

Dia de Oração pela Vida - 22 de Janeiro

Deixe-o nascer!

Em todas as dioceses dos Estados Unidos, dia 22 de janeiro é um dia especial de oração por todas violações contra a dignidade dos ser humano cometidas por ações abortivas e pela restauração plena das garantias legais ao direito da vida. A missa deve ser celebrada usando o violeta com cor litúrgica; as leituras recomendadas são Is 32,15-18; Tg 3,13-18 e Jo 20,19-23.

Deus quer que vivamos no paraíso. Porém, desde que o aborto está disponível nos Estados Unidos, temos nos convertido em um deserto de virtudes. Assim como o profeta descreve o deserto como uma terra seca e árida, o mesmo ocorre com o país. Mas por meio do mesmo Profeta Isaias, o Senhor nos promete enviar seu Espírito, que ao ser derramado no deserto, fará brotar um jardim maravilhoso. Florescerá com paz e justiça, calma e segurança para todos. Inclusive o bebê no ventre da mãe, o velho frente a morte e o condenado terão esperança. A justiça produzirá a paz e o direito assegurará a tranqüilidade; meu povo habitará em mansão serena, em moradas seguras, em abrigos tranqüilos (Is 32,17-18).

O local onde estavam os apóstolos escondidos após a morte de Jesus também era uma espécie de deserto pois estavam cercados pelo medo das mesmas pessoas que já haviam matado seu Mestre. O ar estava pesado, com o cheiro da morte. É aí que entra o Cristo Ressuscitado, sopra sobre eles, dizendo: A paz esteja convosco". Esta é a paz que o mundo não pode dar, é o mesmo Espírito que leva a vida até o deserto.

Cada vez que enfrentamos a cultura da morte, devemos pedir o dom do Espírito Santo, cujos frutos são a justiça e paz. Justiça para os bebês sobb risco de serem abortados, paz para a vítimas de abusos violentos, justiça para os doutores e colegas que tiram proveito da morte das crianças não-nascidas, paz para as mães que se arrependem dos abortos cometidos. 

Rezamos por este dom do Espírito Santo, por esta paz e justiça. Segundo o apóstolo, também podemos trabalhar para conseguir este dom tendo uma vida virtuosa, buscando a humildade e sabedoria; abandonar os zelos rancorosos e a ambição egoísta, tentando ser "puros, pacíficos, condescendentes, conciliadores, cheios de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, nem fingimentos (cf Tg 3,17). Que assim, com nossa vida, proclaremos o Evangelho da Vida e renovaremos a terra.

Texto da USCCB em apoio ao dia de Oração pela Vida - United States Conference of Catholic Bishops (Conferência America de Bispos Católicos) 


Nota: quem acompanhou o discurso do Presidente Obama percebeu ele reiterou o apoio aos "direitos" da mulher e casamento homossexuais.

16 de jan. de 2013

Salmo 47: Ação de graças pela salvação do povo

Caríssimos Irmãos e Irmãs: 

O Salmo que foi proclamado é um cântico em honra de Sião, "a cidade do grande Soberano" (Sl 47, 3), que nessa época era sede do templo do Senhor e lugar  da  sua  presença  entre  a  humanidade.  A  fé  cristã  já  o  aplica  à  "Jerusalém, lá do alto", que é "nossa mãe" (Gl 4, 26).

A tonalidade litúrgica deste hino, a evocação de uma procissão de festa (cf. vv. 13-14), a visão pacífica de Jerusalém que reflecte a salvação divina, fazem do Salmo 47 uma oração para iniciar o dia e fazer dele um cântico de louvor, mesmo se no horizonte se condensam algumas nuvens.

Para compreender o sentido do Salmo, servem-nos de ajuda três aclamações colocadas no início, no centro e no final, que nos oferecem como que a chave espiritual da composição e nos introduzem no seu clima interior. Eis as três invocações:  "Grande é o Senhor e digno de louvor, na cidade do nosso Deus" (v. 2); "Revivemos, ó Deus, as Vossas graças, no meio do Vosso templo" (v. 10); "Este é o Senhor, o nosso Deus pelos séculos sem fim; Ele é que nos guia" (v. 15).

Estas três aclamações, que exaltam o Senhor mas também "a cidade do nosso Deus" (v. 2), enquadram duas partes grandes do Salmo. A primeira é uma jubilosa celebração da cidade santa, a vitoriosa Sião, contra os assaltos dos inimigos, serena sob o manto da protecção divina (cf. vv. 3-8). Tem-se quase uma litania de definição desta cidade:  é uma altura admirável que se ergue como um farol de luz, uma fonte de alegria para todos os povos da terra, o único verdadeiro "Olimpo" onde o céu e a terra se encontram. É para usar uma expressão do profeta Ezequiel a cidade-Emanuel, porque "Deus está ali" presente nela (cf. 48, 35). Mas em redor de Jerusalém estão a agrupar-se as tropas em cerco, como um símbolo do mal que atenta contra o esplendor da cidade de Deus. O confronto tem um êxito previsto e quase imediato.

De fato, os poderosos da terra, ao assaltar a cidade santa, provocaram também o seu Rei, o Senhor. O Salmista mostra como o orgulho de um exército poderoso se dissolve com a imagem sugestiva das dores de parto:  "foram colhidos pelo terror, um terror como o da mulher em parto" (v. 7). A arrogância transforma-se em fragilidade e fraqueza, o poder em queda e derrota.

O mesmo conceito é expresso com outra imagem:  o exército em marcha é comparado a uma frota naval invencível, sobre a qual cai um furacão causado por um terrível vento do oriente (cf. v. 8). Por conseguinte, permanece uma certeza incontestável para os que estão sob a protecção divina:  a última palavra não é confiada ao mal mas ao bem; Deus triunfa sobre as potências adversas, mesmo quando parecem ser grandiosas e invencíveis.

Então o fiel, celebra precisamente no templo o seu agradecimento ao Deus libertador. O seu é um hino ao amor misericordioso do Senhor, expresso com a palavra hebraica hésed, típica da teologia da aliança. Chegamos assim à segunda parte do Salmo (cf. vv. 10-14). Depois do grande cântico de louvor a Deus fiel, justo e salvador (cf. vv. 10-12), realiza-se uma espécie de procissão à volta do templo e da cidade santa (cf. vv. 13-14). Contam-se as torres, sinal da protecção certa de Deus, observam-se as fortalezas, expressão da estabilidade oferecida a Sião pelo seu Fundador. Os muros de Jerusalém falam e as suas pedras recordam os factos que devem ser transmitidos "às gerações futuras" (v. 14) através da narração que os pais farão aos seus filhos (cf.Sl 77, 7). Sião é o espaço de uma cadeia ininterrupta de acções salvíficas do Senhor, que são anunciadas na catequese e celebradas na liturgia, para que os crentes continuem a ter esperança na intervenção libertadora de Deus.

É maravilhosa na antífona conclusiva uma das mais nobres definições do Senhor como pastor do seu povo:  "Ele é que nos guia" (v. 15). O Deus de Sião é o Deus do Êxodo, da liberdade, da proximidade ao seu povo escravo no Egipto e peregrino no deserto. Agora que Israel se estabeleceu na terra prometida, sabe que o Senhor não o abandona:  Jerusalém é o sinal da sua proximidade, e o templo é o lugar da sua esperança.

Voltando a ler estas expressões, o cristão eleva-se à contemplação de Cristo, o templo de Deus novo e vivo (cf. Jo 2. 21), e dirige-se para a Jerusalém celeste, que já não precisa de um templo e de uma luz exterior, porque "o Senhor, Deus Todo-Poderoso, é o seu Templo, assim como o Cordeiro... porque é iluminada pela glória de Deus e a sua luz é o Cordeiro" (Ap 21, 22-23).

Santo Agostinho convida-nos a fazer de novo esta leitura "espiritual", convencido de que nos livros da Bíblia "não se encontra nada que se refira apenas à cidade terrena, mas tudo o que dela se refere, ou para ela se realiza, simboliza algo que por alegoria se pode também referir à Jerusalém celeste" (Cidade de Deus, XVII, 3, 2). Faz-lhe eco São Paulino de Nola, que precisamente ao comentar as palavras do nosso Salmo, exorta a rezar a fim de que "possamos ser como pedras vivas nas muralhas da Jerusalém celeste e livre" (Carta 28, 2 a Severo). E ao contemplar a robustez e solidez desta cidade, o mesmo Padre da Igreja prossegue:  "De fato, todo aquele que habita nesta cidade revela-se como o Uno em três pessoas... Dela Cristo foi constituído não só fundamento, mas também torre e porta... Funda-se portanto sobre Ele a casa da nossa alma e sobre ele se eleva uma construção digna de uma base assim  tão  grande,  e  a  porta de entrada para a sua cidade será para nós precisamente Aquele que nos orientará nos séculos e nos levará ao lugar das suas pastagens" (ibid.).  

-- Papa João Paulo II, na audiência de 17 de Outubro de 2001

15 de jan. de 2013

Possuímos inata capacidade de amar

O amor de Deus não é matéria de ensino nem de prescrições. Não aprendemos de outrem a alegrar-nos com a luz, ou a desejar a vida, ou a amar os pais ou educadores. Assim – ou melhor, com muito mais razão –, não se encontra o amor de Deus na disciplina exterior. Mas, quando é criado, o ser vivo, isto é, o homem, a força da razão foi, como semente, inserida nele, uma força que contém em si a capacidade e a inclinação de amar. Logo que entra na escola dos divinos preceitos, o homem toma conhecimento desta força, apresando-se em cultivá-la com ardor, nutri-la com sabedoria e levá-la à perfeição, com o auxílio de Deus.

Sendo assim, queremos provar vosso empenho em atingir este objetivo. Pela graça de Deus e contando com as vossas preces, nós nos esforçaremos, segundo a capacidade dada pelo Espírito Santo, por suscitar a centelha do amor divino escondida em vós. 

Antes de mais nada, nós dele recebemos antecipadamente a força e a capacidade de pôr em prática todos os mandamentos que Deus nos deu. Por isso não nos aflijamos como se nos fosse exigido algo de incomum, nem nos tornemos vaidosos pensando que damos mais do que havíamos recebido. Se usarmos bem destas forças, levaremos uma vida virtuosa; no entanto, mal empregadas, cairemos no pecado.

Ora, o pecado se define como o mau uso, o uso contrário à vontade de Deus daquilo que ele nos deu para o bem. Pelo contrário, a virtude, como Deus a quer, é o desenvolvimento destas faculdades que brotam da consciência reta, segundo o preceito do Senhor.

O mesmo diremos da caridade. Ao recebermos o mandamento de amar a Deus, já possuímos capacidade de amar, plantada em nós desde a primeira criação. Não há necessidade de provas externas: cada qual por si e em si mesmo pode descobri-la. De fato, nós desejamos, naturalmente, as coisas boas e belas, embora, à primeira vista, algumas pareçam boas e belas a uns e não a outros. Amamos também, sem ser necessário que nos ensinem nossos parentes e amigos e temos espontaneamente grande amizade por nossos benfeitores.

O que haverá, pergunto então, de mais admirável do que a beleza divina? Que coisa pode haver mais suave e deliciosa do que a meditação da magnificência de Deus? Que desejo será mais veemente e violento do que aquele inserido por Deus na alma liberta de toda impureza e que lhe faz dizer do fundo do coração: Estou ferida de amor? É na verdade totalmente indescritível o fulgor da beleza de Deus.

-- Da Regra mais longa, de São Basílio Magno, bispo (século IV)

13 de jan. de 2013

O Batismo de Cristo

O Batismo de Jesus, por Gustave Doré (1866)

Cristo é iluminado no batismo, recebemos com ele a luz; Cristo é batizado, desçamos com ele às águas para com ele subirmos.

João batiza e Jesus se aproxima; talvez para santificar igualmente aquele que o batiza e, sem dúvida, para sepultar nas águas o velho Adão. Antes de nós, e por nossa causa, ele que é Espírito e carne santificou as águas do Jordão, para assim nos iniciar nos sacramentos mediante o Espírito e a água.

João reluta, Jesus insiste. Eu é que devo ser batizado por ti (cf. Mt 3,14), diz a lâmpada ao Sol, a voz à Palavra, o amigo ao Esposo, diz o maior entre todos os nascidos de mulher ao Primogênito de toda criatura, aquele que estremecera de alegria no seio materno ao que fora adorado no seio de sua Mãe, o que era e seria precursor ao que já tinha vindo e de novo há de vir.  Eu é que devo ser batizado por ti. Podia ainda acrescentar: e por causa de ti. Pois sabia que ia receber o batismo de sangue ou que, como Pedro, não lhe seriam apenas lavados os pés.

Jesus sai das águas, elevando consigo o mundo que estava submerso, e vê abrirem-se os céus de par em par, que Adão tinha fechado para si e sua posteridade, assim como o paraíso lhe fora fechado por uma espada de fogo. 

O Espírito, acorrendo àquele que lhe é igual, dá testemunho da sua divindade. Vem do céu uma voz, pois também vinha do céu aquele de quem se dava testemunho. E ao mostrar-se na forma corporal de uma pomba, o Espírito glorifica o corpo de Cristo, já que este, por sua união com a  divindade, é o corpo de Deus. De modo semelhante, muitos séculos antes, uma pomba anunciara o fim do dilúvio. Veneremos hoje o batismo de Cristo e celebremos dignamente esta festa. 

Permanecei inteiramente puros e purificai-vos sempre mais. Nada agrada tanto a Deus quanto o arrependimento e a salvação do homem, para quem se destinam todas as suas palavras e mistérios. Sede como luzes no mundo, isto é, como uma força vivificante para os outros homens. Permanecendo como luzes perfeitas diante da grande luz, sereis inundados pelo esplendor dessa luz que brilha no céu e iluminados com maior pureza e fulgor pela Trindade. Dela acabastes de receber, embora não em plenitude, o único raio que procede da única Divindade, em Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.

-- Dos Sermões de São Gregório de Nazianzo, bispo (século IV)

Festa do Batismo de Jesus


Hoje a Igreja celebra a Solenidade do Batismo do Nosso Senhor. As Igrejas Ortodoxas chamam esta festa Teofania pois no Jordão aperecem as três pessoas da Santíssima Trindade: Deus fala e o Espírito Santo descende sobre o Filho. 

O batismo de João, que Jesus recebe, baseava-se no arrependimento dos pecados cometidos  aceitação de uma vida mais correta. Por óbvio, Jesus não tinha pecados para se arrepender e não precisava deste Batismo, como deixa claro São João Batista ao dizer que ele deveria ser batizado por Cristo, não o contrário.

Em Israel, um homem atinge a maturidade plena aos 30 anos, quando pode tornar-se Mestre, depois ter crescido em idade e sabedoria, como nos falou o Evangelho da semana anterior. É neste momento que Deus, publicamente, declara Jesus ser seu Filho amado, aquele que vai cumprir as promessas do Antigo Testamento, por quem as nações distantes, não apenas Israel, esperam. A partir deste momento, Jesus abandona uma vida normal, de trabalhador, para tornar-se o Messias esperado. 

Outro sinal importante é o Espírito Santo ter descido sobre as águas do Jordão, marcando justamente o início de uma nova criação, assim como Espírito de Deus pairava sobre as águas na primeira criação (Gn 1, 2). São Máximo de Turim afirma que todas as águas foram santificadas e podem ser utilizadas o Batismo, como faz a Igreja em todo mundo. 

Esta Festa marca o final do Tempo de Natal. Neste tempo, Cristo foi anunciado à Maria, nasceu na noite de Natal, adorado pelo Reis magos, ensinou no Templo já aos 12 anos e, por fim, é batizado, iniciando sua vida pública que culminará na noite de Páscoa.

11 de jan. de 2013

Cântico de Jeremias: Deus liberta e reúne o seu povo na alegria

Queridos irmãos e irmãs, 
Profeta Jeremias, Capela Sistina (Vaticano).

"Nações, ouvi a palavra do Senhor! Levai a notícia às ilhas longínquas" (Jr 31, 10). Qual é a notícia que está para ser anunciada com estas solenes palavras de Jeremias, que ouvimos no cântico que há pouco proclamámos? Trata-se de uma notícia confortadora, e não é ocasional que os capítulos que a contêm (cf. 30-31), sejam qualificados como "Livro da consolação". O anúncio refere-se diretamente ao antigo Israel, mas já deixa de alguma forma entrever a mensagem evangélica.

Eis o centro deste anúncio:  "Porque o Senhor resgatou Jacó e o libertou das mãos do seu dominador" (Jr 31, 11). O quadro histórico destas palavras é constituído por um momento de esperança experimentado pelo povo de Deus, a cerca um século desde quando o Norte do País, em 722, fora ocupado pelo poder assírio. Agora, no tempo do profeta, a reforma religiosa do rei Josias exprime a volta do povo à aliança com Deus a faz surgir a esperança de que o tempo do castigo tenha terminado. Começa a delinear-se a perspectiva de que o Norte possa voltar à liberdade e Israel e Judá se recomponham na unidade. Todos, também as "ilhas mais distantes", deverão ser testemunhas deste acontecimento religioso:  Deus, pastor de Israel, está para intervir. Ele, que permitiu a dispersão do seu povo, agora vem reuni-lo.

O convite à alegria é desenvolvido com imagens que empenham profundamente. É um oráculo que faz sonhar! Delineia um futuro em que os exilados "virão e cantarão", e encontrarão não só o templo do Senhor, mas também todos os bens:  o trigo, o vinho, o azeite, o pequeno rebanho e o gado. A Bíblia não conhece um espiritualismo abstrato. A alegria prometida não se refere apenas ao íntimo do homem, porque o Senhor cuida da vida humana em todas as suas dimensões. O próprio Jesus não deixará de realçar este aspecto, convidando os seus discípulos a terem confiança na Providência também para as necessidades materiais (cf. Mt 6, 25-34). O nosso Cântico insiste sobre esta perspectiva:  Deus quer fazer com que todos os homens sejam felizes. A condição que ele prepara para os seus filhos é expressa pelo símbolo do "jardim bem regado" (Jr 31, 12), imagem de vigor e fecundidade. O luto converte-se em festa, ficamos saciados de delícias (cf. v. 14) e repletos de bens, a ponto que é espontâneo cantar e dançar. Será uma alegria irreprimível, uma alegria do povo.

Os acontecimentos historicos dizem-nos que este sonho não se realizou naquela época. Mas, não certamente por Deus não ter cumprido a sua promessa:  desta desilusão foi responsável mais uma vez o povo, com a sua infidelidade. O mesmo livro de Jeremias encarrega-se de o mostrar com o desenvolvimento de uma profecia que se torna difícil e dura, e leva progressivamente a algumas das fases mais tristes da história de Israel. Não só os exilados do Norte não voltarão, mas a própria Judeia será ocupada por Nabucodonosor em 587 a. C.. Então começarão dias amargos, quando, junto dos rios da Babilónia, se deverão suspender as harpas (cf. Sl 136, 2). Não poderá haver no coração qualquer disposição para cantar para satisfazer os algozes; não se pode rejubilar, se somos arrancados à força da pátria, a terra onde Deus estabeleceu a sua habitação.

Mas, todavia, a alegria que caracteriza este oráculo não perde o seu significado. De fato, permanece firme a motivação última sobre a qual se baseia, e que é expressa sobretudo por alguns versículos significativos, que precedem os que são propostos pela Liturgia das Horas. É necessário tê-los bem presentes, quando se lêem as expressões de alegria do nosso Cântico. Descrevem em termos vibrantes o amor de Deus pelo seu Povo. Indicando um pacto irrevogável: "Amei-te com um amor eterno" (Jr 31, 3). Cantam a alegria paterna de um Deus que chama a Efraim seu primogénito e o cobre de ternura:  "Partiram em lágrimas, conduzi-los-ei em grande consolação, por caminhos direitos em que não tropeçarão; porque sou como um pai para Israel"(Jr 31, 9). Mesmo se a promessa não pôde ser então realizada por falta de empenho da parte dos filhos, o amor do Pai permanece na sua total e comovedora ternura.

Este amor constitui o fio de ouro que relaciona as fases da história de Israel, com as suas alegrias e tristezas, com os seus êxitos e fracassos. Deus não deixa de ser amoroso, e o próprio castigo é a sua expressão, assumindo um significado pedagógico e salvífico.

Na rocha firme deste amor, o convite à alegria do nosso Cântico evoca um futuro de Deus que, mesmo se é adiado, virá mais cedo ou mais tarde, apesar de todas as fraquezas do homem. Este futuro realizou-se na Nova Aliança com a morte e ressurreição de Cristo e com o dom do Espírito. Contudo, ele terá a sua realização plena na volta escatológica do Senhor. À luz destas certezas, o "sonho" de Jeremias permanece uma oportunidade histórica real, condicionada pela fidelidade dos homens, e sobretudo uma meta final, garantida pela fidelidade de Deus e já inaugurada pelo seu amor em Cristo.

Por conseguinte, ao ler este oráculo de Jeremias, devemos deixar ressoar em nós o evangelho, a bonita notícia promulgada por Cristo, na sinagoga de Nazaré (Cf. Lc 4, 16-21). A vida cristã é chamada a ser uma verdadeira "alegria", que só pode ser ameaçada pelos nossos pecados. Ao fazer-nos recitar estas palavras de Jeremias, a Liturgia das Horas convida-nos a apoiar a nossa vida em Cristo, o nosso Redentor (cf. Jr 31, 11) e a procurar nele o segredo da verdadeira alegria na nossa vida pessoal e comunitária.

-- Papa João Paulo II, na audiência de 10 de Outubro de 2001

8 de jan. de 2013

Santo Eulógio de Córdoba


Eulógio era filho de uma família de nobres, proprietária de terras em Córdoba (Espanha) há vários séculos. Supõe-se que tenha nascido antes de 819, pois em 848 ele já era sacerdote e na época era necessário ter no mínimo 30 anos para ser ordenado. 

No século IX os muçulmanos dominavam a Espanha e escolheram Córdoba como capital. Aos cristãos era permitido manter a fé desde que pagassem um imposto especial. Mas como alguns muçulmanos converteram-se à Verdade, a situação mudou: bispos e padres foram presos, incluindo Eulógio. Na prisão, escreveu uma carta a duas muçulmanas convertidas, Flora e Maria, que estavam ameaçadas de morte.

Eles ameaçam vendê-las como escravas e desonrá-las. mas eu lhes asseguro que eles não poderão corromper a pureza das suas almas, quaiquer que sejam as infâmias que lhe inflingirem. Covardemente, para abalarem sua constância, lhes dirão que as igrejas estão silenciosas, desertas e desprovidas do sacríficio por vossa culpa, que permitirão retomar as práticas religiosas se vós negareis a fé. Mas estejam certas que o sacrifício mais agradável a Deus é um coração contrito, que não há como renunciardes a fé que já confessastes. 

Vós falastes contra Maomé, e falastes bem. Se negardes Cristo agora, estareis cometendo um duplo pecado. Mas tal coisa não é possível, pois Cristo já as enredou na sua rede. Não sejais o peixe sem valor que os apóstolos jogaram de volta ao mar, reservem-se para o banquete celestial. Defendam a fé até a morte e deixem para Deus defender a Igreja, a vitória só pode ser obtida na morte.

Flora e Maria enfrentaram a morte corajosamente. Após seu martírio, os muçulmanos mudaram de tática e soltaram os cativos. Mas, em 852, os maus ânimos retornaram e os martírios começaram a suceder-se. Desta época de perseguições, chegou a nós outra carta redigida por Santo Eulógio:

Vós, santos irmãos e irmãs, alegrem-se pois estamos enviando aos céus os frutos da colheita. Os frutos das suas sementes está na bendita cidade de Sião. A Jerusalém Celeste já recebeu jubilosamente os frutos triunfantes desta colheita, pois os mártires partiram em segurança, nada pode obstruir o caminho nesta peregrinação. E quando vós seguirdes a mesma estrada em direção a terra pátria, eles estarão esperando, não apenas os santos, mas a multidão de eleitos, incluindo nossos irmãos que foram os primeiros frutos do martírio.

Em 859, Santo Eulógio foi preso por ter protegido e escondido Leocritia, outra convertida. O juiz do caso ofereceu-lhe perdão se ele abjurasse. Ao contrário, ele começou a proclamar o Evangelho aos juízes, que decidiram condenar-lhe a morte imediata. Levado para fora do tribunal, sua cabeça foi decepada.

-- Do livro Voices of the Saints, de Bert Ghezzi; tradução própria.


5 de jan. de 2013

Festa da Epifania

Natividade, gravura de Rembrandt (1654)

Neste domingo celebramos a Festa da Epifania ou da Manifestação de Deus. Tradicionalmente era celebrada sempre dia 6 de Janeiro, mas também pode ser transferida para um domingo entre 2 e 8 de Janeiro. Neste ano, casualmente, as datas coincidem. 

A Festa da Epifania é, em geral, considerada como algo menor que o Natal e seu significado acaba sendo um tanto quanto perdido, mas, na verdade, as duas festas se complementam. No Natal contemplamos Deus que torna-se homem, na Epifania olhamos do ângulo oposto: este pequeno bebê, nascido a meros 12 dias, é Deus onipotente, Senhor do Universo. É festa da divindade de Cristo, que completa a festa da humanidade de Cristo; é a resposta completa às profecias do Antigo Testamento que prometiam um Rei com grande poder e majestade. 

O nome da festa, Epifania, em grego indica a visita de um Deus à Terra, sendo este o seu principal motivo: Cristo se manifesta como o Filho De Deus. É um dia em que, como fala o Profeta Isaías, ficarás radiante, com o coração vibrando e batendo forte. Por isso os Reis Magos atravessaram fronteiras e arriscaram-se frente ao governador romano, pois o esperado Rei acabara de nascer. É a luz que veio para toda humanidade, a mais brilhante estrela, não apenas para os pastores israelenses que ouviram o anúncio dos anjos, pois todos nós estamos representados pelos Reis Magos.

Há ainda outro grande tema nesta festa - as núpciais reais, o casamento de Cristo com a humanidade. Embora este tema seja mais abordado nas Bodas de Caná, no próximo domingo, a antífona das Laudes deixa isto explícito: Hoje a Igreja se uniu a seu celeste Esposo, porque Cristo lavou no Jordão o pecado; para as núpcias reais correm Magos com presentes; e os convivas se alegrem com a água feita vinho. Aleluia.

4 de jan. de 2013

Seremos saciados com a visão do verbo


Quem poderia conhecer todos os tesouros da sabedoria e ciência ocultos em Cristo e escondidos na pobreza de sua carne? Ele, sendo rico, se fez pobre por nossa causa, a fim de enriquecermos com a sua pobreza (cf. 2Cor 8,9). Quando assumiu a nossa condição e experimentou a morte, manifestou-se na pobreza; contudo, não perdeu suas riquezas, mas prometeu-as para o futuro.

Como é grande a riqueza de sua bondade, reservada para os que o temem, e concedida aos que nele esperam!

Agora nosso conhecimento é imperfeito, até chegar o que é perfeito. Para sermos capazes de alcançá-lo é que o Cristo, igual ao Pai na condição divina, fez-se igual a nós na condição de servo e nos recriou à semelhança divina. O Filho único de Deus, tornando-se filho do homem torna filhos de Deus a muitos filhos dos homens;  e promovendo a nossa condição de servos com a sua forma visível de servo, tornou-nos livre e capazes de contemplar a sua forma divina.

Somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é (IJo 3,2). ora, quais são esses tesouros da sabedoria e de ciência, para que servem essas riquezas divinas senão para manifestar a nossa pobreza? Para que essa imensa bondade senão para nos saciar? Mostra-nos o Pai e isso nos basta (Jo 14,8).

E, em certo salmo, um de nós, expressando nossos sentimentos ou falando por nós, diz ao Senhor: serei saciado quando se manifestar a vossa gloria (cf. Sl 16,15 Vulg.). Ele e o Pai são um só; e quem o vê, vê também o Pai. Por conseguinte, o Rei da glória Senhor Deus do universo (Sl 23,10). Voltando-se para nós, ele nos mostrará o seu rosto; seremos salvos e saciados, e isso nos bastará.

Mas até que isso aconteça, até mostrar o que nos basta, até bebermos e ficarmos saciados na fonte da vida que é ele mesmo, enquanto caminhamos na fé e peregrinamos longe dele, enquanto temos fome e sede de justiça e desejamos, com indizível ardor, contemplar a beleza de Cristo na sua condição divina, celebremos com amorosa devoção o nascimento de Deus na condição de servo.

Se ainda não podemos contemplar aquele que foi gerado pelo Pai antes da aurora, celebremos o seu nascimento da Virgem no meio da noite. Se ainda não podemos compreender aquele cujo nome subsistirá enquanto o sol brilhar (cf. Sl 18,6), reconheçamos que armou sua tenda ao sol (cf. Sl 18,6).

Se ainda não vemos o Unigênito que permanece no Pai, recordemos o Esposo saindo do quarto nupcial (cf. Sl 18,6). Se ainda não estamos preparados para o banquete do nosso Pai, conheçamos o presépio de nosso Senhor Jesus Cristo.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

O mistério sempre novo

São Máximo Confessor, ícone grego.

O Verbo de Deus nasceu segundo a carne uma vez por todas. Mas pela sua bondade e condescendência para com os homens, quer nascer sempre espiritualmente naqueles que o desejam. Quer tornar-se criança, que vai se formando neles com o crescimento das virtudes; e manifesta-se na medida em que pode compreendê-lo quem o recebe. Se não se comunica com o esplendor de sua grandeza, não é porque não deseje, mas porque conhece as limitações das faculdades receptivas de cada um. Assim, o Verbo de Deus revela-se sempre a nós do modo que nos convém, e contudo ninguém pode conhecê-lo perfeitamente, por causa da imensidade de seu mistério.

Por isso, o Apóstolo de Deus, considerando com sabedoria a força deste mistério, diz: Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje e por toda a eternidade (Hb 13,8). Ele contemplava esse mistério sempre novo, que nunca envelhece para a compreensão da inteligência humana. Nasce o Cristo, Deus que se faz homem, assumindo um corpo dotado de uma alma racional, ele por quem tudo que existe saiu do nada. No Oriente brilha uma estrela visível em pleno dia e conduz os magos ao lugar onde está deitado o Verbo feito homem, para demonstrar misticamente que o Verbo, contido na lei e nos profetas, supera o conhecimento sensível e conduz as nações à plena luz do conhecimento. 

Com efeito, a palavra da lei e dos profetas, entendida à luz da fé, é semelhante a uma estrela que conduz ao conhecimento do Verbo encarnado todos os que foram chamados pelo poder da graça, segundo o desígnio de Deus. Deus se fez homem perfeito, sem que nada lhe faltasse do que é próprio da natureza humana, à exceção do pecado (o qual, aliás, não era inerente à natureza humana). Ele queria assim apresentar sua carne como alimento para provocar o dragão insaciável que queria devorá-la.

Mas ao arrebatar esta carne que seria um veneno para ele, o dragão foi destruído pelo poder da Divindade nela oculta. Para a natureza humana, porém, esta carne seria o remédio que lhe restituiria a graça original, pelo mesmo poder da Divindade.

Assim como o inimigo, tendo inoculado o seu veneno na árvore da ciência, havia corrompido a natureza do homem que provara do seu fruto, também ele, ao pretender devorar a carne do Senhor, foi enganado e destruído pela força da Divindade que nele habitava. O grande mistério da encarnação de Deus permanecerá sempre um mistério! Como pode o Verbo que está em pessoa e essencialmente na carne existir ao mesmo tempo em pessoa e essencialmente junto do Pai? Como pode o Verbo, totalmente Deus por natureza, fazer-se totalmente homem por natureza, sem detrimento algum das duas naturezas, nem da divina, na qual é Deus nem da humana, na qual se fez homem? Só a fé pode alcançar estes mistérios, ela que é precisamente a substância e o fundamento das realidades que ultrapassam toda inteligência e compreensão.

-- Das Sentenças de São Máximo, o confessor, abade (século VII)

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