24 de set. de 2016

Espiritualidade Familiar

O amor assume matizes diferentes, segundo o estado de vida a que cada um foi chamado. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho de santificação na vida diária e de crescimento místico, um meio para a união íntima com Deus. Com efeito, as exigências fraternas e comunitárias da vida em família são uma ocasião para abrir cada vez mais o coração, e isto torna possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de Deus, que quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas (1 Jo 2, 11), permanece na morte (1 Jo 3, 14) e não chegou a conhecer a Deus (1 Jo 4, 8). O meu antecessor, Bento XVI, disse que “o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus” e que, fundamentalmente, o amor é a única luz que ilumina incessantemente um mundo às escuras. Somente se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós (1 Jo 4, 12). Dado que a pessoa humana tem uma inata e estrutural dimensão social e a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a família, a espiritualidade encarna-se na comunhão familiar. Por isso, aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística.
Unidos em oração à luz da Páscoa
Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos. Nos dias amargos da família, há uma união com Jesus abandonado, que pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam pouco a pouco, com a graça do Espírito Santo, a sua santidade através da vida matrimonial, participando também no mistério da cruz de Cristo, que transforma as dificuldades e os sofrimentos em oferta de amo. Por outro lado, os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua Ressurreição.
A oração em família é um meio privilegiado para exprimir e reforçar esta fé pascal. Podem-se encontrar alguns minutos cada dia para estar unidos na presença do Senhor vivo, dizer-Lhe as coisas que nos preocupam, rezar pelas necessidades familiares, orar por alguém que está a atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar, dar-Lhe graças pela vida e as coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com o seu manto de Mãe. Com palavras simples, este momento de oração pode fazer muito bem à família. O caminho comunitário de oração atinge o seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no dia do descanso dominical. Jesus bate à porta da família, para partilhar com ela a Ceia Eucarística (Ap 3, 20). Aqui, os esposos podem voltar incessantemente a selar a aliança pascal que os uniu e reflete a Aliança que Deus selou com a humanidade na Cruz. A Eucaristia é o sacramento da Nova Aliança, em que se atualiza a ação redentora de Cristo (cf. Lc 22, 20). O alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver cada dia a aliança matrimonial como igreja doméstica.
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador
No matrimônio vive-se também o sentido de pertencer completamente a uma única pessoa. Os esposos assumem o desafio e o anseio de envelhecer e gastar-se juntos, e assim refletem a fidelidade de Deus. Esta firme decisão, que marca um estilo de vida, é uma exigência interior do pacto de amor conjugal, porque, quem não se decide a amar para sempre, é difícil que possa amar deveras um só dia. Mas isto não teria significado espiritual, se fosse apenas uma lei vivida com resignação. É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê (cf. Mt 5, 28). Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova diante de Deus esta decisão de fidelidade, suceda o que suceder ao longo do dia. E cada um, quando vai dormir, espera levantar-se para continuar esta aventura, confiando na ajuda do Senhor. Assim, cada cônjuge é para o outro sinal e instrumento da proximidade do Senhor, que não nos deixa sozinhos: Eu estarei sempre convosco, até ao fim dos tempos (Mt 28, 20).
Há um ponto em que o amor do casal alcança a máxima libertação e se torna um espaço de sã autonomia: quando cada um descobre que o outro não é seu, mas tem um proprietário muito mais importante, o seu único Senhor. Ninguém pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta da pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo, o princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro satisfaça completamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual de cada um o ajude a desiludir-se do outro, a deixar de esperar dessa pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de Deus. Isto exige um despojamento interior. O espaço exclusivo, que cada um dos cônjuges reserva para a sua relação pessoal com Deus, não só permite curar as feridas da convivência, mas possibilita também encontrar no amor de Deus o sentido da própria existência. Temos necessidade de invocar cada dia a ação do Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude, da consolação e do estímulo
Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé um para com o outro, para com os filhos e demais familiares. Deus convida-os a gerar e a cuidar. Por isso mesmo, a família foi desde sempre o “hospital” mais próximo. Prestemo-nos cuidados, apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como parte da nossa espiritualidade familiar. A vida em casal é uma participação na obra fecunda de Deus, e cada um é para o outro uma permanente provocação do Espírito. Por isso, querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só.

Toda a vida da família é um pastoreio misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha e escreve na vida do outro: A nossa carta sois vós, uma carta escrita nos nossos corações (...) não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo (2 Cor 3, 2-3). Cada um é um pescador de homens (Lc 5, 10) que, em nome de Jesus, lança as redes (Lc 5, 5) para os outros, ou um lavrador que trabalha nesta terra fresca que são os seus entes queridos, incentivando o melhor deles. Amar uma pessoa é esperar dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao mesmo tempo, proporcionar-lhe de alguma forma os meios para satisfazer tal expectativa. Isto é um culto a Deus, pois foi Ele que semeou muitas coisas boas nos outros, com a esperança de que as façamos crescer.
É uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade gratuita que permita apreciar a sua dignidade. É possível estar plenamente presente diante do outro, se uma pessoa se entrega gratuitamente, esquecendo tudo o que existe em redor. Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava nele o seu olhar, olhava com amor (Mc10, 21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois as suas palavras e gestos eram expressão desta pergunta: Que queres que te faça? (Mc 10, 51). Na vida familiar recordamos que a pessoa que vive conosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita por ser objeto do amor imenso do Pai.
Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar não só acolhe a vida gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si para derramar o seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar a sua felicidade. Esta abertura exprime-se particularmente na hospitalidade, que a Palavra de Deus encoraja de forma sugestiva: Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjo (Heb 13, 2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos pobres e abandonados, é símbolo, testemunho, participação da maternidade da Igreja. 
Conclusão
Com efeito, como recordamos várias vezes nesta Exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. Há um apelo constante que provém da comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade tão bela que é a família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do céu. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida.
Oração à Sagrada Família
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.

Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Amem.
-- resumo do capítulo 9 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

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