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23 de abr. de 2025

A Última Mensagem do Papa Francisco


Esta é a mensagem Urbi et Orbi, a cidade de Roma e para todo mundo, escrita pelo Papa Francisco para o Domingo de Pásoca (20 de Abril de 2025). No dia seguinte ele faleceu, logo estes são os seus últimos ensinamentos: 


Cristo ressuscitou, aleluia!

Queridos irmãos e irmãs, Feliz Páscoa!

Hoje, finalmente, o canto do Aleluia volta a ouvir-se na Igreja, passando de boca em boca, de coração em coração, e isto faz com que o povo de Deus no mundo inteiro derrame lágrimas de alegria.

Do túmulo vazio em Jerusalém, ouvimos uma boa notícia inesperada: Jesus, que foi crucificado, "não está aqui, ressuscitou" (Lucas 24,5). Jesus não está no túmulo, ele está vivo!

O amor triunfou sobre o ódio, a luz sobre as trevas e a verdade sobre a falsidade. O perdão triunfou sobre a vingança. O mal não desapareceu da história; permanecerá até o fim, mas não terá mais vantagem; já não tem poder sobre aqueles que aceitam a graça deste dia.

Irmãs e irmãos, especialmente aqueles que experimentam dor e tristeza, o seu grito silencioso foi ouvido e as suas lágrimas foram contadas; nenhum deles foi perdido! Na paixão e morte de Jesus, Deus tomou sobre si todo o mal deste mundo e na sua infinita misericórdia o derrotou. Ele arrancou o orgulho diabólico que envenena o coração humano e espalha violência e corrupção por todos os lados. O Cordeiro de Deus é vitorioso! É por isso que hoje podemos gritar com alegria: “Cristo, nossa esperança, ressuscitou!” (Sequência de Páscoa).

A ressurreição de Jesus é de fato a base da nossa esperança. Pois à luz deste acontecimento, a esperança já não é uma ilusão. Graças a Cristo — crucificado e ressuscitado — a esperança não decepciona! Spes non confundit! (Romanos 5:5). Essa esperança não é uma evasão, mas um desafio; não ilude, mas nos capacita.

Todos aqueles que colocam sua esperança em Deus colocam suas mãos fracas em sua mão forte e poderosa; deixaram-se elevar e partiram em viagem. Juntamente com Jesus Ressuscitado, tornam-se peregrinos de esperança, testemunhas da vitória do amor e da força desarmada da Vida.

Cristo ressuscitou! Estas palavras captam todo o sentido da nossa existência, pois não fomos feitos para a morte, mas para a vida. Páscoa é a celebração da vida! Deus nos criou para a vida e quer que a família humana ressuscite! Aos seus olhos, toda vida é preciosa! A vida de uma criança no ventre da mãe, bem como a vida dos idosos e dos doentes, que em cada vez mais países são vistos como pessoas a serem descartadas.

Que grande sede de morte, de matar, testemunhamos todos os dias nos numerosos conflitos que assolam as diversas partes do nosso mundo! Quanta violência vemos, muitas vezes até dentro das famílias, dirigida contra mulheres e crianças! Quanto desprezo às vezes é despertado em relação aos vulneráveis, aos marginalizados e aos migrantes!

Neste dia, gostaria que todos nós renovássemos a esperança e reavivássemos a confiança nos outros, inclusive naqueles que são diferentes de nós, ou que vêm de terras distantes, trazendo costumes, modos de vida e ideias desconhecidos! Pois todos nós somos filhos de Deus!

Gostaria que renovássemos a nossa esperança de que a paz é possível! Do Santo Sepulcro, Igreja da Ressurreição, onde este ano a Páscoa é celebrada no mesmo dia por católicos e ortodoxos, a luz da paz irradie por toda a Terra Santa e por todo o mundo. Exprimo a minha proximidade aos sofrimentos dos cristãos na Palestina e em Israel, e a todo o povo israelita e ao povo palestino. O crescente clima de anti-semitismo em todo o mundo é preocupante. Mas, ao mesmo tempo, penso no povo de Gaza, e na sua comunidade cristã em particular, onde o terrível conflito continua a causar morte e destruição e a criar uma situação humanitária dramática e deplorável. Apelo às partes em conflito: convoquem um cessar-fogo, libertem os reféns e venham em socorro de um povo faminto que aspira a um futuro de paz!

Rezemos pelas comunidades cristãs no Líbano e na Síria, que vivem atualmente uma delicada transição na sua história. Aspiram à estabilidade e à participação na vida das suas respectivas nações. Exorto toda a Igreja a manter os cristãos do amado Médio Oriente nos seus pensamentos e orações.

Penso também em particular no povo do Iémen, que vive uma das crises humanitárias mais graves e prolongadas do mundo devido à guerra, e convido todos a encontrar soluções através de um diálogo construtivo.

Que Cristo ressuscitado conceda à Ucrânia, devastada pela guerra, o dom pascal da paz, e encoraje todas as partes envolvidas a prosseguirem os esforços tendentes a alcançar uma paz justa e duradoura.

Neste dia festivo, recordemos a região do Cáucaso e rezemos para que um acordo de paz final entre a Arménia e o Azerbaijão seja em breve assinado e implementado, e conduza à tão esperada reconciliação na região.

Que a luz da Páscoa inspire esforços para promover a harmonia nos Balcãs e apoiar os líderes políticos nos seus esforços para aliviar tensões e crises e, juntamente com os países vizinhos na região, para rejeitar ações perigosas e desestabilizadoras.

Que Cristo Ressuscitado, nossa esperança, conceda a paz e a consolação aos povos africanos vítimas da violência e dos conflitos, especialmente na República Democrática do Congo, no Sudão e no Sudão do Sul. Apoie quantos sofrem as tensões no Sahel, na região da Somália e dos Grandes Lagos Africanos, assim como aqueles cristãos que em muitos lugares não conseguem professar livremente a sua fé.

Não pode haver paz sem liberdade de religião, liberdade de pensamento, liberdade de expressão e respeito pelas opiniões dos outros.

Não é possível haver paz sem um verdadeiro desarmamento! A exigência de que cada povo providencie a sua própria defesa não deve transformar-se numa corrida ao rearmamento. A luz da Páscoa impele-nos a derrubar as barreiras que criam divisões e estão repletas de graves consequências políticas e econômicas. Impulsiona-nos a cuidar uns dos outros, a aumentar a nossa solidariedade mútua e a trabalhar pelo desenvolvimento integral de cada pessoa humana.

Durante este tempo, não deixemos de ajudar o povo de Mianmar, atormentado por longos anos de conflito armado, que, com coragem e paciência, enfrenta as consequências do devastador terramoto em Sagaing, que causou a morte de milhares de pessoas e grande sofrimento a muitos sobreviventes, incluindo órfãos e idosos. Rezamos pelas vítimas e pelos seus entes queridos e agradecemos de coração a todos os generosos voluntários que realizam as operações de socorro. O anúncio de um cessar-fogo  no país é um sinal de esperança para todo o Mianmar.

Apelo a todos aqueles que ocupam posições de responsabilidade política no nosso mundo, a não ceder à lógica do medo, que só leva ao isolamento dos outros, mas antes a utilizar os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, para combater a fome e para encorajar iniciativas que promovam o desenvolvimento. Estas são as armas da paz: armas que constroem o futuro, em vez de semear sementes de morte!

Que o princípio da humanidade nunca deixe de ser a marca das nossas ações diárias. Perante a crueldade dos conflitos que envolvem civis indefesos e atacam escolas, hospitais e trabalhadores humanitários, não podemos permitir-nos esquecer que não são os alvos que são atingidos, mas sim pessoas, cada uma dotada de uma alma e de uma dignidade humana.

Neste ano jubilar, a Páscoa seja também uma ocasião propícia para a libertação dos prisioneiros de guerra e dos presos políticos!

Queridos irmãos e irmãs,

No Mistério Pascal do Senhor, a morte e a vida lutaram numa luta estupenda, mas o Senhor agora vive para sempre (cf. Sequência Pascal). Ele nos enche da certeza de que também nós somos chamados a participar da vida que não tem fim, quando não mais se ouvirão o choque das armas e o estrondo da morte. Confiemos-nos a ele, pois só ele pode fazer novas todas as coisas (Apocalipse 21:5)!

Feliz Páscoa para todos!

25 de dez. de 2020

Homília de Natal do Papa Francisco: Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado


Nesta noite, cumpre-se a grande profecia de Isaías: "Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado" (Is 9, 5).

Um filho nos foi dado. Com frequência se ouve dizer que a maior alegria da vida é o nascimento duma criança. É algo de extraordinário, que muda tudo, desencadeia energias inesperadas e faz ultrapassar fadigas, incómodos e noites sem dormir, porque traz uma grande felicidade na posse da qual nada parece pesar. Assim é o Natal: o nascimento de Jesus é a novidade que nos permite renascer dentro, cada ano, encontrando n’Ele força para enfrentar todas as provações. Sim, porque Jesus nasce para nós: para mim, para ti, para todos e cada um de nós. A preposição "para" reaparece várias vezes nesta noite santa: "um menino nasceu para nós", profetizou Isaías; "hoje nasceu para nós o Salvador", repetimos no Salmo Responsorial; Jesus "entregou-Se por nós" (Tit 2, 14), proclamou São Paulo; e, no Evangelho, o anjo anunciou "hoje nasceu para vós um Salvador" (Lc 2, 11). Para mim, para vós…

Mas, esta locução "para nós" que nos quer dizer? Que o Filho de Deus, o Bendito por natureza, vem fazer-nos filhos benditos por graça. Sim, Deus vem ao mundo como filho para nos tornar filhos de Deus. Que dom maravilhoso! Hoje Deus deixa-nos maravilhados, ao dizer a cada um de nós: "Tu és uma maravilha". Irmã, irmão, não desanimes! Estás tentado a sentir-te como um erro? Deus diz-te: "Não é verdade! És meu filho". Tens a sensação de não estar à altura, temor de ser inapto, medo de não sair do túnel da provação? Deus diz-te: "Coragem! Estou contigo". Não to diz com palavras, mas fazendo-Se filho como tu e por ti, para te lembrar o ponto de partida de cada renascimento teu: reconhecer-te filho de Deus, filha de Deus. Este é o ponto de partida de qualquer renascimento. Este é o coração indestrutível da nossa esperança, o núcleo incandescente que sustenta a existência: por baixo das nossas qualidades e defeitos, mais forte do que as feridas e fracassos do passado, os temores e ansiedades face ao futuro, está esta verdade: somos filhos amados. E o amor de Deus por nós não depende nem dependerá jamais de nós: é amor gratuito. Esta noite não encontra outra explicação, senão na graça. Tudo é graça. O dom é gratuito, sem mérito algum da nossa parte, pura graça. Esta noite "manifestou-se – disse-nos São Paulo – a graça de Deus" (Tit 2, 11). Nada é mais precioso!

Um filho nos foi dado. O Pai não nos deu uma coisa qualquer, mas o próprio Filho unigénito, que é toda a sua alegria. Todavia, ao considerarmos a ingratidão do homem para com Deus e a injustiça feita a tantos dos nossos irmãos, surge uma dúvida: o Senhor terá feito bem em dar-nos tanto? E fará bem em confiar ainda em nós? Não estará Ele a sobrestimar-nos? Sim, sobrestima-nos; e fá-lo porque nos ama a preço da sua vida. Não consegue deixar de nos amar. É feito assim, tão diferente de nós. Sempre nos ama, e com uma amizade maior de quanta possamos ter a nós mesmos. É o seu segredo para entrar no nosso coração. Deus sabe que a única maneira de nos salvar, de nos curar por dentro, é amar-nos. Não há outra maneira! Sabe que só melhoramos acolhendo o seu amor incansável, que não muda, mas muda-nos a nós. Só o amor de Jesus transforma a vida, cura as feridas mais profundas, livra do círculo vicioso insatisfação, irritação e lamento.

Um filho nos foi dado. Na pobre manjedoura dum lúgubre estábulo, está precisamente o Filho de Deus. E aqui levanta-se outra questão: porque veio Ele à luz durante a noite, sem um alojamento digno, na pobreza e enjeitado, quando merecia nascer como o maior rei no mais lindo dos palácios? Porquê? Para nos fazer compreender até onde chega o seu amor pela nossa condição humana: até tocar com o seu amor concreto a nossa pior miséria. O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que todo o descartado é filho de Deus. Veio ao mundo como vem ao mundo uma criança débil e frágil, para podermos acolher com ternura as nossas fraquezas. E para nos fazer descobrir uma coisa importante: como em Belém, também connosco Deus gosta de fazer grandes coisas através das nossas pobrezas. Colocou toda a nossa salvação na manjedoura dum estábulo, sem temer as nossas pobrezas. Deixemos que a sua misericórdia transforme as nossas misérias!

Eis o que quer dizer um filho nasceu para nós. Mas há ainda um "para" que o anjo disse aos pastores: "Isto servirá de sinal para vós: encontrareis um menino (…) deitado numa manjedoura" (Lc 2, 12). Este sinal – o Menino na manjedoura – é também para nós, para nos orientar na vida. Em Belém, que significa "casa do pão", Deus está numa manjedoura, como se nos quisesse lembrar que, para viver, precisamos d’Ele como de pão para a boca. Precisamos de nos deixar permear pelo seu amor gratuito, incansável, concreto. Mas quantas vezes, famintos de divertimento, sucesso e mundanidade, nutrimos a vida com alimentos que não saciam e deixam o vazio dentro! Disto mesmo Se lamentava o Senhor, pela boca do profeta Isaías: enquanto o boi e o jumento conhecem a sua manjedoura, nós, seu povo, não O conhecemos a Ele, fonte da nossa vida (cf. Is 1, 2-3). É verdade: insaciáveis de ter, atiramo-nos para muitas manjedouras vãs, esquecendo-nos da manjedoura de Belém. Esta manjedoura, pobre de tudo mas rica de amor, ensina que o alimento da vida é deixar-se amar por Deus e amar os outros. Dá-nos o exemplo Jesus: Ele, o Verbo de Deus, é infante; não fala, mas oferece a vida. Nós, ao contrário, falamos muito, mas frequentemente somos analfabetos em bondade.

Um filho nos foi dado. Quem tem uma criança pequena, sabe quanto amor e paciência são necessários. É preciso alimentá-la, cuidar dela, limpá-la, ocupar-se da sua fragilidade e das suas necessidades, muitas vezes difíceis de compreender. Um filho faz-nos sentir amados, mas ensina também a amar. Deus nasceu menino para nos impelir a cuidar dos outros. Os seus ternos gemidos fazem-nos compreender como tantos dos nossos caprichos são inúteis. E temos tantos! O seu amor desarmado e desarmante lembra-nos que o tempo de que dispomos não serve para nos lamentarmos, mas para consolar as lágrimas de quem sofre. Deus vem habitar perto de nós, pobre e necessitado, para nos dizer que, servindo aos pobres, amá-Lo-emos a Ele. Desde aquela noite, como escreveu uma poetisa, "a residência de Deus é próxima da minha. O mobiliário é o amor" (E. Dickinson, Poems, XVII).

Um filho nos foi dado. Sois Vós, Jesus, o Filho que me torna filho. Amais-me como sou, não como eu me sonho ser. Bem o sei! Abraçando-Vos, Menino da manjedoura, reabraço a minha vida. Acolhendo-Vos, Pão de vida, também eu quero dar a minha vida. Vós que me salvais, ensinai-me a servir. Vós que não me deixais sozinho, ajudai-me a consolar os vossos irmãos, porque, a partir desta noite – como Vós sabeis – são todos meus irmãos.

 -- Papa Francisco, Homília da Noite de Natal, 2020

 

 

31 de mai. de 2020

Há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo

"Há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo": assim escreve Paulo aos Coríntios. E continua: "Há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; e há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos" (1 Cor 12, 4-6). Diversidade e o mesmo, diversos e um só: o Apóstolo insiste em juntar duas palavras que parecem opostas. Quer-nos dizer que este um só que junta os diversos é o Espírito Santo. E a Igreja nasceu assim: diversos, unidos pelo Espírito Santo.

Recuemos até aos inícios da Igreja, no dia de Pentecostes, e fixemos os Apóstolos: entre eles, temos pessoas simples, habituadas a viver do trabalho das suas mãos, como os pescadores, e está Mateus, certamente dotado de instrução pois fora cobrador de impostos. Existem origens e contextos sociais diversos, nomes hebraicos e nomes gregos, temperamentos pacatos e outros ardorosos, ideias e sensibilidades diferentes. Eram todos diferentes. Jesus não os mudara, nem os uniformizara, tornando-os modelos em série. Não. Deixara as suas diversidades; e agora une-os, ungindo-os com o Espírito Santo. A união – a união deles que eram diversos – vem com a unção. No Pentecostes, os Apóstolos compreendem a força unificadora do Espírito. Veem-na com os próprios olhos, ao constatar que todos, apesar de falar línguas diversas, formam um só povo: o povo de Deus, plasmado pelo Espírito, que tece a unidade com as nossas diferenças, que dá harmonia porque, no Espírito, há harmonia. Ele é a harmonia.

Mas voltemos à Igreja de hoje. Podemos interrogar-nos: "O que é que nos une, em que se baseia a nossa unidade?" Também entre nós existem diversidades, por exemplo de opinião, preferência, sensibilidade. A tentação, porém, é defender sempre de espada desembainhada as nossas ideias, considerando-as boas para todos e pactuando apenas com quem pensa como nós. E esta é uma tentação ruim, que divide. Mas, esta é uma fé à nossa imagem, não é aquilo que deseja o Espírito. Nesse caso, poder-se-ia pensar que aquilo que nos une fossem as próprias coisas em que acreditamos e os próprios comportamentos que adotamos. Mas não! Há muito mais: o nosso princípio de unidade é o Espírito Santo. E a primeira coisa que Ele nos lembra é que somos filhos amados de Deus; nisto, todos iguais e, todavia, somos todos diferentes. O Espírito vem a nós, com todas as nossas diversidades e misérias, para nos dizer que temos um só e mesmo Senhor, Jesus, um só e mesmo Pai; por isso, somos irmãos e irmãs. Partamos daqui! Olhemos a Igreja como faz o Espírito, não como faz o mundo. O mundo vê-nos de direita e de esquerda, com esta ideologia, com aquela; o Espírito vê-nos do Pai e de Jesus. O mundo vê conservadores e progressistas; o Espírito vê filhos de Deus. O olhar do mundo vê estruturas, que se devem tornar mais eficientes; o olhar espiritual vê irmãos e irmãs implorando misericórdia. O Espírito ama-nos e conhece o lugar de cada um no todo: para Ele não somos papelinhos coloridos levados pelo vento, mas ladrilhos insubstituíveis do seu mosaico.

Tornamos ao dia de Pentecostes e descobrimos a primeira obra da Igreja: o anúncio. Vemos, porém, que os Apóstolos não preparam uma estratégia; quando estavam fechados lá, no Cenáculo, não montavam a estratégia, não; não preparavam um plano pastoral. Teriam podido dividir as pessoas por grupos segundo os vários povos, falar primeiro aos de perto e depois aos que eram de longe, tudo bem ordenado... Teriam podido também temporizar um pouco no anúncio e, entretanto, aprofundar os ensinamentos de Jesus, para evitar riscos... Mas não! O Espírito não quer que a recordação do Mestre seja cultivada em grupos fechados, em cenáculos onde tendemos a "fazer o ninho". E esta é uma doença má que pode vir à Igreja: uma Igreja não comunidade, nem família, nem mãe, mas ninho. O Espírito abre, relança, impele para além do que já foi dito e feito, Ele impele para além dos recintos duma fé tímida e cautelosa. No mundo, sem uma estrutura compacta e uma estratégia calculada é um fracasso. Na Igreja, ao contrário, o Espírito assegura ao arauto a unidade. E os Apóstolos partem: sem preparação, lançam-se, saem. Anima-os um único desejo: dar o que receberam. Como é belo aquele princípio da Primeira Carta de João: aquilo que nós recebemos e vimos, damo-lo a vós (cf. 1, 3)! 

Finalmente chegamos a compreender qual é o segredo da unidade, o segredo do Espírito. O segredo da unidade da Igreja, o segredo do Espírito é o dom. Porque Ele é dom, vive doando-Se e, assim, nos mantém unidos, fazendo-nos participantes do mesmo dom. É importante acreditar que Deus é dom, que não se comporta tomando, mas dando. E por que é importante? Porque o nosso modo de ser crentes depende de como entendermos Deus. Se tivermos em mente um Deus que toma, que Se impõe, desejaremos também nós tomar e impor-nos: ocupar espaços, reivindicar importância, procurar poder. Mas, se tivermos no coração que Deus é dom, muda tudo. Se nos dermos conta de que aquilo que somos é dom d’Ele, dom gratuito e imerecido, então também nós quereremos fazer da própria vida um dom. E amando humildemente, servindo gratuitamente e com alegria, ofereceremos ao mundo a verdadeira imagem de Deus. O Espírito, memória viva da Igreja, lembra-nos que nascemos de um dom e crescemos doando-nos; não poupando-nos, mas dando-nos.

Queridos irmãos e irmãs, olhemos no íntimo de nós mesmos e perguntemo-nos o que é que impede de nos darmos. Há – por assim dizer – três inimigos do dom; os principais são três, sempre deitados à porta do coração: o narcisismo, a vitimização e o pessimismo. O narcisismo leva a idolatrar-me a mim mesmo, a comprazer-me apenas com o lucro próprio. O narcisista pensa: "A vida é boa, se eu ganho com ela". E assim chega a dizer: "Por que deveria eu doar-me aos outros?" Nesta pandemia, faz um mal imenso o narcisismo, o debruçar-se apenas sobre as próprias carências, insensível às dos outros, o não admitir as próprias fragilidades e erros. Mas o segundo inimigo, a vitimização, também é perigoso. A vítima lamenta-se todos os dias do seu próximo: "Ninguém me compreende, ninguém me ajuda, ninguém me quer bem, estão todos contra mim!" Quantas vezes ouvimos estas lamentações! E o seu coração fecha-se, enquanto se interroga: "Por que não se doam a mim os outros?" No drama que vivemos, como é má a vitimização! Como é mau pensar que ninguém nos compreende e sente aquilo que sentimos nós! Isto é o fazer a vítima. Por fim, temos o pessimismo. Neste caso, a ladainha diária é: "Nada vai bem, a sociedade, a política, a Igreja..." O pessimista insurge-se contra o mundo, mas fica inerte e pensa: "Assim para que serve doar-se? É inútil". Agora, no grande esforço de recomeçar, como é prejudicial o pessimismo, ver tudo negro, repetir que nada voltará a ser como antes! Pensando assim, aquilo que seguramente não volta é a esperança. Nestes três – o ídolo narcisista do espelho, o deus-espelho; o deus-lamentação: "sinto-me alguém nas lamentações"; e o deus-negatividade: "é tudo negro, é tudo escuro" – encontramo-nos na carestia da esperança e precisamos de apreciar o dom da vida, o dom que é cada um de nós. Por isso, necessitamos do Espírito Santo, dom de Deus que nos cura do narcisismo, da vitimização e do pessimismo; cura do espelho, das lamentações e da escuridão.

Irmãos e irmãs, peçamo-lo: Espírito Santo, memória de Deus, reavivai em nós a lembrança do dom recebido. Libertai-nos das paralisias do egoísmo e acendei em nós o desejo de servir, de fazer bem. Porque pior do que esta crise, só o drama de a desperdiçar fechando-nos em nós mesmos. Vinde, Espírito Santo! Vós que sois harmonia, tornai-nos construtores de unidade; Vós que sempre Vos doais, dai-nos a coragem de sair de nós mesmos, de nos amar e ajudar, para nos tornarmos uma única família. Amém.

-- Papa Francisco, Na Festa de Pentecostes, 30 de Maio de 2020

25 de dez. de 2018

Vamos a cidade de Davi, chamada Belém

Juntamente com Maria sua esposa, José subiu "à cidade de Davi, chamada Belém" (Lc 2, 4). Nesta noite, também nós subimos a Belém, para lá descobrir o mistério do Natal.

Jesus, nosso pão de cada dia

1. Belém: o nome significa casa do pão. Hoje, nesta casa, o Senhor marca encontro com a humanidade. Sabe que precisamos de alimento para viver. Mas sabe também que os alimentos do mundo não saciam o coração. Na Sagrada Escritura, o pecado original da humanidade aparece associado precisamente com o ato de tomar alimento: "…agarrou do fruto, comeu" – diz o livro do Génesis (3, 6). Agarrou e comeu. O homem tornou-se ávido e voraz. Para muitos, o sentido da vida parece ser possuir, estar cheio de coisas. Uma ganância insaciável atravessa a história humana, chegando ao paradoxo de hoje em que alguns se banqueteiam lautamente enquanto muitos não têm pão para viver.

Belém é o ponto de viragem no curso da história. Lá Deus, na casa do pão, nasce numa manjedoura; como se quisesse dizer-nos: Estou aqui ao vosso dispor, como vosso alimento. Jesus não agarra, mas oferece de comer; não dá uma coisa, mas dá-Se a Si mesmo. Em Belém, descobrimos que Deus não é alguém que agarra a vida, mas Aquele que dá a vida. Ao homem, habituado desde os primórdios a agarrar e comer, Jesus começa a dizer: "Tomai, comei. Este é o meu corpo" (Mt 26, 26). O corpo pequenino do Menino de Belém lança um novo modelo de vida: não devorar e acumular, mas partilhar e dar. Deus faz-Se pequeno, para ser nosso alimento. Nutrindo-nos d’Ele, Pão de vida, podemos renascer no amor e romper a espiral da avidez e da ganância. A partir da casa do pão, Jesus traz o homem de regresso a casa, para que se torne familiar do seu Deus e irmão do seu próximo. Diante da manjedoura, compreendemos que não são os bens que alimentam a vida, mas o amor; não a voracidade, mas a caridade; não a abundância ostentada, mas a simplicidade que devemos preservar.

O Senhor sabe que precisamos de alimento todos os dias. Por isso, ofereceu-nos todos os dias da sua vida, desde a manjedoura de Belém até ao cenáculo de Jerusalém. E ainda hoje, no altar, faz-Se pão partido para nós: bate à porta, para entrar e cear conosco (cf. Ap 3, 20). No Natal, recebemos Jesus, Pão do céu na terra: trata-se de um alimento cuja validade é ilimitada, fazendo-nos saborear já agora a vida eterna.

Em Belém, descobrimos que a vida de Deus corre nas veias da humanidade. Se a acolhermos, a história muda a partir de cada um de nós; com efeito, quando Jesus muda o coração, o centro da vida já não é o meu "eu" faminto e egoísta, mas Ele, que nasce e vive por amor. Nesta noite, chamados a ir até Belém, casa do pão, interroguemo-nos: 

Qual é o alimento de que não posso prescindir na minha vida? É o Senhor ou outra coisa qualquer?

Depois, entrando na gruta, ao vislumbrar na terna pobreza do Menino uma nova fragrância de vida, a da simplicidade, perguntemo-nos: 

Será verdade que preciso de tantas coisas, de receitas complicadas para viver? Quais são os contornos supérfluos de que consigo prescindir para abraçar uma vida mais simples? 

Em Belém, ao pé de Jesus, vemos pessoas que caminharam, como Maria, José e os pastores. Jesus é o Pão do caminho. Não Se compraz com as digestões lentas, longas e sedentárias, mas pede que nos levantemos rapidamente da mesa a fim de servir como pães partidos para os outros. Perguntemo-nos: No Natal, reparto o meu pão com aqueles que estão sem ele?

Não temais, o Senhor te ama
Depois de Belém, casa do pão, reflitamos sobre Belém, cidade de Davi. Lá Davi, na sua adolescência, era pastor e, como tal, foi escolhido por Deus, para ser pastor e guia do seu povo. No Natal, na cidade de David, são precisamente os pastores que acolhem Jesus. Naquela noite, quando "a glória do Senhor refulgiu em volta deles" – diz o Evangelho –, "tiveram muito medo" (Lc 2, 9), mas o anjo disse-lhes: "Não temais" (2, 10). 

Reaparece muitas vezes no Evangelho esta frase "não temais": parece o refrão de Deus à procura do homem. Porque o homem desde o princípio, por causa do pecado, tem medo de Deus: "…por que tive medo, escondi-me" (Gn 3, 10) – diz Adão, depois do pecado. Belém é o remédio para o medo, porque lá, não obstante os "nãos" do homem, Deus diz para sempre "sim": será para sempre Deus connosco. E, para que a sua presença não provoque medo, faz-Se um terno menino. A frase "não temais" não é dirigida a santos, mas a pastores, pessoas simples que então não primavam por inteligência nem devoção. O Filho de Davi nasceu no meio dos pastores, para nos dizer que doravante ninguém estará sozinho; temos um Pastor que vence os nossos medos e nos ama a todos, sem exceção.

Os pastores de Belém mostram-nos também como ir ao encontro do Senhor. Velam durante a noite: não dormem, mas fazem aquilo que Jesus nos pedirá várias vezes: vigiar (cf. Mt 25, 13; Mc 13, 35; Lc 21, 36). Permanecem vigilantes; aguardam, acordados, na escuridão; e a glória de Deus "refulgiu em volta deles" (Lc 2, 9). O mesmo vale para nós. A nossa vida pode ser uma esperança, em que a pessoa, mesmo nas noites dos problemas, se confia ao Senhor e O deseja; então receberá a sua luz. Ou então uma pretensão, na qual contam apenas as próprias forças e meios; mas, neste caso, o coração permanece fechado à luz de Deus. 

O Senhor gosta de ser aguardado e não é possível aguardá-Lo no sofá, dormindo. De fato, os pastores movem-se: "foram apressadamente" – diz o texto (2, 16). Não ficam parados como quem sente ter chegado a casa e não precisa de nada; mas partem, deixam o rebanho indefeso, arriscam por Deus. E depois de terem visto Jesus, embora sem grande habilidade para falar, vão anunciá-Lo, de modo que "todos os que ouviram se admiravam do que lhes diziam os pastores" (2, 18).

Esperar acordado, ir, arriscar, contar a beleza são gestos de amor. O bom Pastor, que vem no Natal para dar a vida às ovelhas, na Páscoa dirigirá a Pedro, e através dele a todos nós, a pergunta determinante: "Tu Me amas?" (Jo 21, 15). Da resposta, dependerá o futuro do rebanho. Nesta noite, somos chamados a responder, dizendo-Lhe também nós: "Sou deveras teu amigo". A resposta de cada um é essencial para todo o rebanho.

"Vamos a Belém…" (Lc 2, 15): assim disseram e fizeram os pastores. Também nós, Senhor, queremos vir a Belém. O caminho, ainda hoje, é difícil: é preciso superar os cumes do egoísmo, evitar escorregar nos precipícios da mundanidade e do consumismo. Quero chegar a Belém, Senhor, porque é lá que me esperas. E dar-me conta de que Tu, colocado numa manjedoura, és o pão da minha vida. Preciso da terna fragrância do teu amor, a fim de tornar-me, por minha vez, pão repartido para o mundo. Toma-me sobre os teus ombros, bom Pastor: amado por Ti, conseguirei também eu amar tomando pela mão os irmãos. Então será Natal, quando Te puder dizer: "Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que eu sou deveras teu amigo!" (Jo 21, 17).

Papa Francisco, noite de Natal, 2018.

8 de dez. de 2018

São Vicente Romano

Vincenzo Romano nasceu em 3 de Junho de 1751, filho de Nicola Luca e Maria Grazia, na nascida de Torre del Greco, nas imediações de Nápoles. Foi batizado no dia seguinte na Igreja de Santa Cruz. Tinha dois irmãos, Pietro e Goiseppe. Seus pais eram simples trabalhadores, muito piedosas, e incentivaram seus filhos a seguirem o caminho sacerdotal. 

São Vecente Romano, um retrato feito em torno de 1800.
Está carregando a Liturgia das Horas, pois costumava
rezá-las em qualquer lugar que estivesse.
Ainda criança apaixonou-se por Santo Alfonso Ligório, cujos sermões assistia pessoalmente, e desenvolveu grande devoção pelo Santíssimo Sacramento. Ao quatorze anos decidiu-se pelo seminário, sendo ajudado pelo irmão mais velho, Pietro, que já era padre. Devido a algumas normas rígidas de admissão que o Cardeal de Nápoles havia imposto, sua entrada foi mais difícil. Inicialmente procurou a Ordem dos Jesuítas, mas foi recusado. Apenas com a ajuda do Duque Di Martino, que pediu em seu favor, foi admitido ao exame para entrada no Seminário Diocesano, onde saiu-se muito bem. 

No Seminário demonstrava um fervor e fé acima dos seus companheiros. Dom Mariano Arciero, sacerdote de grande virtude, que viria a ser declarado Venerável, foi o responsável pela sua formação. No sábado 10 de Junho de 1775 foi ordenado sacerdote na antiga basílica de Santa Restituta. Celebrou sua primeira missa no dia seguinte, domingo da Santíssima Trindade, na Igreja de Santa Cruz, onde fora batizado 24 anos antes e para a qual fora designado.

Em 15 de Junho de 1794, uma erupção do Monte Vesúvio causou enorme destruição da cidade, inclusive a Igreja foi perdida devido a um incêndio. Preocupado com a situação de desespero da comunidade, providenciou toda forma de aceitável de celebrar a Santa Missa, para trazer conforto àqueles que haviam perdido sua casa e trabalho. Quanto a reconstrução da Igreja, iniciou os trabalhos tão logo pode, sendo que ele mesmo ajudava no trabalho, carregando pedras, limpando, ajudando no que era possível. Este viria a ser, basicamente, o trabalho de sua vida. 

No plano pastoral, o ministério da palavra e o Evangelho da Caridade foram as bases de sua atividade. Incentivou que a oração do Rosário, escreveu um folheto para que todos acompanhassem a Santa Missa e desenvolveu uma estratégia missionária chamada "Sciabica", um tipo de rede de pescador, que consistia em aproximar-se de uma pessoa caminhando na rua, perguntar se poderia acompanhá-la, e daí ir pregando o Evangelho. Se aceitassem, convidava a entrar numa Igreja próxima, confessar-se e rezar. Mantinha também uma escola para meninos pobres e era regularmente visto com bandidos, pois sabia que sua presença evitava que cometessem maldades. Nos fins de semana, além das missas, organizava pregações (catequeses) para seus paroquianos. Segundo testemunhos, falava de maneira simples e clara, para que todos pudessem entender, inclusive aqueles que não tinham estudo. 
Igreja da Santa Cruz, em Torre del Greco.

Em 1 de Janeiro de 1825 caiu, quebrando o fêmur, fato que iniciou o declínio de sua saúde. Ainda viu sua Igreja ser concluída e re-inaugurada em 1827. Morreu santamente em 20 de Dezembro de 1831, tendo levado uma vida exemplar. Seu corpo repousa em uma urna na própria Igreja da Santa Cruz e sua memória é celebrada em 29 de Novembro. 

O processo de canonização foi aberto em 1843, seus dois irmãos, um sobrinho também padre e uma sobrinha, assim como vários contemporâneos foram testemunhas no processo. Em 25 de Março de 1895, o Papa Leão XIII declarou Vicenzo como Venerável. O primeiro milagre reconhecido oficialmente foi a cura de Maria Carmela Restucci, que em 1891 desenvolveu um câncer no seio, que cusava feridas e muitas dores. Após pedir a intervenção do santo, amanheceu curada, o que foi confirmado pelo seu médico. O segundo milagre ocorreu em 1940, quando Maria Carmela Cozzolino já preparava-se para a morte, pois um câncer na garganta que quase lhe impidia de respirar. Seu médico iniciou uma novena em honra ao santo; Maria também amanheceu curada na manhã do terceiro dia, pois o câncer havia simplesmente desaparecido. Com o testemunho de tais milagres, foi beatificado em 17 de Novembro de 1963. O terceiro milagre foi também o desaparecimento de um tumor, neste caso, uma massa de mais de quatro quilos que se formou no abdômen de Raimondo Formisano, em 1989. Por fim, São Vicente Romano foi canonizado em 14 de Outubro de 2018 pelo Papa Francisco.  

-- autoria própria

23 de out. de 2018

Santa Maria Catarina Kasper

Em 14 de Outubro, o Papa Francisco canonizou sete novos santos. Destes, dois são conhecidos no Brasil e a imprensa falou sobre eles, mesmo que brevemente: Papa Paulo VI e Dom Oscar Romero. Os outros cinco santos nem foram citados: Francisco Spinelli, Vicente Romano, Maria Catarina Kasper, Nazária Inácia de Santa Teresa de Jesus e Núncio Sulprizio. Aqui vou começar uma pequena série de biografias, um texto para cada dos sete, começando por Santa Maria Catarina Kasper.

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Maria Catarina nasceu em 26 de Maio de 1820 na cidade de Dernbach, que fica na Alemanha, próxima a fronteira coma França, foi a terceira filha de quatro irmãos, seus pais eram Heinrich e Katharina. O pai tinha ainda outras quatro filhas de um primeiro casamento. 

Desde pequena gostava de ler, em especial a Bíblia e o livro A Imitaçãoo de Cristo, de Thomas Kempis. Aos seis anos começou a ir para escola, mas nunca se destacou pois costumava passar longos períodos ausente por doença ou tendo que ajudar na colheita e afazeres domésticos. Quando ficou um pouco maior, quebrava pedras para construção de estradas. Segundo ela, desde muito cedo sentiu um chamado à vida religiosa, mas sabia que os pais necessitavam do seu trabalho. Quando podia, viajava até um santuário mariano para rezar, muitas vezes servindo como líder de um grupo de meninas da cidade.

Em 1841 seu pai morreu, no ano seguinte um dos irmãos. Ela e a mãe tiveram que sair da casa onde moravam e Maria começou a trabalhar como costureira, ganhando 10 centavos por dia. Sua mãe morreu pouco depois, deixando-a livre para seguir sua vocação. Devido à perseguição religiosa em décadas anteriores, na região havia apenas monges Franciscanos e Cistercienses, nenhuma ordem feminina. Maria, com o auxílio da comunidade, coonseguiu construir uma pequena casa na sua cidade. Suas amigas de infância começaram a ajudá-la nos trabalhos aos pobres, algumas ainda morando com suas famílias. O Bispo da região, Dom Joseph Blum, ficou sabendo do trabalho e as incentivou a persistirem.

Em 15 de Agosto de 1851, o Bispo Blum recebeu os primeiros votos do pequeno grupo, iniciando a Ordem da Servas Pobres de Jesus Cristo. A ordem cresceu rapidamente e várias casas se formaram na Alemanha, em 1854 abriram a primeira escola, em 1859 fundaram a primeira casa na Holanda e, em 9 de Março de 1860, o Papa Pio IX assinou um carta apoiando as irmãs, que foram oficialmente reconhecidas em 21 de Maio de 1890 pelo Papa Leão XIII. 

Maria serviu como superiora da Ordem por cinco períodos, faleceu em 02 de Fevereiro de 1898 na sua cidade natal, devido a um infarto. Seus restos mortais estão no altar da casa principal da Ordem, em Dernbach. O processo de beatificação começou em 1928, foi interompido várias vezes, até ser beatificada em 16 de Abril de 1978, pelo Papa Paulo VI. A cura completa e imediata da irmã Maria Herluka, que já sofria gravemente de tuberculose, foi confirmada como um milagre e serviu como justificativa final para a canonização. 

A ordem das Servas Pobres de Jesus Cristo está presente no Piauí e Ceará, além de vários países, inspiradas por sua fundadora a servir aoos pobres, seguindo o exemplo de Maria e vivendo na dependência da providência de Deus. 

-- autoria própria

24 de set. de 2016

Espiritualidade Familiar

O amor assume matizes diferentes, segundo o estado de vida a que cada um foi chamado. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho de santificação na vida diária e de crescimento místico, um meio para a união íntima com Deus. Com efeito, as exigências fraternas e comunitárias da vida em família são uma ocasião para abrir cada vez mais o coração, e isto torna possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de Deus, que quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas (1 Jo 2, 11), permanece na morte (1 Jo 3, 14) e não chegou a conhecer a Deus (1 Jo 4, 8). O meu antecessor, Bento XVI, disse que “o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus” e que, fundamentalmente, o amor é a única luz que ilumina incessantemente um mundo às escuras. Somente se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós (1 Jo 4, 12). Dado que a pessoa humana tem uma inata e estrutural dimensão social e a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a família, a espiritualidade encarna-se na comunhão familiar. Por isso, aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística.
Unidos em oração à luz da Páscoa
Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos. Nos dias amargos da família, há uma união com Jesus abandonado, que pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam pouco a pouco, com a graça do Espírito Santo, a sua santidade através da vida matrimonial, participando também no mistério da cruz de Cristo, que transforma as dificuldades e os sofrimentos em oferta de amo. Por outro lado, os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua Ressurreição.
A oração em família é um meio privilegiado para exprimir e reforçar esta fé pascal. Podem-se encontrar alguns minutos cada dia para estar unidos na presença do Senhor vivo, dizer-Lhe as coisas que nos preocupam, rezar pelas necessidades familiares, orar por alguém que está a atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar, dar-Lhe graças pela vida e as coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com o seu manto de Mãe. Com palavras simples, este momento de oração pode fazer muito bem à família. O caminho comunitário de oração atinge o seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no dia do descanso dominical. Jesus bate à porta da família, para partilhar com ela a Ceia Eucarística (Ap 3, 20). Aqui, os esposos podem voltar incessantemente a selar a aliança pascal que os uniu e reflete a Aliança que Deus selou com a humanidade na Cruz. A Eucaristia é o sacramento da Nova Aliança, em que se atualiza a ação redentora de Cristo (cf. Lc 22, 20). O alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver cada dia a aliança matrimonial como igreja doméstica.
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador
No matrimônio vive-se também o sentido de pertencer completamente a uma única pessoa. Os esposos assumem o desafio e o anseio de envelhecer e gastar-se juntos, e assim refletem a fidelidade de Deus. Esta firme decisão, que marca um estilo de vida, é uma exigência interior do pacto de amor conjugal, porque, quem não se decide a amar para sempre, é difícil que possa amar deveras um só dia. Mas isto não teria significado espiritual, se fosse apenas uma lei vivida com resignação. É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê (cf. Mt 5, 28). Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova diante de Deus esta decisão de fidelidade, suceda o que suceder ao longo do dia. E cada um, quando vai dormir, espera levantar-se para continuar esta aventura, confiando na ajuda do Senhor. Assim, cada cônjuge é para o outro sinal e instrumento da proximidade do Senhor, que não nos deixa sozinhos: Eu estarei sempre convosco, até ao fim dos tempos (Mt 28, 20).
Há um ponto em que o amor do casal alcança a máxima libertação e se torna um espaço de sã autonomia: quando cada um descobre que o outro não é seu, mas tem um proprietário muito mais importante, o seu único Senhor. Ninguém pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta da pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo, o princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro satisfaça completamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual de cada um o ajude a desiludir-se do outro, a deixar de esperar dessa pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de Deus. Isto exige um despojamento interior. O espaço exclusivo, que cada um dos cônjuges reserva para a sua relação pessoal com Deus, não só permite curar as feridas da convivência, mas possibilita também encontrar no amor de Deus o sentido da própria existência. Temos necessidade de invocar cada dia a ação do Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude, da consolação e do estímulo
Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé um para com o outro, para com os filhos e demais familiares. Deus convida-os a gerar e a cuidar. Por isso mesmo, a família foi desde sempre o “hospital” mais próximo. Prestemo-nos cuidados, apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como parte da nossa espiritualidade familiar. A vida em casal é uma participação na obra fecunda de Deus, e cada um é para o outro uma permanente provocação do Espírito. Por isso, querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só.

Toda a vida da família é um pastoreio misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha e escreve na vida do outro: A nossa carta sois vós, uma carta escrita nos nossos corações (...) não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo (2 Cor 3, 2-3). Cada um é um pescador de homens (Lc 5, 10) que, em nome de Jesus, lança as redes (Lc 5, 5) para os outros, ou um lavrador que trabalha nesta terra fresca que são os seus entes queridos, incentivando o melhor deles. Amar uma pessoa é esperar dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao mesmo tempo, proporcionar-lhe de alguma forma os meios para satisfazer tal expectativa. Isto é um culto a Deus, pois foi Ele que semeou muitas coisas boas nos outros, com a esperança de que as façamos crescer.
É uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade gratuita que permita apreciar a sua dignidade. É possível estar plenamente presente diante do outro, se uma pessoa se entrega gratuitamente, esquecendo tudo o que existe em redor. Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava nele o seu olhar, olhava com amor (Mc10, 21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois as suas palavras e gestos eram expressão desta pergunta: Que queres que te faça? (Mc 10, 51). Na vida familiar recordamos que a pessoa que vive conosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita por ser objeto do amor imenso do Pai.
Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar não só acolhe a vida gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si para derramar o seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar a sua felicidade. Esta abertura exprime-se particularmente na hospitalidade, que a Palavra de Deus encoraja de forma sugestiva: Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjo (Heb 13, 2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos pobres e abandonados, é símbolo, testemunho, participação da maternidade da Igreja. 
Conclusão
Com efeito, como recordamos várias vezes nesta Exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. Há um apelo constante que provém da comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade tão bela que é a família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do céu. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida.
Oração à Sagrada Família
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.

Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Amem.
-- resumo do capítulo 9 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

5 de set. de 2016

Sobre a educação dos filhos

Os pais incidem sempre, para bem ou para mal, no desenvolvimento moral dos seus filhos. Consequentemente, o melhor é aceitarem esta responsabilidade inevitável e realizarem-na de modo consciente, entusiasta, razoável e apropriado.
A família não pode renunciar a ser lugar de apoio, acompanhamento, guia, embora tenha de reinventar os seus métodos e encontrar novos recursos. Precisa considerar ao que a realidade quer expor os seus filhos. Sempre faz falta vigilância; o abandono nunca é sadio. Os pais devem orientar e alertar as crianças e os adolescentes para saberem enfrentar situações onde possa haver risco, por exemplo, de agressões, abuso ou consumo de droga.
A obsessão, porém, não é educativa; e também não é possível ter o controle de todas as situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se. Vale aqui o princípio de que “o tempo é superior ao espaço”, isto é, trata-se mais de gerar processos que de dominar espaços. Se um pai está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os seus movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia. Só assim este filho terá em si mesmo os elementos de que precisa para saber defender-se e agir com inteligência e cautela em circunstâncias difíceis. Assim, a grande questão não é onde está fisicamente o filho, com quem está neste momento, mas onde se encontra em sentido existencial, onde está posicionado do ponto de vista das suas convicções, dos seus objetivos, dos seus desejos, do seu projeto de vida.
É inevitável que cada filho nos surpreenda com os projetos que brotam da liberdade de escolha, que rompam os nossos esquemas; e é bom que isto aconteça. A educação envolve a tarefa de promover liberdades responsáveis, que saibam optar com sensatez e inteligência; pessoas que compreendam sem reservas que a sua vida e a vida da sua comunidade estão nas suas mãos e que esta liberdade é um dom imenso.
A formação ética dos filhos
O desenvolvimento afetivo e ético duma pessoa requer uma experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos de confiança. Quando um filho deixa de sentir que é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou deixa de notar que nutrem uma sincera preocupação por ele, isto cria feridas profundas que causam muitas dificuldades no seu amadurecimento.
A tarefa dos pais inclui uma educação da vontade e um desenvolvimento de hábitos bons e tendências afetivas para o bem. Isto implica que se apresentem como desejáveis os comportamentos a aprender e as tendências a fazer maturar. Para agir bem, não basta julgar de modo adequado ou saber com clareza aquilo que se deve fazer, embora isso seja prioritário. Uma formação ética válida implica mostrar à pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir bem. Muitas vezes é ineficaz pedir algo que exija esforço e renúncias, sem mostrar claramente o bem que se poderia alcançar com isso.
É necessário maturar hábitos. Uma pessoa pode possuir sentimentos sociáveis e uma boa disposição para com os outros, mas se não foi habituada durante muito tempo, por insistência dos adultos, a dizer “por favor”, “com licença”, “obrigado”, a tal boa disposição interior não se traduzirá facilmente nestas expressões. A virtude é uma convicção que se transformou num princípio interior e estável do agir. Assim, a vida virtuosa constrói a liberdade, fortifica-a e educa-a, evitando que a pessoa se torne escrava de inclinações compulsivas desumanizadoras e anti-sociais.
O valor da sanção como estímulo
De igual modo, é indispensável sensibilizar a criança e o adolescente para se darem conta de que as más ações têm consequências. É preciso despertar a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir pesar pelo seu sofrimento originado pelo mal que lhe fez. Algumas sanções – aos comportamentos anti-sociais agressivos – podem parcialmente cumprir esta finalidade. É importante orientar a criança, com firmeza, para que peça perdão e repare o mal causado aos outros.
A correção é um estímulo quando, ao mesmo tempo, se apreciam e reconhecem os esforços e quando o filho descobre que os seus pais conservam viva uma paciente confiança. Uma criança corrigida com amor sente-se tida em consideração, percebe que é alguém, dá-se conta de que seus pais reconhecem as suas potencialidades. Isto não exige que os pais sejam irrepreensíveis, mas que saibam reconhecer, com humildade, os seus limites e mostrem o seu esforço pessoal por ser melhores. Mas um testemunho de que os filhos precisam da parte dos pais, é que estes não se deixem levar pela ira. O filho, que comete uma má ação, deve ser corrigido, mas nunca como um inimigo ou como alguém sobre quem se descarrega a própria agressividade. Por isso, seria nociva uma atitude constantemente punitiva: Vós, pais, não exaspereis os vossos filhos (Ef 6, 4; cf. Col 3, 21).
Realismo paciente
A educação moral implica pedir a uma criança ou a um jovem apenas aquelas coisas que não representem, para eles, um sacrifício desproporcionado, exigir-lhes apenas aquela dose de esforço que não provoque ressentimento ou acções puramente forçadas. O percurso normal é propor pequenos passos que possam ser compreendidos, aceites e apreciados, e impliquem uma renúncia proporcionada. Caso contrário, pedindo demasiado, nada se obtém.
Quando se propõe os valores, é preciso fazê-lo pouco a pouco, avançar de maneira diferente segundo a idade e as possibilidades concretas das pessoas, sem pretender aplicar metodologias rígidas e imutáveis. A liberdade efetiva, real, é limitada e condicionada. Nem sempre se faz uma distinção adequada entre ato voluntário e ato livre. É o que acontece com um viciado: quando quer a droga, procura-a com todas as suas forças, mas está tão condicionado que não é capaz de tomar outra decisão. Portanto, a sua decisão é voluntária, mas não livre. Não tem sentido deixá-lo escolher livremente, porque, de fato, já não pode escolher. Precisa da ajuda dos outros e de um percurso educativo.
A vida familiar como contexto educativo
A família é a primeira escola dos valores humanos, onde se aprende o bom uso da liberdade. Há inclinações maturadas na infância, que impregnam o íntimo duma pessoa e permanecem toda a vida como uma inclinação favorável a um valor ou como uma rejeição espontânea de certos comportamentos. Muitas pessoas atuam a vida inteira duma determinada forma, porque consideram válida tal forma de agir, que assimilaram desde a infância, como que por osmose: “Fui criado assim”.
Na época atual, em que reina a ansiedade e a pressa tecnológica, uma tarefa importantíssima das famílias é educar para a capacidade de esperar. Quando as crianças ou os adolescentes não são educados para aceitar que algumas coisas devem esperar, tornam-se prepotentes, submetem tudo à satisfação das suas necessidades imediatas e crescem com o vício do tudo e agora. Este é um grande engano que não favorece a liberdade; antes, intoxica-a. Ao contrário, quando se educa para aprender a adiar algumas coisas e esperar o momento oportuno, ensina-se o que significa ser senhor de si mesmo, aut6onomo face aos seus próprios impulsos. Naturalmente isto não significa pretender das crianças que ajam como adultos, mas também não se deve subestimar a sua capacidade de crescer na maturação duma liberdade responsável. Numa família sã, esta aprendizagem realiza-se de forma normal através das exigências da convivência.
A família é o âmbito da socialização primária, porque é o primeiro lugar onde se aprende a relacionar-se com o outro, a escutar, partilhar, suportar, respeitar, ajudar, conviver. A tarefa educativa deve levar a sentir o mundo e a sociedade como ambiente familiar: é uma educação para saber habitar mais além dos limites da própria casa. No contexto familiar, ensina-se a recuperar a proximidade, o cuidado, a saudação. É lá que se rompe o primeiro círculo do egoísmo mortífero, fazendo-nos reconhecer que vivemos junto de outros, com outros, que são dignos da nossa atenção, da nossa gentileza, do nosso afeto.
O encontro educativo entre pais e filhos pode ser facilitado ou prejudicado pelas tecnologias de comunicação e distração, cada vez mais sofisticadas. Bem utilizadas, podem ser úteis para pôr em contato os membros da família, que vivem longe. Sabemos que, às vezes, estes meios afastam em vez de aproximar, por exemplo, na hora da refeição, cada um está concentrado no seu celular ou quando um dos cônjuges adormece à espera do outro que passa horas entretido com algum electrônico. Na família, também isto deve ser motivo de diálogo e de acordos que permitam dar prioridade ao encontro dos seus membros sem cair em proibições insensatas.
Mas também não é bom que os pais se tornem seres omnipotentes para seus filhos, de modo que estes só poderiam confiar neles, porque assim impedem um processo adequado de socialização e amadurecimento afectivo. Para favorecer uma educação integral, precisamos de reavivar a aliança entre a família e a comunidade cristã. Para isso deve-se afirmar resolutamente a liberdade da Igreja ensinar a própria doutrina e o direito à objeção de consciência por parte dos educadores.
Sim à educação sexual
O Concílio Vaticano II apresentava a necessidade de uma educação sexual positiva e prudente oferecida às crianças e adolescentes à medida que vão crescendo. A sexualidade se poderia entender no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua; assim, a linguagem da sexualidade não acabaria tristemente empobrecida, mas esclarecida. É possível cultivar o impulso sexual num percurso de conhecimento de si mesmo e no desenvolvimento duma capacidade de autodomínio, que podem ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de alegria e encontro amoroso.
A educação sexual oferece informação, mas sem esquecer que as crianças e os jovens ainda não alcançaram plena maturidade. A informação deve chegar no momento apropriado e de forma adequada à fase que vivem. Não é útil saturá-los de dados, sem o desenvolvimento do sentido crítico perante uma invasão de propostas, perante a pornografia descontrolada e a sobrecarga de estímulos que podem mutilar a sexualidade. Tem um valor imenso uma educação sexual que cuide um são pudor, embora hoje alguns considerem que é questão doutros tempos. É uma defesa natural da pessoa que resguarda a sua interioridade e evita ser transformada em mero objeto. Sem o pudor, podemos reduzir o afeto e a sexualidade a obsessões que nos concentram apenas nos órgãos genitais, em morbosidades que deformam a nossa capacidade de amar e em várias formas de violência sexual que nos levam a ser tratados de forma desumana ou a prejudicar os outros.
É preciso não enganar os jovens, levando-os a confundir os planos: a atração cria, por um momento, a ilusão da “união”, mas, sem amor, tal união deixa os desconhecidos tão separados como antes. A linguagem do corpo requer uma aprendizagem paciente que permita interpretar e educar os próprios desejos em ordem a uma entrega de verdade. Quando se pretende entregar tudo duma vez, é provável que não se entregue nada.
Transmitir a fé
A educação dos filhos deve estar marcada por um percurso de transmissão da fé, que se vê dificultado pelo estilo de vida atual, pelos horários de trabalho, pela complexidade do mundo atual, onde muitos têm um ritmo frenético para poder sobreviver. Apesar disso, a família deve continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as razões e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo. Isto começa no batismo, onde – como dizia Santo Agostinho – as mães que levam os seus filhos cooperam no parto santo. Depois tem início o percurso de crescimento desta vida nova. A fé é dom de Deus, recebido no batismo, e não o resultado duma ação humana; mas os pais são instrumentos de Deus para a sua maturação e desenvolvimento. A transmissão da fé pressupõe que os pais vivam a experiência real de confiar em Deus, de O procurar, de precisar d’Ele, porque só assim “cada geração contará à seguinte o louvor das obras [de Deus] e todos proclamarão as [Suas] proezas” (Sl 145/144, 4) e “o pai dará a conhecer aos seus filhos a [Sua] fidelidade” (Is 38, 19). Isto requer que imploremos a ação de Deus nos corações, aonde não podemos chegar. O grão de mostarda, semente tão pequenina, transforma-se num grande arbusto (Mt 13, 31-32), e, deste modo, reconhecemos a desproporção entre a ação e o seu efeito.
As crianças precisam de símbolos, gestos, narrações. É fundamental que os filhos vejam de maneira concreta que, para os seus pais, a oração é realmente importante. Por isso, os momentos de oração em família e as expressões da piedade popular podem ter mais força evangelizadora do que todas as catequeses e todos os discursos. Quero exprimir a minha gratidão de forma especial a todas as mães que rezam incessantemente, como fazia Santa Mônica, pelos filhos que se afastaram de Cristo.
Os filhos que crescem em famílias missionárias, frequentemente tornam-se missionários, se os pais sabem viver esta tarefa duma maneira tal que os outros os sintam vizinhos e amigos, de tal modo que os filhos cresçam neste estilo de relação com o mundo, sem renunciar à sua fé nem às suas convicções. Lembremo-nos que o próprio Jesus comia e bebia com os pecadores (Mc 2, 16; Mt 11, 19), podia deter-se a conversar com a Samaritana (Jo 4, 7-26) e receber de noite Nicodemos Jo 3, 1-21), deixava ungir os seus pés por uma mulher prostituta (Lc 7, 36-50) e não hesitava em tocar os doentes (Mc 1, 40-45; 7, 33). E o mesmo faziam os seus apóstolos, que não eram pessoas desprezadoras dos outros, fechadas em pequenos grupos de eleitos, isoladas da vida do seu povo. Enquanto as autoridades os perseguiam, eles gozavam da simpatia de todo o povo (At 2, 47; 4, 21.33; 5, 13).
A transmissão da fé deve ser feita no contexto da convicção mais preciosa dos cristãos: o amor do Pai que nos sustenta e faz crescer, manifestado no dom total de Jesus Cristo, vivo no meio de nós, que nos torna capazes de enfrentar, unidos, todas as tempestades e todas as etapas da vida. E, no coração de cada família, deve ressoar também o querigma, a tempo e fora de tempo, para iluminar o caminho. Todos deveríamos poder dizer, a partir da vivência nas nossas famílias: Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele (1Jo 4, 16). Só a partir desta experiência é que a pastoral familiar poderá conseguir que as famílias sejam simultaneamente igrejas domésticas e fermento evangelizador na sociedade.

-- resumo do capítulo 7 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

27 de ago. de 2016

A Pastoral Familiar

 A Igreja insiste no fato de que as famílias cristãs são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo o testemunho dos cônjuges e das famílias. Para isso é preciso fazer os casais experimentar que o Evangelho da família é alegria que enche o coração e a vida inteira, porque, em Cristo, somos libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. À luz da parábola do semeador (Mt 13, 3-9), a tarefa consiste em cooperar na sementeira: o resto é obra de Deus.
Por isso exige-se a toda a Igreja uma conversão missionária: é preciso não se contentar com um anúncio puramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas. A pastoral familiar deve fazer experimentar que o Evangelho da família é resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e plena realização na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma normativa, mas de propor valores, correspondendo à necessidade deles que se constata hoje, mesmo nos países mais secularizados.
A principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias, onde se harmonizam os contributos das pequenas comunidades, movimentos e associações eclesiais.
Guiar os noivos no caminho de preparação para o matrimônio
É preciso ajudar os jovens a descobrir o valor e a riqueza do matrimônio. Devem poder captar o fascínio duma união plena que eleva e aperfeiçoa a dimensão social da vida, confere à sexualidade o seu sentido maior, ao mesmo tempo que promove o bem dos filhos e lhes proporciona o melhor contexto para o seu amadurecimento e educação. A complexa realidade social que a família é chamada a enfrentar atualmente, exige um empenho maior de toda a comunidade na preparação dos noivos para o matrimônio. 
Há várias maneiras legítimas de organizar a preparação próxima para o matrimônio e cada Igreja local discernirá a que for melhor, procurando uma formação adequada. Não se trata de lhes ministrar o Catecismo inteiro nem de os saturar com demasiados temas, devendo-se dar prioridade a um renovado anúncio do querigma – conteúdos que, comunicados de forma atraente e cordial, os ajudem a comprometer-se num percurso da vida toda com ânimo grande e liberalidade. Habitualmente são muito úteis os grupos de noivos e a oferta de palestras opcionais sobre uma variedade de temas que realmente interessam aos jovens. Entretanto são indispensáveis alguns momentos personalizados, dado que o objetivo principal é ajudar cada um a aprender a amar esta pessoa concreta com quem pretende partilhar a vida inteira, incluindo também a possibilidade de individuar incompatibilidades e riscos.
Deve ser possível, também, detectar os sinais de perigo que poderá apresentar a relação, para se encontrar, antes do matrimônio, os meios que permitam enfrentá-los com bom êxito. Infelizmente, muitos chegam às núpcias sem se conhecer. Limitaram-se a divertir-se juntos, a fazer experiências juntos, mas não enfrentaram o desafio de se manifestar a si mesmos e aprender quem é realmente o outro.
Deve-se procurar que os noivos não considerem o matrimônio como o fim do caminho, mas o assumam como uma vocação que os lança para diante, com a decisão firme e realista de atravessarem juntos todas as provações e momentos difíceis.
A preparação da celebração
A preparação próxima do matrimônio tende a concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes que consomem tanto os recursos econômicos como as energias e a alegria. Na preparação mais imediata é importante esclarecer os noivos para viverem com grande profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os a compreender e viver o significado de cada gesto. Lembremo-nos de que um compromisso tão grande como este expresso no consentimento matrimonial e a união dos corpos que consuma o matrimónio só podem ser interpretados como sinal do amor do Filho, Deus feito carne, em matrimôonio com a sua Igreja, uma aliança de amor.
Às vezes, os noivos não percebem o peso teológico e espiritual do consentimento, que ilumina o significado de todos os gestos sucessivos. É necessário salientar que aquelas palavras não podem ser reduzidas ao presente; implicam uma totalidade que inclui o futuro: “até que a morte vos separe”.
Também se pode meditar com as leituras bíblicas e enriquecer a compreensão do significado das alianças que trocam entre si, ou doutros sinais que fazem parte do rito. Mas não seria bom os noivos chegarem ao matrimônio sem ter rezado juntos, um pelo outro, pedindo ajuda a Deus para serem fiéis e generosos, perguntando juntos a Deus que espera deles, e inclusive consagrando o seu amor diante duma imagem de Maria.
Acompanhamento nos primeiros anos da vida matrimonial
Temos de reconhecer como um grande valor que se compreenda que o matrimônio é uma questão de amor: só se podem casar aqueles que se escolhem livremente e se amam. Apesar disso, se o amor se reduzir a mera atração ou a uma vaga afetividade, isto faz com que os cônjuges sofram duma extraordinária fragilidade quando entram em crise ou a atração física diminui. A união é real, é irrevogável e foi confirmada e consagrada pelo sacramento; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas, senhores da sua própria história e criadores dum projeto que deve ser levado para a frente conjuntamente. O “sim” que deram um ao outro é o início dum itinerário cujo objetivo se propõe superar as circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A bênção recebida é uma graça e um impulso para este caminho sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu projeto concreto com os seus objetivos, meios e detalhes.
Uma das causas que leva a rupturas matrimoniais é ter expectativas demasiado altas sobre a vida conjugal. Quando se descobre a realidade mais limitada e problemática do que se sonhara, a solução não é pensar imediata e irresponsavelmente na separação, mas assumir o matrimônio como um caminho de amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um instrumento de Deus para fazer crescer o outro. É possível a mudança, o crescimento, o desenvolvimento das potencialidades boas que cada um traz dentro de si. Cada matrimónio é uma história de salvação, o que supõe partir duma fragilidade que, graças ao dom de Deus e a uma resposta criativa e generosa, pouco a pouco vai dando lugar a uma realidade cada vez mais sólida e preciosa. Talvez a maior missão dum homem e duma mulher no amor seja esta: a de se tornarem, um ao outro, mais homem e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro a moldar-se na sua própria identidade.
O acompanhamento deve encorajar os esposos a serem generosos na comunicação da vida. Neste sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae  e a Exortação apostólica Familiaris consortio. A opção da paternidade responsável pressupõe a formação da consciência que é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Quanto mais procurarem os esposos ouvir a Deus e os seus mandamentos (Rm 2,15) e se fizerem acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será intimamente livre de um arbítrio subjetivo e da acomodação às modas de comportamento no seu ambiente.
Alguns recursos
Os primeiros anos de matrimônio são um período vital e delicado, durante o qual os cônjuges crescem na consciência dos desafios e do significado do matrimónio. Tem grande importância a presença de casais de esposos com experiência. Os esposos que têm uma boa experiência podem oferecer os instrumentos práticos que lhes foram úteis: a programação dos momentos para estar juntos sem nada exigir, os tempos de recreação com os filhos, as várias maneiras de celebrar coisas importantes, os espaços de espiritualidade partilhada.
O desafio das crises
A história duma família está marcada por crises de todo o gênero, que são parte também da sua dramática beleza. É preciso ajudar a descobrir que uma crise superada não leva a uma relação menos intensa, mas a melhorar, sedimentar e maturar o vinho da união. Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem que permite incrementar a intensidade da vida comum ou, pelo menos, encontrar um novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se resignar de modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável deterioração, a uma mediocridade que se tem de suportar. Cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração.
Há crises comuns que costumam verificar-se em todos os matrimônios, como a crise ao início quando é preciso aprender a conciliar as diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise da chegada do filho, com os seus novos desafios emotivos; a crise de educar uma criança, que altera os hábitos do casal; a crise da adolescência do filho, que exige muitas energias, desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre si; a crise do "ninho vazio", que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no outro; a crise causada pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais presença, solicitude e decisões difíceis.
A estas crises, vêm juntar-se as crises pessoais com incidência no casal, relacionadas com dificuldades econômicas, laborais, afetivas, sociais e espirituais. Algumas famílias sucumbem quando os cônjuges se culpam mutuamente, mas a experiência mostra que, com uma ajuda adequada e com a ação de reconciliação da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais é superada de forma satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental na vida familiar.
Tornou-se frequente que, quando um cônjuge sente que não recebe o que deseja, ou não se realiza o que sonhava, isso lhe pareça ser suficiente para pôr fim ao matrimônio. Mas, assim não haverá matrimônio que dure. Nestas circunstâncias, alguns têm a maturidade necessária para voltar a escolher o outro como companheiro de estrada, para além dos limites da relação, e aceitam com realismo que não se possam satisfazer todos os sonhos acalentados. Evitam considerar-se os únicos mártires, apreciam as pequenas ou limitadas possibilidades que lhes oferece a vida em família e apostam em fortalecer o vínculo numa construção que exigirá tempo e esforço. No fundo, reconhecem que cada crise é como um novo “sim” que torna possível o amor renascer reforçado, transfigurado, amadurecido, iluminado. A partir duma crise, tem-se a coragem de buscar as raízes profundas do que está a suceder, de voltar a negociar os acordos fundamentais, de encontrar um novo equilíbrio e de percorrer juntos uma nova etapa.
Velhas feridas
É compreensível que, nas famílias, haja muitas dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a sua maneira de relacionar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua vida. As vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. Outras vezes ama-se com um amor da adolescência, caraterizado pelo confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.
Muitos terminam a sua infância sem nunca se terem sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reaparece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer um percurso de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges não funciona bem, convém assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria história. Cada um deve ser muito sincero consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que toda a culpa seja do outro, nunca é possível superar uma crise esperando que apenas o outro mude. É preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do conflito.
Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios
Nalguns casos, a consideração da própria dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite firme às pretensões excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma falta de respeito que se tornou crônica. É preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela violência, humilhação e a exploração, alienação e a indiferença. Mas deve ser considerado um remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas razoáveis.
É indispensável um discernimento particular para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os abandonados. Tem-se de acolher e valorizar sobretudo a angústia daqueles que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou então foram obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência. Não é fácil o perdão pela injustiça sofrida, mas constitui um caminho que a graça torna possível.
Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que não estão excomungadas nem são tratadas como tais, porque sempre integram a comunhão eclesial.
A Igreja não pode cessar de ser a voz dos mais frágeis: os filhos, que sofrem muitas vezes em silêncio. Hoje, não obstante a nossa sensibilidade aparentemente evoluída e todas as nossas análises psicológicas refinadas, pergunto-me se não nos entorpecemos também relativamente às feridas da alma das crianças. Sentimos nós o peso da montanha que esmaga a alma duma criança, nas famílias onde se maltrata e magoa, até quebrar o vínculo da fidelidade conjugal? Tais experiências não ajudam estas crianças a amadurecer para serem capazes de compromissos definitivos. Ajudar a curar as feridas dos pais e sustentá-los espiritualmente é bom também para os filhos, que precisam do rosto familiar da Igreja que os ampare nesta experiência traumática. O divórcio é um mal e é muito preocupante o aumento do número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais importante relativamente às famílias é reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo.
Algumas situações complexas
Os matrimônios com disparidade de culto constituem um lugar privilegiado de diálogo inter-religioso. Comportam algumas dificuldades especiais quer em relação à identidade cristã da família quer quanto à educação religiosa dos filhos. É necessário prestar uma atenção particular às pessoas que se unem em tais matrimônio, e não só no período anterior ao casamento. Enfrentam desafios peculiares os casais e as famílias, nos quais um dos cônjuges é católico e o outro não-crente. Em tais casos, é necessário testemunhar a capacidade que tem o Evangelho de mergulhar nestas situações para tornar possível a educação dos filhos na fé cristã.
No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, destacou-se quanto aos projetos de equiparação ao matrimônio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família.
As famílias monoparentais têm frequentemente origem a partir de mães ou pais biológicos que nunca quiseram integrar-se na vida familiar. Seja qual for a causa, o progenitor que vive com a criança deve encontrar apoio e conforto nas outras famílias que formam a comunidade cristã.
Quando a morte crava o seu aguilhão
Compreendo a angústia de quem perdeu uma pessoa muito amada, um cônjuge com quem se partilhou tantas coisas. O próprio Jesus Se comoveu e chorou no velório dum amigo (Jo 11, 33.35). E como não compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito, é como se o tempo parasse: abre-se um abismo que engole o passado e também o futuro. E às vezes chega-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas – compreendo-as – se chateiam com Deus. A viuvez é uma experiência particularmente difícil. Alguns, quando têm de viver esta experiência, mostram que sabem fazer convergir as suas energias para uma dedicação ainda maior aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de amor uma nova missão educativa. Aqueles que já não podem contar com a presença de familiares a quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-los com particular atenção e disponibilidade.
Consola-nos saber que não se verifica a destruição total dos que morrem, e a fé assegura-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte envenene a nossa vida, torne vãos os nossos afectos e nos faça cair no vazio mais escuro. A Bíblia fala de um Deus que nos criou por amor, e fez-nos duma maneira tal que a nossa vida não termina com a morte (Sab 3, 2-3). São Paulo fala-nos dum encontro com Cristo imediatamente depois da morte: tenho o desejo de partir e estar com Cristo (Flp 1, 23). Com Ele, espera-nos depois da morte aquilo que Deus preparou para aqueles que O amam (1Cor 2, 9). De forma muito bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: Se a certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade. Para os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma». Com efeito, «os nossos entes queridos não desapareceram nas trevas do nada: a esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e vigorosas de Deus.
Uma maneira de comunicarmos com os seres queridos que morreram é rezar por eles. Diz a Bíblia que rezar pelos mortos é santo e piedoso (2Mac 12, 44.45). Rezar por eles pode não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão em nosso favor. O Apocalipse apresenta os mártires a interceder pelos que sofrem injustiça na terra (cf. 6, 9-11), solidários com este mundo em caminho. Alguns Santos, antes de morrer, consolavam os seus entes queridos, prometendo-lhes que estariam perto ajudando-os. Santa Teresa de Lisieux sentia vontade de continuar, do Céu, a fazer bem. E São Domingos afirmava que seria mais útil, depois de morto, mais poderoso para obter graças.

Se aceitarmos a morte, podemos preparar-nos para ela. O caminho é crescer no amor para com aqueles que caminham conosco, até ao dia em que não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor (Ap 21, 4). Deste modo preparar-nos-emos também pera reencontrar os nossos entes queridos que morreram. Assim como Jesus entregou o filho que tinha morrido à sua mãe (Lc 7, 15), de forma semelhante procederá conosco. Não gastemos energias, detendo-nos anos e anos no passado. Quanto melhor vivermos nesta terra, tanto maior felicidade poderemos partilhar com os nossos entes queridos no céu. Quanto mais conseguirmos amadurecer e crescer, tanto mais poderemos levar-lhes coisas belas para o banquete celeste.
-- resumo do capítulo 6 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

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