29 de jan. de 2013

Sobre a Interpretação dos Salmos


* Primeira parte de uma carta escrita por Santo Atanásio de Antioquia para um cristão chamado Marcelino. Nela, o santo fala sobre da importância dos salmos como se estivesse contando algo que um ancião sábio lhe havia dito.


Introdução

Querido Marcelino,

Admiro teu fervor cristão: sobrelevas perfeitamente tua atual situação, e, ainda que muito te faça sofrer, não descuidas em absoluto as asceses. Perguntei ao portador de tua carta pelo gênero de vida que levas agora que estás doente e ele me informou que bem dedicas teu tempo à Escritura Santa, tendo, todavia, com maior freqüência o livro dos Salmos entre as mãos, tratando de compreender o sentido que cada um esconde. Te felicito, pois tenho idêntica paixão pelos Salmos, como a tenho pela Escritura inteira.

Encontrando-me numa ocasião (invadido) por semelhantes sentimentos, tive um encontro com um ancião estudioso e quero transcrever-te a conversação que sobre os Salmos, - Saltério em mão! - sustento comigo. O que aquele velho mestre me transmitiu é agradável e, ao mesmo tempo, instrutivo. Eis aqui o que me disse:

Santo Atanásio de Antioquia
Toda a nossa Escritura, filho meu, tanto do Antigo como do Novo (Testamento), é, tal como está escrito, inspirada por Deus e útil para ensinar (2Tim 3,16). Porém, o livro dos Salmos, se feita uma reflexão atenta, possui algo que merece uma especial atenção.

Cada um dos livros, com efeito, nos oferece e nos entrega seu próprio ensinamento: O Pentateuco, por exemplo, relata o começo do mundo e a vida dos Patriarcas, a saída de Israel do Egito, como também a entrega da Lei. O Triteuco relata a distribuição da terra, as façanhas dos Juízes, como também a genealogia de Davi. Os livros dos Reis e das Crônicas relatam os feitos dos reis. Esdras descreve a libertação do cativeiro, o retorno do povo, a reconstrução do templo e da cidade. Os (livros dos) Profetas predizem a vinda do Salvador, recordam os Mandamentos, advertem e exortam aos pecadores, como também profetizam acerca das nações. O livro dos Salmos é como um jardim em cujo solo crescem todas estas plantas e, ademais, melodiosamente cantadas, senão que nos mostra o que lhe é privativo, já que ao cantar (salmos) agrega o seu próprio.

Canta os acontecimentos do Gênesis no salmo 18: "Os céus apregoam a glória de Deus e o firmamento proclama a obra de suas mãos" (Sal 18,1) e, no salmo 23: "A terra e tudo que ela contem é do Senhor; o mundo e tudo que o habita, Ele o fundou sobre os mares" (Sal 23,1-2). Os temas do Êxodo, Números e Deuteronômio os canta formosamente nos salmos 77 e 113: "Quando Israel saiu do Egito, a casa de Jacó, de um povo bárbaro, Judá foi seu santuário e Israel seu domínio" (Sal 113,1-2). Similares temas canta no salmo 104: "Enviou a Moisés seu servo, e a Aarão, seu eleito. Confiou-lhes suas palavras e suas maravilhas na terra de Cam. Enviou a obscuridade e escureceu; mas se rebelaram contra suas palavras. Transformou suas águas em sangue, e deu morte a seus peixes. Sua terra produziu rãs, até nas habitações do rei. Falou e se encheu de moscas e de mosquitos todo seu território" (Sal 104,26-31). É fácil descobrir que todo este salmo, como também o 105, foram escritos em referência a todos estes acontecimentos. As coisas que se referem ao sacerdócio e ao tabernáculo as proclama naquele do salmo 28: "Ao sair do tabernáculo, dizendo: 'Ofereçam ao Senhor, filhos de Deus, ofereçam-lhe glória e honra'" (Sal 28,1).

Os fatos concernentes a Josué e aos Juízes os refere brevemente o salmo 106 com as palavras: "Fundaram cidades para habitar nelas, semearam campos e plantaram vinhas" (Sal 106, 36-37). Pois foi sob Josué que se lhes entregou a terra prometida. Ao repetir reiteradamente no mesmo salmo: "Então gritaram ao Senhor em sua atribulação, e Ele os livrou de todas suas angústias" (Sal 106,6), está indicando o livro dos Juizes. Já que quando eles gritavam os suscitavam juízes a seu devido tempo para livrar a seu povo daqueles que o afligiam. O referente aos reis se canta no salmo 19 ao dizer: "Alguns se vangloriam em carros, outros em cavalos, porém, nós, no nome do Senhor nosso Deus. Eles foram detidos e caíram; porem nós nos levantamos e mantivemo-nos em pé. Senhor, salva ao Rei e escuta-nos quando te invocamos!" (Sal 19,8-10). E o que se refere a Esdras, o canta no salmo 125 (um dos salmos graduais): "Quando o Senhor trocou o cativeiro de Sião, ficamos consolados" (Sal 125,1); e novamente no 121: "Me alegrei quando me disseram: 'Vamos à casa do Senhor'. Nossos pés percorreram teus palácios, Jerusalém; Jerusalém está edificada qual cidade completamente povoada. Pois ali sobem as tribos, as tribos do Senhor, como testemunho para Israel" (Sal 121,1-4).

Praticamente cada salmo remete aos profetas. Sobre a vinda do Salvador e Daquele que devia vir ser Deus, assim se expressa o salmo 49: "O Senhor nosso Deus virá manifestamente, e não se calará" (Sal 49,2-3); e o salmo 117: "Bendito o que vem em nome do Senhor! Nós os temos abençoados desde a casa do Senhor; o Senhor (é) Deus e ele se nos manifestou" (Sal 117,26-27). Ele é o Verbo do Pai, como o canta o 106: "Ele enviou seu Verbo e os curou, os salvou de suas corrupções" (Sal 106,20). O Deus que vem é ele mesmo o Verbo enviado. Sabendo que este Verbo é o Filho de Deus, faz dizer ao Pai no salmo 44: "Meu coração proferiu um Verbo bom" (Sal 44,1), e também no salmo 109: "De meu seio antes da aurora eu te engendrei" (Sal 109,3). Quem pode dizer-se engendrado pelo Pai senão seu Verbo e sua Sabedoria? Sabendo que é a ele ao que o Pai dizia: "Que seja a luz e o firmamento e todas as coisas", o livro dos Salmos também contém palavras similares: "O Verbo do Senhor afiançou os céus e pelo Espírito de sua boca toda sua potência" (Sal 32,6).

O salmista não ignorava que Aquele que devia vir fosse também o Ungido, já que propriamente dele fala (como sujeito principal) o salmo 44: "Teu trono, ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos; é cetro de retitude o cetro de teu Reino. Hás amado a justiça e odiado a iniquidade; por isso Deus, tu Deus, te ungiu com o óleo da alegria em preferência a teus companheiros" (Sal 44,7-8). Para que nada se imagine que ele vem só em aparência, aclara que é este mesmo o que se fará homem e que é por ele por quem tudo foi criado, por ele afirma no salmo 86: "A mãe Sião dirá: um homem, um homem foi engendrado nela, o Altíssimo em pessoa a fundou" (Sal 86,5). O que eqüivale a afirmar: o Verbo era Deus, tudo foi feito por ele, e, o Verbo se fez carne. Conhecendo, igualmente, o nascimento virginal, o Salmista não se calou, senão que o expressou claramente no salmo 44, ao dizer: "Escuta, filha minha, e veja; inclina teu ouvido, esqueça teu povo e a casa de teu pai, porque o rei está cativado de tua beleza" (Sal 44, 11-12). Novamente, isto eqüivale ao dito por Gabriel: "Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!" (Lc 1,28). Depois de haver afirmado que ele é o Ungido, mostra à parte seu nascimento humano da Virgem, ao dizer: "Escuta, filha minha". Gabriel a chama por seu nome, Maria, porque é um estranho - enquanto ao parentesco se refere - porém, Davi, o salmista, já que ela é de sua família, a chama, com toda razão, 'sua filha'.

Havendo afirmado que se faria homem, os Salmos mostram logicamente que ele é passível segundo a carne. O salmo 2 prevê a conspiração dos judeus: "Por que se rebelaram os pagãos? Por que conceberam projetos vãos? Os reis da terra se prepararam, os chefes conspiraram contra o Senhor e contra seu Ungido" (Sal 2, 1-2). No salmo 21, o Salvador mesmo dá a conhecer seu gênero de morte: "...me aprisionas no pó da morte, me rodeia um bando de mastins; a assembléia dos perversos me circunda. Furaram minhas mãos e meus pés. Contaram todos os meus ossos. Eles me vigiaram, dividiram minha roupa e jogaram a sorte sobre a minha túnica" (Sal 21,17-19). Furar suas mãos e seus pés, que outra coisa é senão indicar sua crucifixão? Depois de ensinar tudo isto, acrescente que o Senhor padeceu por nossa causa, e não pela sua. E, com seus próprios lábios, afirma novamente no salmo 87: "Pesadamente repousa sobre mim a tua ira" (Sal 87,17), e no salmo 68: "Eis de volta o que não havia arrebatado" (Sal 68,5). Pois se bem não devia pagar as contas de crime algum, ele morreu - porém sofrendo por nossa causa, tomando sobre si a cólera que nos estava destinada, por nossos pecados, como o disse em Isaías, Ele carregou nossas fraquezas; o que se faz evidente quando afirmamos no salmo 137: "O Senhor os recompensa por minha causa", e o Espírito disse no salmo 71 que: "ele salva aos filhos do pobre e quebra aos que acusam em falso... pois ele resgata o pobre do opressor e redime o indigente que não tem protetor" (Sal 71, 4.12).

Por isso predisse também sua ascensão aos céus, dizendo no salmo 23: "Príncipes, levantem seus portões e abram suas portas eternas para entrar o rei da glória" (Sal 23,7.9). E no 46: "Deus ascende entre aclamações, o Senhor ao som de trombeta(s)" (Sal 46,6). Também seu sentar-se (à direita de Deus) o anuncia no salmo 109: "Disse o Senhor a meu Senhor, senta-te a minha direita até que ponha teus inimigos como estrado para teus pés" (Sal 109,1). Até a destruição do diabo se anuncia a vocês no salmo 9: "Te sentas em teu trono qual juiz que julga justamente. Repreendeste aos povos e pereceu o ímpio" (Sal 9,5-6). Tampouco calou que receberia pleno poder para julgar, de parte do Pai, e que viria com autoridade sobre tudo, ao afirmar no 71: "Ó Deus, concede teu juízo ao rei, e tua justiça ao filho do rei, para que julgue a teu povo com justiça, e a teus pobres com retidão" (Sal 71,1-2). E no salmo 49 disse: "Convoca ao céu, no alto, e a terra, para julgar a seu povo...E os céus proclamaram sua justiça, pois Deus é juiz" (Sal 49,4.6). E no 81 lemos: "Deus está em pé na assembléia dos deuses, e rodeado de deuses, (os) julga" (Sal 81,1). Sobre a vocação dos pagãos muito se fala em nosso livro, porém, sobretudo no salmo 46: "Povos todos, aplaudam, aclamem a Deus com vozes jubilosas" (Sal 46,2). De maneira similar no 71: "Diante de si se prostram os etíopes e seus inimigos lamberam ó pó; os reis de Tarsis, e as ilhas, oferecem seus dons. Os reis da Arábia e de Sabá lhe ofereceram regalos. E o adoraram todos os reis da terra; todos os povos lhe serviram" (Sal 71,9-11). Tudo isto o cantam os Salmos e se anuncia em cada um dos outros Livros.

Não sendo um ignorante, o ancião agregava: em cada livro da Escritura se significam realidades idênticas, sobretudo em relação com o Salvador, pois todos estão intimamente relacionados, sinfonicamente concordes no Espírito. Por isso, do mesmo modo que é possível descobrir no Saltério o conteúdo dos outros Livros, também se encontra com freqüência o conteúdo do primeiro nos restantes. Assim, por exemplo, Moisés compôs um hino, e Isaías canta e Habacuc suplica com um cântico. Mais ainda, em todos os livros é possível encontrar profecias, leis e relatos. O mesmo Espírito o abarca todo, e de acordo ao dom destinado a cada qual, proclama a graça peculiar, repartindo-a em plenitude, seja como capacidade de profetizar, ou de legislar, ou de relatar o sucedido, ou o dom dos Salmos. Se bem que o Espírito é uno e indivisível, dele provêm todos os dons particulares e em cada dom está totalmente presente, ainda que cada um o percebe segundo as revelações e dons recebidos e na medida e forma das necessidades, de modo que na medida em que cada um se deixa guiar pelo Espírito se faz servidor do Verbo. É por isso, como o disse anteriormente, que quando Moisés está legislando, algumas vezes também profetiza e outras vezes canta; e os Profetas ao profetizar, algumas vezes proclamam mandatos, como aquele: "Purifiquem-se. Limpa teu coração de toda imundície, ó Jerusalém" (Is 1,16; Jr 4,14); e outras vezes relatam historias como o faz Daniel com os acontecimentos concernentes a Susana, ou Isaías quando relata o de Rabsaces e Senaquerib. O risco característico do livro dos Salmos, como já dissemos, é o do canto, e por ele modula melodiosamente o que em outros livros se narra com detalhe. Porém, algumas vezes até legisla: "Abandona a ira e deixa a cólera" (Sal 36,8); e "Afasta-te do mal, opera o bem; deseja a paz e corre atrás dela" (Sal 33,15). E outras vezes relata o caminho de Israel e profetiza acerca do Salvador, como o dissemos anteriormente.

A graça do Espírito é comum (a todos os livros), estando a mesma de acordo à tarefa encomendada e segundo o Espírito a concede. Os mais e os menos não provocam distinção alguma sempre que cada qual efetue e leve a cabo sua própria missão. Porém, em sendo assim, o livro dos Salmos tem, neste mesmo terreno, um dom e graça peculiares, uma propriedade de particular relevo. Pois junto às qualidades, que lhe são comuns e similares com os Livros restantes, tem ademais uma maravilhosa peculiaridade: contém exatamente descritos e representados todos os movimentos da alma, suas trocas e mudanças, de modo que uma pessoa sem experiência, ao estudá-los e ponderando-os, pode ir-se modelando à sua imagem. Pois os outros livros somente expõem a lei e estipula o que se deva, ou não, cumprir. Escutando as profecias, somente se sabe da vinda do Salvador. Prestando atenção às descrições históricas, somente se chega a averiguar os fatos dos reis e dos santos. O livro dos Salmos, ademais de ditos ensinamentos, permite reconhecer ao leitor as emoções de sua própria alma e se as ensina, pelo modo como algo o afeta ou o perturba; de acordo com este livro pode ter uma idéia aproximada do que deve dizer. Por isso, não se contenta com escutar simplesmente, senão que sabe como falar e como atuar para curar seu mal. É certo que também os outros livros tem palavras que proíbem o mal, porém, este também descreve como afastar-se dele. Por exemplo: fazer penitência é um preceito; fazer penitência significa deixar de pecar; aqui se indica não só como fazer penitência e o que é necessário dizer para arrepender-se. Assim mesmo Paulo disse: "A atribulação produz na alma a constância; a constância, a virtude provada; a virtude provada, a esperança; e a esperança não fica despojada" (Rom. 5,3-5). Os Salmos descrevem e mostram, ademais, como suportar as atribulações, o que deve fazer o afligido, o que deve dizer uma vez passada a atribulação, como cada um é posto à prova, quais são os pensamentos do que espera no Senhor... O de dar graças em toda circunstância é também um preceito. Os Salmos indicam o que deve dizer aquele que dá graças. Sabendo, por outro lado, que os que pretendem viver piedosamente serão perseguidos, aprendemos dos Salmos como clamar quando fugimos em meio a perseguição, e que palavras dirigir a Deus uma vez escapando dela. Somos convidados a bendizer ao Senhor, encontramos as expressões adequadas para manifestar-lhe nossa confissão. Os Salmos expressam como devemos elogiar ao Senhor, que palavras lhe rendem homenagem de modo adequado. Para toda ocasião e sobre todo argumento, encontraremos então poemas divinos adequados às nossas emoções e sensibilidade.

-- Santo Atanásio de Alexandria, bispo (século IV)

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