3 de jun. de 2022

Eucaristia: sacerdote e vítima


 Esta é a segunda parte de uma catequese sobre Eucaristia. Na primeira parte, Padre Raniero falou da Eucaristia na tradição judaica e como Jesus transformou sua natureza ai dizer: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” e "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós". É interessante antes ler a primeira parte.


Até aqui abordei os aspectos litúrgicos e rituais da consagração eucarística. Agora vou falar de outro aspecto, de um tipo mais pessoal e existencial, isto é, do papel que nós, padres e fiéis, temos no momento da Missa. Para entender o papel de um padre na consagração, é de importância vital entender a natureza do sacríficio e sacerdócio de Cristo por que é deles que o sacerdócio cristão se origina, tanto o sacerdócio de inistros ordenados quanto dos fiéis batizados.

De fato não somos mais "sacerdotes segundo a ordem de Melquisedec", somos "sacerdotes segundo a ordem de Jesus Cristo"; no altar agimos "in persona Christi", representamos o sacerdote principal, Jesus Cristo. No simpósio sobre o sacerdócio, realizado neste local mês passado, abordou este assunto muito mais do que posso fazer em minha breve reflexão, mas é necessário dizer algo, aqui, para a compreensão da Eucaristia.  

A Carta aos hebreus explica a novidade e excepcionalidade do sacerdócio de Cristo: "sem levar consigo o sangue de carneiros ou novilhos, mas com seu próprio sangue, [Cristo] entrou de uma vez por todas no santuário, adquirindo-nos uma redenção eterna" (Hb 9,12). Todos sacerdotes oferecem algo não pessoal, mas Cristo ofereceu a si mesmo; sacerdotes comuns oferecem vítimas, Cristo foi a própria vítima! Santo Agostinho resumiu em poucas palavras este novo tipo de sacerdócio no qual o celebrante e a vítima são a mesma pessoa: “Ideo sacerdos quia sacrificium”, "sacerdote porque é vítima". O teólogo francês René Girard definiu o sacrifício de Cristo como "o acontecimento central na vida religiosa da humanidade", pois coloca um fim na aliança entre o sagrado e a violência.


Em Cristo é Deus que se tornou vítima, não é mais o ser humano oferecendo sacrifícios para agradar a Deus e torná-lo favorável; é Deus que sacrifica a si mesmo em favor da humanidade, permitindo que seu único Filho morra por nossa salvação (cf. Jo 3,16). Jesus não ofereceu o sangue de outros, mas com seu próprio sangue, ele não colocou suas culpas nas costas de outros, animais ou pessoas, mas ele colocou nossos pecados nos seus próprios ombros: "Ele
carregou os nossos pecados em seu corpo" (1Pe 2,24). 

O que significa é que na Missa, nós padres, devemos também ser sacerdotes e vítimas ao mesmo tempo. Em vista disto, devemos refletir sobre as palavras da consagração: "Este é meu sacrifício oferecido por vós". Sobre isto gostaria de compartilhar minha experiência, como eu descobri o significado eclesial e pessoal da consagração eucarística. Nos primeiros anos de sacerdócio, no momento da consagração em fechava meus olhos, inclinava minha cabeça e tentava me afastar o máximo possível de tudo que acontecia ao redormpara me identificar com Jesus, quando Ele pronunciou pela primeira vez aquela frase: "Tomai e comei...". A liturgia mesmo convidava a esta atitude, com as palavras pronunciadas em latim, inclinado sobre as espécies a serem consagradas.

Então ocorrreu a reforma litúrgica do Vaticano II. As missas começaram a ser celebradas olhando a assembléia, não mais Latim, mas passamos a usar a linguagem do povo. Isto me ajudou a entender que minha atitude não expressava o real significado da minha participação na consagração: que o Jesus do Cenáculo já não existe mais! Quem está presente é Jesus ressuscitado, o Cristo que morreu, mas agora vive para a eternidade (cf. Ap 1,18). Este é o "Jesus total", Cabeça e Corpo unidos. Logo, se este é o Cristo total que pronuncia as palavras da consagração, eu também as pronuncio junto com Ele. Sim, eu as pronuncio "in persona Christi", em nome de Cristo, mas também em primeira pessoas, isto é, em meu nome. A partir do dia em que entendi isto, eu parei de fechar meus olhos no momento da consagração, mas dnha mantê-los abertos para olhar os irmãos na minha frente, ou, se estava celebrando sozinho, pensar  na inteira Igreja, e virado para eles, dizer como Jesus: "Tomai e comei, este é o meu corpo oferecido por vós; tomai e bebei, este é o meu sangue derramado por vós".

Mais tarde, Santo Agostinho me ajudou a remover todas as dúvidas que tinha. "Aquilo que a Igreja oferece, ele oferece a si mesma", como ele escreveu em uma famosa passagem de [do livro] Cidade de Deus. Mais próxima a nós está a mística mexicana Concepcion Cabrera de Armida, conhecida Conchita, que morreu em 1937 e foi beatificada em 2015. Para o seu filho jesuíta, que estava próximo a ser ordenado, ela escreveu: "Meu filho lembre que quando segurar em suas mãos a Sagrada Hóstia, não vais dizer 'olhem o Corpo de Cristo, olhem o Sangue de Cristo', mas irás dizer 'este 'o meu Corpo, meu Sangue', ou seja, terás que passar por uma total transformação, deixar de ser você e ser um novo Jesus".

Tudo isto se aplica não apenas a padres e bispos, mas a todos batizados. Um famoso texto do Concílio explica desta maneira:

Os fiéis, incorporados na Igreja pelo Batismo ... pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica (Lumen Gentium 10-11).

No altar há dois corpos de Cristo: o corpo real, nascido da Virgem Maria, morto, ressuscitado e que acendeu ao céus; e o corpo místico, que é a Igreja. De fato, seu corpo está realmente presente no altar e seu corpo místico também está misticamente presente, "misticamente" por que há uma união inseparável entre a Igreja e sua Cabeça. Não há confusão entre as duas presenças, ambas são distintas e inseparáveis.

Assim como há duas ofertas no altar, uma que se torna em corpo e sangue de Cristo, o pão e vinho, e aquele que se torna o corpo místico de Cristo, também há duas epicleses na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo. Na primeira é dito "
Senhor, nós te pedimos: santificai estas ofertas, espalhando-los em seu Espírito, para que se tornem para nós o corpo e o sangue de Jesus Cristo, nosso Senho", na segunda, que é recitada após a consagração, dizemos "enviai teu Espírito Santo para que nos tornemos um só corpo e um só espírito em Cristo. Que o Espírito Santo nos faça um sacrifício perene agradável ao Senhor".

Esta é a forma como a Eucaristia e a Igreja se relacionam: a Eucaristia faz a Igreja fazendo da Igreja uma Eucaristia! A Eucaristia não é apenas, genericametne, a fonte ou causa da santidade da Igreja, é também o seu modelo. A santidade do cristão é realizada através da Eucaristia, deve ser uma santidade Eucarística. Os cristãos não podem se limitar a celebrar a Eucaristia, devem ser uma Eucaristia com Jesus.


-- Padre Raniero Cantalamessa, segunda catequese no Tempo de Quaresma, 18 de Março de 2022.

NT: as epiclises variam entre as diferentes Orações Eucarísticas, Padre Raniero cita apenas uma das formas.


Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...