O matrimônio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua
Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher,
que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade,
se pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida,
consagrados pelo sacramento que lhes confere a graça para se
constituírem como igreja doméstica e serem fermento de vida nova
para a sociedade. Algumas formas de união contradizem radicalmente
este ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de forma parcial e
analógica.
A gradualidade na pastoral
Os Padres consideraram também a situação particular de um
matrimônio apenas civil ou da mera convivência: quando a união
atinge uma notável estabilidade através dum vínculo público e se
caracteriza por um afeto profundo, responsabilidade para com a prole,
capacidade de superar as provas, pode ser vista como uma ocasião a
acompanhar na sua evolução para o sacramento do matrimônio.
Muitas vezes a escolha do matrimônio civil ou, em diversos casos, da
simples convivência não é motivada por preconceitos ou relutância
face à união sacramental, mas por situações culturais ou
contingentes. Nestas situações, poderão ser valorizados aqueles
sinais de amor que refletem de algum modo o amor de Deus. Muitas
vezes, escolhe-se a simples convivência por causa da mentalidade
geral contrária às instituições e aos compromissos definitivos,
mas também porque se espera adquirir maior segurança existencial
(emprego e salário fixo). Mas é preciso enfrentar todas
estas situações de forma construtiva, procurando transformá-las em
oportunidades de caminho para a plenitude do matrimônio e da família
à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com
paciência e delicadeza.
Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada lei da
gradualidade, não uma gradualidade da lei, mas uma
gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que
não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar
plenamente as exigências objectivas da lei. Com efeito, também a
lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem
excepção, que se pode viver com a força da graça, embora cada ser
humano avance gradualmente com a progressiva integração dos dons
de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a
vida pessoal e social.
O discernimento das situações chamadas irregulares
Quero lembrar aqui uma coisa que propus a toda a Igreja para não nos
equivocarmos no caminho: O caminho da Igreja, desde o Concílio de
Jerusalém, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia
e da integração. O caminho da Igreja é o de não condenar ninguém;
derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem
com coração sincero. Porque a caridade verdadeira é sempre
imerecida, incondicional e gratuita.
Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a
sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que
se sinta objeto duma misericórdia imerecida, incondicional e
gratuita. Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta
não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados
que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em
que se encontrem. Obviamente, se alguém ostenta um pecado objetivo
como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor algo diferente
do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar
e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (Mt 18,
17). Precisa-se voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à
conversão.
Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem
encontrar-se em situações muito diferentes. Uma
coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão,
consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade
para voltar atrás sem sentir que se cairia em
novas culpas. Há também o caso daqueles que fizeram grandes
esforços para salvar o primeiro matrimônio e sofreram um abandono
injusto, ou o caso daqueles que contraíram uma segunda união e, às
vezes, estão certos em consciência de que o precedente matrimônio,
irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido. Coisa
diferente, porém, é uma nova união que vem de um divórcio
recente, com todas as consequências de sofrimento e confusão que
afetam os filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém que
faltou repetidamente aos seus compromissos familiares.
Quanto aos batizados, a lógica da integração é a chave do
acompanhamento pastoral, para todos saberem que não só pertencem ao
Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo
uma experiência feliz e fecunda. São batizados, são irmãos e
irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de
todos. Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e
maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que
sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho
da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária também para
o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser
considerados o elemento mais importante.
Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações
concretas, é possível apenas um novo encorajamento a um responsável
discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria
reconhecer: uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em
todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não
devem necessariamente ser sempre os mesmos. Os sacerdotes têm o
dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do
discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do
bispo.
Neste processo, será útil fazer um exame de consciência,
através de momentos de reflexão e arrependimento. Os divorciados
novamente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os
seus filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve
tentativas de reconciliação; como é a situação do cônjuge
abandonado; que consequências têm a nova relação sobre o resto da
família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos
jovens que se devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão
sincera pode reforçar a confiança na misericórdia de Deus que não
é negada a ninguém. Para que isto aconteça, devem garantir-se as
necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e
à sua doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de
chegar a uma resposta mais perfeita à mesma. Estas atitudes são
fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como
a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente “exceções”,
ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em
troca de favores.
As circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral
Para se entender adequadamente por que é possível e necessário um
discernimento especial nalgumas situações chamadas “irregulares”,
há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se
pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja
possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as
circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que
todos os que estão numa situação chamada “irregular”
vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante.
São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a
caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma das virtudes, pelo
que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta
com clareza a existência de alguma delas.
São Tomás de Aquino |
A propósito, o Catecismo da Igreja Católica (p.1735)
exprime-se de maneira categórica: A imputabilidade e
responsabilidade dum ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela
ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as
afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais. Por
esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não
implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa
envolvida. No contexto destas convicções, considero muito
apropriado aquilo que muitos Padres sinodais afirmaram que em
determinadas circunstâncias, as pessoas encontram grandes
dificuldades para agir de maneira diferente. As próprias
consequências dos atos praticados não são necessariamente as
mesmas em todos os casos.
Devemos incentivar o amadurecimento duma consciência
esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e
sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça.
Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não
corresponde objetivamente à proposta do Evangelho, mas reconhecer
também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a
resposta generosa que se pode oferecer a Deus, embora não seja ainda
plenamente o ideal objetivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este
discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas
etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal
de forma mais completa.
As normas e o discernimento
É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa
corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta
para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência
concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos
sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino: Embora nos
princípios gerais tenhamos o caráter necessário, todavia à
medida que se abordam os casos particulares, aumenta a
indeterminação. Quanto mais se desce ao particular, tanto
mais aumenta a indeterminação. É verdade que as normas
gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar,
mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as
situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que,
precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento
prático da situação particular não pode ser elevado à
categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística
insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem
preservar com particular cuidado.
Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando
leis morais àqueles que vivem em situações irregulares, como se
fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos
corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás
dos ensinamentos da Igreja para se sentar na cátedra de Moisés e
julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos
difíceis e as famílias feridas. Por causa dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma
situação objetiva de pecado – subjetivamente não seja
culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de
Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de
caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja. O discernimento
deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a
Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja
branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do
crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão
glória a Deus.
Acima de tudo, mantende
entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão de
pecados (1 Ped 4, 8); redime o teu pecado pela justiça;
e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes (Dn 4,
24); a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado
(Eclo 3, 30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: Tal
como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o
apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque,
da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos
proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia,
alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e
da qual podemos tomar a água para extinguir o incêndio.
Santo Agostinho |
A lógica da misericórdia pastoral
Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo
algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimônio,
o projeto de Deus em toda a sua grandeza. É preciso encorajar os
jovens batizados para não hesitarem perante a riqueza que o
sacramento do matrimônio oferece aos seus projetos de amor, com a
força do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de
participar plenamente na vida da Igreja. A tibieza, qualquer
forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de propor o
sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também uma
falta de amor da Igreja pelos próprios jovens.
Todavia, da nossa consciência do peso das circunstâncias
atenuantes, conclui-se que, é preciso acompanhar, com misericórdia
e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se
vão construindo dia após dia, dando lugar à misericórdia do
Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Compreendo
aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a
confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma
Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade:
uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina
objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de
sujar-se com a lama da estrada. Os pastores, que propõem aos fiéis
o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los
também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e
evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O
próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos (Mt 7,
1; Lc 6, 37).
A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração
pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à
mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do
Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. Ela
bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta como Pastor de cem
ovelhas, não de noventa e nove; e quer tê-las todas.
Não podemos esquecer que a misericórdia não é apenas o agir do
Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus
verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia,
porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco. A coluna que
suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a ação pastoral
deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes;
no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser
desprovido de misericórdia. Por isso, convém sempre considerar inadequada qualquer
concepção teológica que, em última instância, ponha em dúvida a
própria omnipotência de Deus e, especialmente, a sua misericórdia.
Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem de desenvolver
uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos temas mais
delicados, situando-nos, antes, no contexto dum discernimento
pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para
compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta
é a lógica que deve prevalecer na Igreja, para fazer a experiência
de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias
existenciais.
-- resumo do capítulo 8 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco
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