Os primeiros santos da Igreja foram mártires que permaneceram firmes à fé em Jesus Cristo mesmo sob a ameaça de torturas e mortes quando suas comunidades começaram a relembrar anualmente o martírio de seus conhecidos. Daí surgiu a necessidade de organizar calendários litúrgicos e escrever a história de cada santo, pois com o passar dos anos, o número de santos aumentava, e aqueles que haviam testemunhado os acontecimentos pessoalmente, faleciam.
O martírio de Santa Felicidade, testemunhado por cristãos e não cristãos. |
Neste contexto, não havia processo legal para definir a canonização dos santos, apenas era óbvio para os seus conhecidos que a pessoa havia sido martirizada por sua fé e, sem dúvida, havia entrado nos céus após fazer um sacrifício similar do próprio Jesus Cristo. Ou seja, o povo sabia que era uma santo por que havia testemunhado de sua santificação.
Mas nem todo cristão que havia tido uma vida justa morria martirizado. Por exemplo, alguns bispos que haviam sido eleitos por sua comunidade pelo seu exemplo de fé, quando faleciam por doenças, velhice ou algum acidente, também eram considerados santos. Logo, as comunidades passaram também a reconhecer a santidade de viúvas e virgens.
Com o passar dos séculos, o aumento no número de cristãos e o fim das perseguições, tornou-se impossível para os bispos conhecer seu rebanho intimamente a ponto de poder afirmar que haviam tido uma vida santificada. Passou então ser necessário algum tipo de investigação por parte das autoridades locais para melhor se informar dos fatos antes de declarar alguém santo. Como não havia ainda um processo formal, o método poderia variar bastante, mas há poucos registros para entender os detalhes de cada caso.
É certo que na Idade Média iniciou-se a considerar milagres realizados pela intercessão do santo como clara comprovação que a pessoa estava no céus pois somente estando nos céus uma alma poderia pedir diretamente a Deus que auxiliasse na cura ou qualqueroutro problema do fiel que pedia a graça.
O Papa Alexandre III (1159-1181) centralizou o processo de canonização em Roma para resolver abusos que ocorriam na distante Suécia. O caso em consideração era claro, a igreja local começara a venerar um homem que havia sido morto enquanto estava bêbado, dando como verdadeiros certos relatos de milagres que ocorreram próximos ao túmulo do sujeito. Em uma carta ao Rei da Suécia, o Papa comunicou que novos santos só deveriam ser venerados após autorização de Roma.
Papa Inocente II |
Em 1198, Papa Inocente II definiu claramente os critérios para canonização: "duas coisas são necessárias para que uma pessoa seja considerada santa pela Igreja Militante, trabalhos de piedade durante sua vida e milagres após sua morte". Mais tarde esclareceu que "apenas os méritos acumulados em vida sem milagres ou apenas os milagres sem méritos não são evidência suficiente de santidade... pois um anjo do demônio pode se por um anjo de luz para enganar os homens, enquanto certas pessoas são muitos caridosas apenas para serem apreciadas pelos homens." Note-se que nada foi dito quanto a quantidade de milagres ou sua natureza, mas os bispos locais passaram a coletar as informações e enviar à Roma para que o Papa desse sua aprovação final.
Com a expansão do Cristianismo para novas áreas como América, Ásia e sul da África, relatos de martírios voltaram a se tornar comuns. O Papa Urbano VIII (1623-1644) constituiu uma comissão de teólogos com o objetivo de discutir se bastava o martírio ou a Igreja deveria continuar exigindo milagres dos novos mártires. O caso em questão era o Arcebispo de Polotsk (atual Bielorússia) Josafá Kuntsevych que fora morto por uma multidão de cristãos ortodoxos. O Papa reconhecia o martírio, mas até o momento não havia relatos de milagres.
Após discussões, o painel concluiu que nos casos claros de martírio público, como ocorria com os primeiros cristãos nos tempos da perseguição romana, milagres não eram necessários. Mas se os acontecimentos não fossem tão claros, os milagres seriam a confirmação da santidade e martírio, afinal havia a possibilidade de alguém, nos minutos finais, se arrepender de estar arriscando sua vida, o que invalidaria o martírio. Desta maneira, os milagres funcionavam como uma espécie de "seguro" de que o martírio tinha sido legítimo. Desta resposta percebe-se que o processo de canonização tinha se tornado bem mais legalístico e complexo, com documentos, testemunhas e decisões em cômites, algo bem diferente da espontaneidade dos primeiros cristãos.
No Código Canônico de 1917, a complexidade legal persistiu. A Lei passou a requerer para a beatificação dois, três ou quatro milagres para beatificação, dependendo da confiabilidade e número de testemunhas diretas ou indiretas, e mais dois milagres para a canonização. Portanto, em alguns casos era possível que até seis milagres fossem necessários, embora já havia uma previsão no canon 2116.2 de que o Papa poderia dispensar a obrigatoriedade dos milagres em casos específicos.
A partir dos anos 70, com o Papa Paulo VI, e depois São João Paulo II, tornou-se habitual beatificar com apenas um milagre e canonizar com mais outro. Também ajudou que era muito mais fácil documentar os casos e, com o avanço da ciência, separar milagres legítimos que ocorreram por intervenção divina, de outros acontecimentos explicáveis cientificamente. No entanto, isto criou a necessidade de utilizar cientistas para analisar os casos, envolvendo leigos, não apenas padres e teólogos na decisão. Embora o número de milagres tenha sido reduzido na prática, mesmo para os mártires, pelo menos dois milagres era o número "mágico".
Funeral de São João Paulo II, o povo reconhecendo que havia sido santo. |
No atual Código Canônico, o canon 1403.1 apenas indica que o processo de canonização deve ser guiado através de orientações claras estabelecidas pelo Papa. Em 1983, São João Paulo II publicou a Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister que estabeleceu o processo em uso nos dias atuais, prevendo, formalmente, uma vida exemplar, um milagre para beatificação e um milagre para canonização. O martírio comprovado dispensa a necessidade de milagres, mas o processo ainda é complicado, involve muitas pessoas e pode ser bem custoso.
O caso do próprio Papa João Paulo II representa uma evolução interessante com o povo em seu funeral já pedindo sua canonização pois sua vida tinha sido tão pública quanto possível graças aos meios de comunicação. Formalmente ainda foram documentados dois milagres, mas num ritmo muito mais rápido que o habitual. Santa Teresa de Cálcuta também seguiu o mesmo processo acelerado. Ainda, se assim desejar, o Papa tem poder para dispensar a exigência de milagres e acelerar o processo.
-- autoria própria
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