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23 de abr. de 2025

A Última Mensagem do Papa Francisco


Esta é a mensagem Urbi et Orbi, a cidade de Roma e para todo mundo, escrita pelo Papa Francisco para o Domingo de Pásoca (20 de Abril de 2025). No dia seguinte ele faleceu, logo estes são os seus últimos ensinamentos: 


Cristo ressuscitou, aleluia!

Queridos irmãos e irmãs, Feliz Páscoa!

Hoje, finalmente, o canto do Aleluia volta a ouvir-se na Igreja, passando de boca em boca, de coração em coração, e isto faz com que o povo de Deus no mundo inteiro derrame lágrimas de alegria.

Do túmulo vazio em Jerusalém, ouvimos uma boa notícia inesperada: Jesus, que foi crucificado, "não está aqui, ressuscitou" (Lucas 24,5). Jesus não está no túmulo, ele está vivo!

O amor triunfou sobre o ódio, a luz sobre as trevas e a verdade sobre a falsidade. O perdão triunfou sobre a vingança. O mal não desapareceu da história; permanecerá até o fim, mas não terá mais vantagem; já não tem poder sobre aqueles que aceitam a graça deste dia.

Irmãs e irmãos, especialmente aqueles que experimentam dor e tristeza, o seu grito silencioso foi ouvido e as suas lágrimas foram contadas; nenhum deles foi perdido! Na paixão e morte de Jesus, Deus tomou sobre si todo o mal deste mundo e na sua infinita misericórdia o derrotou. Ele arrancou o orgulho diabólico que envenena o coração humano e espalha violência e corrupção por todos os lados. O Cordeiro de Deus é vitorioso! É por isso que hoje podemos gritar com alegria: “Cristo, nossa esperança, ressuscitou!” (Sequência de Páscoa).

A ressurreição de Jesus é de fato a base da nossa esperança. Pois à luz deste acontecimento, a esperança já não é uma ilusão. Graças a Cristo — crucificado e ressuscitado — a esperança não decepciona! Spes non confundit! (Romanos 5:5). Essa esperança não é uma evasão, mas um desafio; não ilude, mas nos capacita.

Todos aqueles que colocam sua esperança em Deus colocam suas mãos fracas em sua mão forte e poderosa; deixaram-se elevar e partiram em viagem. Juntamente com Jesus Ressuscitado, tornam-se peregrinos de esperança, testemunhas da vitória do amor e da força desarmada da Vida.

Cristo ressuscitou! Estas palavras captam todo o sentido da nossa existência, pois não fomos feitos para a morte, mas para a vida. Páscoa é a celebração da vida! Deus nos criou para a vida e quer que a família humana ressuscite! Aos seus olhos, toda vida é preciosa! A vida de uma criança no ventre da mãe, bem como a vida dos idosos e dos doentes, que em cada vez mais países são vistos como pessoas a serem descartadas.

Que grande sede de morte, de matar, testemunhamos todos os dias nos numerosos conflitos que assolam as diversas partes do nosso mundo! Quanta violência vemos, muitas vezes até dentro das famílias, dirigida contra mulheres e crianças! Quanto desprezo às vezes é despertado em relação aos vulneráveis, aos marginalizados e aos migrantes!

Neste dia, gostaria que todos nós renovássemos a esperança e reavivássemos a confiança nos outros, inclusive naqueles que são diferentes de nós, ou que vêm de terras distantes, trazendo costumes, modos de vida e ideias desconhecidos! Pois todos nós somos filhos de Deus!

Gostaria que renovássemos a nossa esperança de que a paz é possível! Do Santo Sepulcro, Igreja da Ressurreição, onde este ano a Páscoa é celebrada no mesmo dia por católicos e ortodoxos, a luz da paz irradie por toda a Terra Santa e por todo o mundo. Exprimo a minha proximidade aos sofrimentos dos cristãos na Palestina e em Israel, e a todo o povo israelita e ao povo palestino. O crescente clima de anti-semitismo em todo o mundo é preocupante. Mas, ao mesmo tempo, penso no povo de Gaza, e na sua comunidade cristã em particular, onde o terrível conflito continua a causar morte e destruição e a criar uma situação humanitária dramática e deplorável. Apelo às partes em conflito: convoquem um cessar-fogo, libertem os reféns e venham em socorro de um povo faminto que aspira a um futuro de paz!

Rezemos pelas comunidades cristãs no Líbano e na Síria, que vivem atualmente uma delicada transição na sua história. Aspiram à estabilidade e à participação na vida das suas respectivas nações. Exorto toda a Igreja a manter os cristãos do amado Médio Oriente nos seus pensamentos e orações.

Penso também em particular no povo do Iémen, que vive uma das crises humanitárias mais graves e prolongadas do mundo devido à guerra, e convido todos a encontrar soluções através de um diálogo construtivo.

Que Cristo ressuscitado conceda à Ucrânia, devastada pela guerra, o dom pascal da paz, e encoraje todas as partes envolvidas a prosseguirem os esforços tendentes a alcançar uma paz justa e duradoura.

Neste dia festivo, recordemos a região do Cáucaso e rezemos para que um acordo de paz final entre a Arménia e o Azerbaijão seja em breve assinado e implementado, e conduza à tão esperada reconciliação na região.

Que a luz da Páscoa inspire esforços para promover a harmonia nos Balcãs e apoiar os líderes políticos nos seus esforços para aliviar tensões e crises e, juntamente com os países vizinhos na região, para rejeitar ações perigosas e desestabilizadoras.

Que Cristo Ressuscitado, nossa esperança, conceda a paz e a consolação aos povos africanos vítimas da violência e dos conflitos, especialmente na República Democrática do Congo, no Sudão e no Sudão do Sul. Apoie quantos sofrem as tensões no Sahel, na região da Somália e dos Grandes Lagos Africanos, assim como aqueles cristãos que em muitos lugares não conseguem professar livremente a sua fé.

Não pode haver paz sem liberdade de religião, liberdade de pensamento, liberdade de expressão e respeito pelas opiniões dos outros.

Não é possível haver paz sem um verdadeiro desarmamento! A exigência de que cada povo providencie a sua própria defesa não deve transformar-se numa corrida ao rearmamento. A luz da Páscoa impele-nos a derrubar as barreiras que criam divisões e estão repletas de graves consequências políticas e econômicas. Impulsiona-nos a cuidar uns dos outros, a aumentar a nossa solidariedade mútua e a trabalhar pelo desenvolvimento integral de cada pessoa humana.

Durante este tempo, não deixemos de ajudar o povo de Mianmar, atormentado por longos anos de conflito armado, que, com coragem e paciência, enfrenta as consequências do devastador terramoto em Sagaing, que causou a morte de milhares de pessoas e grande sofrimento a muitos sobreviventes, incluindo órfãos e idosos. Rezamos pelas vítimas e pelos seus entes queridos e agradecemos de coração a todos os generosos voluntários que realizam as operações de socorro. O anúncio de um cessar-fogo  no país é um sinal de esperança para todo o Mianmar.

Apelo a todos aqueles que ocupam posições de responsabilidade política no nosso mundo, a não ceder à lógica do medo, que só leva ao isolamento dos outros, mas antes a utilizar os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, para combater a fome e para encorajar iniciativas que promovam o desenvolvimento. Estas são as armas da paz: armas que constroem o futuro, em vez de semear sementes de morte!

Que o princípio da humanidade nunca deixe de ser a marca das nossas ações diárias. Perante a crueldade dos conflitos que envolvem civis indefesos e atacam escolas, hospitais e trabalhadores humanitários, não podemos permitir-nos esquecer que não são os alvos que são atingidos, mas sim pessoas, cada uma dotada de uma alma e de uma dignidade humana.

Neste ano jubilar, a Páscoa seja também uma ocasião propícia para a libertação dos prisioneiros de guerra e dos presos políticos!

Queridos irmãos e irmãs,

No Mistério Pascal do Senhor, a morte e a vida lutaram numa luta estupenda, mas o Senhor agora vive para sempre (cf. Sequência Pascal). Ele nos enche da certeza de que também nós somos chamados a participar da vida que não tem fim, quando não mais se ouvirão o choque das armas e o estrondo da morte. Confiemos-nos a ele, pois só ele pode fazer novas todas as coisas (Apocalipse 21:5)!

Feliz Páscoa para todos!

3 de abr. de 2021

Ó noite maravilhosa! Ó noite realmente abençoada!

 

Ó noite maravilhosa! Ó noite realmente abençoada!

Por que a Igreja canta durante a vigília pascal, velando sobre a tumba de Cristo, nesta tumba onde está depositado o seu corpo martirizado, retirado da cruz onde estava pregado, sinal da Antiga Aliança? Qual é o motivo desta festa de Páscoa?

Ó noite maravilhosa! Ó noite realmente abençoada!

Por que a Igreja canta durante a vigília pascal, que abre a Páscoa da Nova Aliança? Por toda superfície da terra, a Igreja está reunida para adorar o poder do Altíssimo: “A direita do Senhor é poderosa; fez maravilhas a direita do Senhor” (Sl 117, 16).

É este poder que revelou-se no início da criação do mundo. Deus disse: "Seja feito"; e criou os céus e a terra (Gn 1,1).

É este poder que manifestou-se na libertação do povo de Israel da escravidão no Egito, o poder que conduziu o povo eleito através do Mar Vermelho, salvando-o das mãos do Faraó.

A Igreja, reunida em frente à tomba de Cristo, medita maravilhada sobre as múltiplas formas que o poder de Deus se manifestou, seu poder criador, seu poder salvador.

Ó noite maravilhosa! Ó noite realmente abençoada!

É realmente abençoada esta noite na qual resplandece a luz de Cristo, na qual a vida vencerá a morte. De fato, é Cristo que fala no Salmo: "Não morrerei; viverei para narrar as obras do Senhor" (Sl 117, 17).

Estamos reunidos, pela fé, nesta vigília para experimentar este poder e o amor de Deus. Estamos aqui para acolher a sua revelação, como aconteceu com as três mulheres que, ao acordarem, foram encontrar o Senhor na sua tumba, como aconteceu com o apóstolo, que correu para o sepulcro. Sobre as mulheres, o Evangelho diz que não sabiam o que pensar, que estavam amedontradas (Lc 24, 3-4; Mc 16,5). Isto por que se encontraram com um mistério que supera a capacidade do homem, que o deixa surpreso, é um mistério tremendo.

Passado o medo, veio como uma admiração adorante; e a Igreja reunida em frente ao sepulcro de Cristo, no coração desta noite abençoada, enxerga o pecado iluminado por uma nova luz, e pode cantar: "Ó feliz culpa que nos trouxe tão grande redentor!"

Realmente este é o sucesso daquela noite, "isto foi obra do Senhor, é um prodígio aos nossos olhos. Este é o dia que o Senhor fez: seja para nós dia de alegria e de felicidade" (Sl 117,23-24). 

Recebei a revelação do poder Deus

Convido a todos, de modo especial, a acolher esta revelação do poder de Deus, de seu poder criativo e salvador, em especial vós, caros irmãos e irmãs, que nesta noite pascal estão recebendo o Batismo. A Igreja vos acolhe com grande alegria, vós que pediram, de modo sacramental, entrar na morte de Cristo para ressurgir para uma vida nova. O Bispo de Roma vos saúda cordialmente, vos convida a entrar nesta fonte de salvação.

Eis um grupo de vinte e quatro pessoas, todos jovens, provenientes de uma dezena de países e vários continentes. São um sinal de como Cristo chama os seus discípulos de todos povos e nações, são um sinal da universilidade da mensagem evangélica. Pela vossa presença, nossa vigília pascal é especialmente importante por que faz presente o mistério pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo, que está sempre presente nos sacramentos da Igreja. O poder da morte e ressureição de Cristo não para de agir nem de animar a humanidade.

Que coisa maravilhosa é a obra do poder divino, seu poder criativo, seu poder salvífico.

A Igreja nasce para vida na ressurreição do Senhor Ressuscitado. "A pedra rejeitada pelos arquitetos tornou-se a pedra angular" (Sl 117,22). Todos nós nascemos desta pedra, penetra em nós o sopro vivificante desta noite pascal, o sopro vivificante da ressurreição de Cristo. 

Estamos mortos para o pecado, porém vivos para Deus, em Cristo Jesus. (cf Rm 6,11; Col 2,13).

-- Papa João Paulo II, homília da Vigília de Páscoa, 6 de Abril de 1985.

-- tradução própria

2 de set. de 2020

Cristo falava do templo do seu corpo


 Destruí este templo e em três dias o reedificarei (Jo 2,19). Os apegados ao corpo e às coisas sensíveis, creio, parecem indicar os judeus, que irritados por terem sido expulsos por Jesus, acusando-os de transformarem a casa do Pai em mercado de seus produtos, pedem um sinal. Por esse sinal devia Jesus justificar o seu procedimento e provar que era o Filho de Deus, o que eles na sua incredulidade não queriam admitir. Mas o Salvador ajuntou uma palavra sobre seu corpo, como se falasse daquele templo; aos que interrogavam: Que sinal mostras para assim fazeres?, responde: Destruí este templo e em três dias o reedificarei.  

Todavia ambos, tanto o templo como o corpo de Jesus, compreendidos como unidade, parecem-me ser figura da Igreja. Por ter sido edificada com pedras vivas; feita casa espiritual para o sacerdócio santo (1Pd 2,5). Edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo sua máxima pedra angular o Cristo Jesus (Ef 2,20), existindo em verdade, como templo. Se, porém, por causa da palavra: Vós sois o corpo de Cristo e membros uns dos outros (1Cor 12,27), se entender serem destruídas e deslocadas as junturas e disposições das pedras do templo, como se lê no Salmo 21 sobre os ossos de Cristo, pelas ciladas das perseguições e tribulações e por aqueles que combatem a unidade do templo por contradições, levantar-se-á o templo e ressuscitará o corpo ao terceiro dia. Após o dia da maldade que pesa sobre ele, e após o dia da consumação que se seguir.  

Seguirá de perto o terceiro dia do novo céu e da terra nova, quando esses ossos, quero dizer, toda a casa de Israel, serão reerguidos, no grande domingo, em que a morte é vencida. Assim a ressurreição de Cristo depois da paixão contém o mistério da ressurreição do corpo total de Cristo. Como aquele corpo de Jesus, sensível, foi pregado na cruz, sepultado e depois ressuscitado, assim todo o corpo dos santos de Cristo com ele foi pregado na cruz e agora já não vive mais. Cada um deles, à semelhança de Paulo, não se gloria em coisa alguma a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo por quem está crucificado para o mundo e o mundo para ele.  

Por isto não apenas foi cada um de nós, junto com Cristo, pregado à cruz e crucificado para o mundo, mas também, junto com Cristo, sepultado: Fomos consepultados com Cristo, diz Paulo (Rm 6,4) e acrescenta como quem já recebeu as aras da ressurreição: E com ele ressuscitamos (cf. Rm 6,4). 

-- Do Comentário sobre o Evangelho de João, de Orígenes, presbítero (século I)

12 de abr. de 2020

Homília da Vigília Pascal, Papa Francisco

"Terminado o sábado" (Mt 28, 1), as mulheres foram ao sepulcro. O Evangelho desta santa Vigília começa assim: com o sábado. Este é o dia do Tríduo Pascal que mais descuramos, ansiosos de passar da cruz de sexta-feira à aleluia de domingo. Este ano, porém, damo-nos conta, mais do que nunca, do sábado santo, o dia do grande silêncio; podemos rever-nos nos sentimentos que tinham as mulheres naquele dia. Como nós, tinham nos olhos o drama do sofrimento, duma tragédia inesperada, que se verificou demasiado rapidamente. Viram a morte e tinham a morte no coração. À amargura, juntou-se o medo: acabariam, também elas, como o Mestre? E depois os receios pelo futuro, carecido todo ele de ser reconstruído. A memória ferida, a esperança sufocada. Para elas, era a hora mais escura, como o é hoje para nós.

Contudo, nesta situação, as mulheres não se deixam paralisar. Não cedem às forças obscuras da lamentação e da lamúria, não se fecham no pessimismo, nem fogem da realidade. Realizam algo simples e extraordinário: nas suas casas, preparam os perfumes para o corpo de Jesus. Não renunciam ao amor: na escuridão do coração, acendem a misericórdia. Nossa Senhora, no sábado – dia que Lhe será dedicado –, reza e espera. No desafio da tristeza, confia no Senhor. Sem o saber, estas mulheres preparavam na escuridão daquele sábado "o romper do primeiro dia da semana" (Mt 28, 1), o dia que havia de mudar a história. Jesus, como semente na terra, estava para fazer germinar no mundo uma vida nova; e as mulheres, com a oração e o amor, ajudavam a esperança a desabrochar. Quantas pessoas, nos dias tristes que vivemos, fizeram e fazem como aquelas mulheres, disseminando rebentos de esperança com pequenos gestos de solicitude, de carinho, de oração!

Ao amanhecer, as mulheres vão ao sepulcro. Lá diz-lhes o anjo: "Não tenhais medo. Não está aqui; ressuscitou" (cf. Mt 28, 5-6). Diante dum túmulo, ouvem palavras de vida... E depois encontram Jesus, o autor da esperança, que confirma o anúncio dizendo-lhes: "Não temais" (28, 10). Não tenhais medo, não temais: eis o anúncio de esperança para nós, hoje. Tais são as palavras que Deus nos repete hoje, na noite que estamos a atravessar.

Nesta noite, conquistamos um direito fundamental, que não nos será tirado: o direito à esperança. É uma esperança nova, viva, que vem de Deus. Não é mero otimismo, não é uma palmadinha nas costas nem um encorajamento de circunstância, com o aflorar dum sorriso. Não. É um dom do Céu, que não podíamos obter por nós mesmos. Tudo correrá bem: repetimos com tenacidade nestas semanas, agarrando-nos à beleza da nossa humanidade e fazendo subir do coração palavras de encorajamento. Mas, à medida que os dias passam e os medos crescem, até a esperança mais audaz pode desvanecer. A esperança de Jesus é diferente. Coloca no coração a certeza de que Deus sabe transformar tudo em bem, pois até do túmulo faz sair a vida.

O túmulo é o lugar donde, quem entra, não sai. Mas Jesus saiu para nós, ressuscitou para nós, para trazer vida onde havia morte, para começar uma história nova no ponto onde fora colocada uma pedra em cima. Ele, que derrubou a pedra da entrada do túmulo, pode remover as rochas que fecham o coração. Por isso, não cedamos à resignação, não coloquemos uma pedra sobre a esperança. Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel. Não nos deixou sozinhos, visitou-nos: veio a cada uma das nossas situações, no sofrimento, na angústia, na morte. A sua luz iluminou a obscuridade do sepulcro: hoje quer alcançar os cantos mais escuros da vida. Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido.

Coragem: é uma palavra que, nos Evangelhos, sai sempre da boca de Jesus. Só uma vez é pronunciada por outros, quando dizem a um mendigo: "Coragem, levanta-te que [Jesus] chama-te" (Mc 10, 49). É Ele, o Ressuscitado, que nos levanta a nós, mendigos. Se te sentes fraco e frágil no caminho, se cais, não tenhas medo; Deus estende-te a mão dizendo: "Coragem!" Entretanto poderias exclamar como padre Abbondio: "A coragem, não no-la podemos dar" (I promessi sposi, XXV). Não a podes dar a ti mesmo, mas podes recebê-la, como um presente. Basta abrir o coração na oração, basta levantar um pouco aquela pedra colocada à boca do coração, para deixar entrar a luz de Jesus. Basta convidá-Lo: "Vinde, Jesus, aos meus medos e dizei também a mim: “coragem!”"Convosco, Senhor, seremos provados; mas não turvados. E, seja qual for a tristeza que habite em nós, sentiremos o dever de esperar, porque convosco a cruz desagua na ressurreição, porque Vós estais conosco na escuridão das nossas noites: sois certeza nas nossas incertezas, Palavra nos nossos silêncios e nada poderá jamais roubar-nos o amor que nutris por nós".

Eis o anúncio pascal, anúncio de esperança. Este contém uma segunda parte, o envio. "Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia" (Mt 28,10): diz Jesus. Ele "vai à vossa frente para a Galileia" (28, 7): diz o anjo. O Senhor precede-nos, precede-nos sempre. É bom saber que caminha diante de nós, que visitou a nossa vida e a nossa morte para nos preceder na Galileia, isto é, no lugar que, para Ele e para os seus discípulos, lembrava a vida diária, a família, o trabalho. Jesus deseja que levemos a esperança lá, à vida de cada dia. Mas, para os discípulos, a Galileia era também o lugar das recordações, sobretudo da primeira chamada. Voltar à Galileia é lembrar-se de ter sido amado e chamado por Deus. Cada um de nós tem a sua própria Galileia. Precisamos de retomar o caminho, lembrando-nos de que nascemos e renascemos a partir duma chamada gratuita de amor, lá, na minha Galileia. Este é o ponto donde recomeçar sempre, sobretudo nas crises, nos tempos de provação: na recordação da minha Galileia.

Mais ainda. A Galileia era a região mais distante de Jerusalém, onde estavam. E não só geograficamente: a Galileia era o lugar mais distante do caráter sacro da Cidade Santa. Era uma região habitada por povos diferentes, que praticavam vários cultos: era a Galileia dos gentios (Mt 4, 15). Jesus envia para lá, pede para recomeçar de lá. Que nos diz isto? Que o anúncio da esperança não deve ficar confinado nos nossos recintos sagrados, mas ser levado a todos. Porque todos têm necessidade de ser encorajados e, se não o fizermos nós que tocamos com a mão o Verbo da vida (1 Jo 1, 1), quem o fará? Como é belo ser cristãos que consolam, que carregam os fardos dos outros, que encorajam: anunciadores de vida em tempo de morte! A cada Galileia, a cada região desta humanidade a que pertencemos e que nos pertence, porque todos somos irmãos e irmãs, levemos o cântico da vida! Façamos calar os gritos de morte: de guerras, basta! Pare a produção e o comércio das armas, porque é de pão que precisamos, não de metralhadoras. Cessem os abortos, que matam a vida inocente. Abram-se os corações daqueles que têm, para encher as mãos vazias de quem não dispõe do necessário.

No fim, as mulheres estreitaram os pés de Jesus (Mt 28, 9), aqueles pés que, para nos encontrar, haviam percorrido um longo caminho até entrar e sair do túmulo. Abraçaram os pés que espezinharam a morte e abriram o caminho da esperança. Hoje nós, peregrinos em busca de esperança, estreitamo-nos a Vós, Jesus ressuscitado. Voltamos as costas à morte e abrimos os corações para Vós, que sois a Vida.

-- Papa Francisco, homília da Vigília Pascal, 11 de Abril de 2020

11 de abr. de 2020

As duas noites da Páscoa


Hoje gostaria de falar sobre duas noites na qual Deus se faz presente.

A primeira noite, a noite do medo, é esta Quaresma, marcada pelo coronavírus. As ruas estão vazias, o comércio está fechado, as igrejas estão fechadas, não há confissões, não há missas, todos estão trancados em casa, com medo. A vida normal, como conhecemos, não está acontecendo.

O número mais comentado é o total de mortes. Já pensaste por quê? O mundo tem medo da morte, o mundo que tirou Cristo de suas vidas, tem medo de morrer, caiu na mentira do demônio que faz com que não acreditemos na palavra de Deus.

Por que o mundo está quase parado, não é possível sair para beber, para procurar drogas, para ficar rico, para assistir ao futebol. O mundo está afastado dos seus vícios habituais, os vícios que utiliza para fugir da realidade que a cada dia estamos mais perto da morte. Agora é visível que a morte nos ronda, nos amedronta, por que é algo incerto, incerto se não acreditarmos na palavra de Deus.

Pense nos judeus saindo do Egito, sendo perseguidos pelo exército do faraó, as margens do Mar Vermelho. De um lado, a morte por afogamento, de outro lado a morte pela espada chegando. Estavam encurralados. Mas Deus agiu, abriu o mar, deu um caminho de salvação para aquele povo, que é o mesmo caminho de salvação para nós, é acreditar na palavra de Deus.

Os judeus salvaram-se, viram os soldados afogados, seus corpos foram dar às praias. Ainda hoje, na noite de Páscoa, lembram que saíram do Egito, que Deus matou os primogênitos, que abriu o mar. Este é o poder de Deus Salvador que pode transformar tudo, pode transformar uma noite de morte, uma noite de medo, em uma noite de salvação, simplesmente pelo poder de sua palavra.

Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!


– Verso do poema A Noite Escura de São João da Cruz

A segunda noite é a noite de Páscoa, a noite sobre todas as noites, a noite em que Cristo Ressuscitado vence a morte. Ó noite maravilhosa, noite que ilumina nossa vida, a noite em que Palavra de Deus pode se realizar na nossa vida, a noite em que a Palavra de Deus pode te trazer a salvação.

Deus nos guiou até este momento, não morremos até hoje por que Deus quer que vivamos esta Páscoa em casa, para nossa conversão, para aprendermos a celebrar nas casas. Deus realizou maravilhas na tua vida, primeiro de tudo, Ele te deu a vida, pense de quantos acidentes ou quase-acidentes Ele te livrou, de algumas doenças Ele já te livrou, e, acima de tudo, de todos os teus pecados Ele te perdoou.

Nesta noite Jesus Cristo, o Amado de Deus, ressuscita dos mortos, vence a morte para o benefício de todos nós. A Igreja, Amada de Deus, celebra que o demônio está vencido, que a morte está vencida, que não precisamos temer a morte. A morte está derrotada, nossa vida não termina na morte, acreditamos em Cristo Jesus Ressuscitado, acreditamos que também nós ressuscitaremos quando for nosso tempo.

A Igreja, nesta noite de Páscoa, é transformada. Se estívessemos celebrando nas igrejas, veríamos as trevas transformando-se em luz, pois a Vigília Pascal inicia no escuro, mas vai se iluminando na medida em que Cristo entra na Igreja, com o presbítero carregando o Círio Pascal. Com as luzes acesas cantamos o Glória, Glória a Deus nos altos dos céus, Glória a Jesus Cristo Ressuscitado!

Nesta noite Deus mostra todo amor que tem por nós, por cada um nós. Cristo nos ama, e ama muitíssimo. Um anjo anunciou às mulheres que Cristo havia Ressuscitado, hoje vamos receber este mesmo anúncio assistindo à missas em casa, apenas com nossa família, não na igreja, com a comunidade, mas isto não tira seu poder. Que este anúncio de Deus possa transformar a tua vida, que possas acreditar, em teu coração, nesta Palavra de Deus.

Cristo Ressuscitou, Cristo venceu a morte, Aleluia, Aleluia!


-- autoria própria

12 de ago. de 2019

Curarei os seus tormentos

Com liberdade, vai Jesus ao encontro dos sofrimentos preditos a seu respeito. Por várias vezes os prenunciou aos discípulos, tendo mesmo repreendido a Pedro que repelia o anúncio da paixão, e declarou que por eles se daria a salvação do mundo. Por isso apresentou-se aos que vinham buscá-lo, dizendo: Sou eu a quem procurais (cf. Jo 18,5). Acusado, não respondeu. Podendo esconder-se, não o quis, embora por mais de uma vez se tenha furtado às ciladas dos perseguidores. Chora sobre Jerusalém que pela incredulidade atraía para si a ruína e prediz a suprema destruição do templo outrora famoso. Com toda a paciência suporta ser batido na cabeça por homem duplamente escravo. Esbofeteado, cuspido, injuriado, atormentado, flagelado e por fim crucificado e dado por companheiro de suplícios a dois ladrões, contado entre os homicidas e celerados. Bebe o vinagre e o fel produzidos pela má videira, coroado de espinhos em lugar de louros e cachos de uva. Escarnecido com a púrpura, batido com a cana, ferido o lado pela lança e enfim levado ao sepulcro.  

Tudo isto sofreu enquanto operava nossa salvação. Pois àqueles que se haviam escravizado ao pecado eram devidos os castigos do pecado. Ele, isento de todo pecado, tendo cumprido toda a justiça, suportou a pena dos pecadores, destruindo por sua cruz o antigo decreto de maldição. Cristo, assim diz Paulo, nos remiu da maldição da lei, feito maldição por nós; por que está escrito: Maldito todo aquele que pende do lenho (Gl 3,13; cf. Dt 21,23). Com a coroa de espinhos põe fim ao castigo de Adão. Pois, após o pecado, este ouvira: Maldita a terra em teus trabalhos; germinarão para ti espinhos e abrolhos (cf. Gn 3,17-18).  

Com o fel bebeu a amargura e a dor da vida humana passível e mortal. Pelo vinagre assumiu em si a mudança do ser humano para o pior e concedeu a volta ao melhor. A púrpura significava o reino; a cana, o frágil poder do diabo. A bofetada publicava nossa liberdade, tolerando as injúrias, flagelos e chagas a nós devidas.  

O lado aberto, à semelhança de Adão, deixa sair não a mulher que, por seu erro, gerou a morte, mas a fonte de vida que com dupla torrente vivifica o  mundo. Uma, no batistério, nos renova e cobre com a veste imortal; outra, à mesa divina, alimenta os renascidos como leite aos pequeninos.

-- Do Tratado sobre a Encarnação do Senhor, de Teodoreto de Ciro, bispo (século V) 

29 de jul. de 2017

Jesus, minha alegria


Jesu, meine Freude (Jesus, minha alegria) é um hino alemão escrito por Johan Frank em 1650. O texto foi composto a partir do ponto de vista de um fiel, que para enfrentar os inimigos e vaidades do mundo, conta com a proteção de Cristo para sustentar o seu Espírito em todas circunstâncias, contrastando imagens de tranquilidade e felicidade ao lado de Cristo, com as ameaças do Demônio. Sua inspiração é a Carta aos Romanos 8,1-2;9-11, que fala de Jesus Cristo libertando o homem dos pecados e morte.  


Várias composições foram escritas com base no texto, a mais notável é de Bach, que teria sido escrita para o funeral de Johanna Maria Käsin em 18 de Julho de 1723. É justamente esta a versão do vídeo acima.  

O texto, numa tradução livre, é:

1. Jesus, minha alegria,
alimento do meu coração,
Jesus, meu tesouro!
Ah, por quanto tempo
Meu coração tem sofrido
e te desejado!
Cordeiro de Deus, meu noivo,
Além de Ti, nada no mundo
Deve ser mais desejado por mim.

2. Não há nada de condenável
naqueles que estão em Cristo Jesus,
que não caminham de acordo com a carne,
mas deixam o Espírito conduzir seu caminho.

3. Sob a Tua proteção
Estou a salvo das tempestades,
De todos os inimigos.
Deixe Satanás enraivecido,
Deixe o inimigo bufar de raiva,
Jesus está ao meu lado.
Mesmo que haja raios e trovões,
pecados e o Inferno terrível,
Jesus está me protegendo.

4. A Lei do espírito,
que dá vida à Jesus Cristo,
Fez-me livre da Lei
do pecado e da morte.

5. O velho dragão me desafia,
A vingança da morte me desafia,
O medo também me desafia!
O ódio e o mundo me atacam,
Eu permaneço aqui cantando
Em paz e seguro!
A força de Deus está vigilante,
Céus e terra devem permanecer em silêncio,
Por mais que tentem me aterrorizar.

6. Tu, no entanto, não és de carne,
mas foste moldado pelo Espírito,
O Espírito de Deus vive em ti.
No entanto, quem não tiver o Espírito de Cristo, não é dEle.

7. Longe de todos tesouros,
Tu é meu deleite,
Jesus, minha alegria!
Longe de todas honras vãs,
Eu devo passar longe delas,
Devem permanecer desconhecidas para mim!
Miséria, necessidade, torturas, vergonha e morte,
Embora eu deva sofrer muitas delas,
Não podem me separar de Jesus.

8. Se Cristo estiver em ti,
Então o corpo está morto para o pecado,
Mas vive em ti o Espírito de vida,
Que te manterá na justiça.

9. Boa noite, existência
que deseja o mundo!
Tu não me agradas.
Boa noite, pecados,
Fiquem longe de mim,
Nunca mais retornem a luz!
Boa noite, orgulho e glória!
A ti, vida miserável e corrompida,
Boa noite deve ser dado!

10. Agora que o Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos está sobre ti,
O mesmo que ressuscitou Jesus dos mortos irá fazer teu corpo mortal viver,
pelo poder do Espírito que está sobre ti.

11. Pois agora os espíritos da tristeza,
Estão derrotados pelo Mestre da Alegria,
Jesus que veio a nós.
Para aqueles que amam a Deus,
Mesmo em suas tribulações,
Deve ser pura felicidade.
Mesmo que tenha que suportar a zombaria e vergonha,
Tu estás ao meu lado mesmo no sofrimento,
Jesus, minha alegria.

-- autoria própria
-- tradução livre feita a partir do inglês, não do original alemão.

21 de mai. de 2017

Cristo verdadeiramente ressuscitou?

Há cinco diferentes argumentos que são utilizados para questionar a Ressurreição de Cristo: 

1. Os anjos poderiam ter feito o mesmo que Cristo fez
Depois da sua ressurreição, Cristo não manifestou nada aos discípulos que também não pudessem os anjos manifestar ou fazer, quando aparecem aos homens, pois os anjos frequentemente se mostravam aos homens em forma humana, com eles falavam, conviviam e comiam como se verdadeiramente fossem homens. Tal o lemos na Escritura quando refere que Abraão deu hospitalidade a anjos; e que um anjo levou e reconduziu a Tobias. E contudo não tem corpo real a que estejam unidos naturalmente. o que é necessário para a ressurreição. 

RESPOSTA: Embora cada uma das provas, em particular, não bastasse para manifestar a ressurreição de Cristo, contudo todas tomadas simultaneamente a manifestam de modo perfeito, sobretudo pelo testemunho da Escritura, pelas palavras dos anjos e também pela afirmação mesma de Cristo confirmada por milagres. Quanto aos anjos que apareceram, não afirmavam que fossem homens como Cristo se afirmou verdadeiramente homem. O anjo disse a Tobias: Quando eu estava convosco, a vós parecia-vos que eu comia e bebia convosco, mas eu sustento-me de um manjar invisível. Segundo Santo Agostinho, o corpo ressucitado fica isento não do poder, mas da necessidade de comer. E São Beda completa: Cristo comeu por poder e não por necessidade.

2. Cristo parecia humano
Certas manifestações de Cristo foram contrárias a um corpo glorioso, como comer, beber e conservar as cicatrizes das chagas. Logo, não parce que Cristo tenha ressuscitado de forma gloriosa e perfeita, pois seu corpo ainda guardava fraquezas humanas.

RESPOSTA: Como dissemos Cristo se serviu de várias provas para manifestar a sua verdadeira natureza humana; e de outras para mostrar a sua natureza gloriosa. É certo que a condição da natureza humana, considerada em si mesma, no estado da vida presente, contraria à condição da glória, segundo o Apóstolo: Semeia-se em vileza, ressuscitará em glória. Por isso diz São Gregório, há dois fatos muito contraditórios aos olhos da razão humana: Cristo conservar, depois da ressurreição, o seu corpo simultaneamente incorruptível e capaz de ser tocado. Mas não há razão para aceitar apenas os aspectos humanos do corpo ressucitado de Cristo e não aceitar os aspectos gloriosos do mesmo corpo.

3. Nem todos podiam tocar a Cristo
O corpo de Cristo depois da ressurreição não era tal que pudesse se tocado pelos mortais; por isso ele próprio disse a Madalena: Não me toques porque ainda não subi a meu Pai. Logo, não era conveniente que, para manifestar a verdade da .sua ressurreição, se deixasse tocar por todos.

RESPOSTA: Como adverte Santo Agostinho, o Senhor disse: Não me toques porque ainda não subi a meu Pai, por que Madalena, chorando-o como homem, só carnalmente cria nele, enquanto Cristo preferia que fosse considerado na sua unidade com o Pai, para que quem nEle tocasse, acreditasse nEle de modo espitual. Ou como o explica São Crisóstomo, essa mulher queria tratá-lo como o Cristo antes da Paixão, esquecia-se da grandeza do seu Salvador; pois, o corpo de Cristo tinha-se revestido de uma glória incomparável. Era como se lhe dissesse: Não penses que ainda vivo uma vida mortal. Se ainda na terra me vês, é porque ainda não subi a meu Pai; mas dentro em pouco para ele subirei. 

Também disse para que essa mulher figurasse a Igreja formada pelos gentios, que só acreditou em Cristo quando ele subiu ao Pai. Porque, no seu senso íntimo, quem assim o considera, crê que de certo modo Cristo, subindo ao Pai, subiu a quem o reconhece como seu igual.  

4. O corpo de Cristo não era glorioso
Dentre os dotes do corpo glorificado o mais importante é a luminosidade. Ora, desse não tem Cristo não nenhuma prova nos Evangelhos desta luz especial. 

RESPOSTA: Como diz Santo Agostinho, o Senhor ressurgiu com seu corpo glorificado; mas não quis aparecer assim glorioso aos discípulos, porque os olhos a ele não podiam suportar a grande glória. Pois, antes de ter morrido por nós e ressurgido, quando foi da transfiguração no monte, já os discípulos não puderam contemplá-lo; com maior razão não poderiam fitar o corpo do Senhor glorificado. 

Devemos também considerar que, depois da ressurreição, o Senhor queria sobretudo mostrar que era o mesmo que tinha morrido. O que poderia ficar grandemente impedido se lhes manifestasse a glória do seu corpo. Antes da Paixão a fim de que os discípulos não o desprezassem pelas humilhações dela, quis Cristo mostrar-lhes a glória da sua majestade, revelada principalmente pela glória do corpo, Por isso, antes da Paixão, manifestou aos discípulos a sua glória refulgente; depois da ressurreição, por outros indícios.


5. Os Evangelhos se contradizem quanto ao testemunho dos anjos
Os anjos são apresentados como testemunhas da ressurreição, mas os Evangeliistas contam histórias diferentes. Assim, Mateus nos mostra o anjo sobre a pedra revolvida e Marcos, no interior mesmo do túmulo, quando as mulheres nele entraram. Além disso, esses dois evangelistas nos falam de um só anjo; ao passo que João, de dois, sentados; e Lucas, de dois também, mas de pé. Logo, parecem inconvenientes os testemunhos da ressurreição.

RESPOSTA: Como diz Agostinho, podemos, com Mateus e Marcos, entender que as mulheres viram um anjo, supondo que o foi quando entraram no túmulo, isto é, num certo espaço cercado por um muro de pedras, e aí viram o anjo sentado na pedra revolvida do sepulcro, como refere Mateus; isto é, sentado à direita, como requer Marcos. Em seguida, enquanto examinavam o lugar onde tinha colocado o corpo do Senhor, viram os dois anjos, primeiro, sentados, no dizer de João, e depois levantados, de modo que pareciam estar de pé, como relata Lucas.

-- adaptado da Suma Teológica, Tertia Pars, questão 54, artigo 6, de São Tomás de Aquino.

As provas de que Cristo verdadeiramente ressuscitou

Cristo manifestou a sua ressurreição de dois modos: pelo testemunho e por provas ou sinais. 

Primeiro serviu-se de duplo testemunho para manifestar a ressurreição aos discípulos, e nenhum deles pode ser recusado. 

  • Os anjos anunciaram a ressurreição às mulheres, como o narram todos os evangelistas.  
  • Outro é o seu próprio testemunho, pois Ele afirma sua ressurreição.

Quanto às provas, também foram suficientes para declarar a sua verdadeira ressurreição, mesmo enquanto gloriosa. Ora, que a sua ressurreição foi verdadeira ele o demostrou com seu corpo que:

Cristo comendo com seus apóstolos após a pesca milagrosa. 
  • era um corpo verdadeiro e real, e não um corpo fantástico ou rarefeito, como o ar. E isso o mostrou deixando que o tocassem. Por isso, ele próprio o disse: Apalpai e vede, que um espírito não tem carne nem ossos, como vós vedes que eu tenho
  • tinha um corpo humano. deixando verem os discípulos a sua verdadeira figura. que contemplavam com os olhos. 
  • era o corpo identicamente o mesmo que antes tinha, mostrando-lhes as cicatrizes das chagas. Cristo diz, no Evangelho: Olha para as minhas mãos e pés, porque sou eu mesmo

De outro modo, mostrou-lhes a verdade da sua ressurreição quanto à alma, de novo unida ao corpo, de três maneiras diferentes:

  • pela nutrição, comendo e bebendo com os discípulos, como lemos no Evangelho. 
  • pelos sentidos, quando respondia às interrogações dos discípulos e saudava os presentes, mostrando assim que via e ouvia. 
  • pela inteligência, pois os discípulos com ele falavam e Cristo explicava suas dúvidas falando sobre as Escrituras. 

E para nada faltar a essa perfeita manifestação, revelou também a sua natureza divina pelo milagre feito na pesca maravilhosa e, além disso, por ter subido ao céu à vista dos discípulos. Pois, como diz o Evangelho, ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, a saber, o Filho do homem,que está no céu. 

E também manifestou a glória da sua ressurreição aos discípulos por ter entrado numa sala estando as portas fechadas. Tal o que diz Gregório: "O Senhor deu a tocar o seu corpo, que entrava estando as portas fechadas, para mostrar que, depois da ressurreição, tinha a mesma natureza mas com uma glória diferente". Semelhantemente, também foi por uma propriedade da glória, que de súbito desapareceu-Ihes de diante dos olhos, na frase do Evangelho; pois, assim mostrava que tinha o poder de deixar-se ver ou não, e isso é uma propriedade do corpo glorioso, como dissemos.

* No próximo post, Santo Agostinho rebate as dúvidas que ainda possam existir acerca da ressurreição de Cristo.

-- adaptado da Suma Teológica, Tertia Pars, questão 54, artigo 6, de São Tomás de Aquino.


9 de mai. de 2017

Como era o Corpo Ressuscitado de Cristo?

O corpo ressuscitado de Cristo teve a mesma natureza do corpo humano, tudo o que pertence à natureza do corpo humano existiu totalmente no corpo de Cristo ressuscitado. Ora, é manifesto que da natureza do corpo humano fazem parte as carnes, os ossos, o sangue e atributos semelhantes. Tudo isso existiu no corpo de Cristo ressuscitado pois do contrário a ressurreição não seria perfeita, se não se reintegrasse tudo o que se desagregou pela morte. Considere que o Senhor fez aos seus fiéis a seguinte promessa: Até os mesmos cabelos da vossa cabeça, todos eles estão contados (Mt 10,30; Lc 12,7). E noutro lugar: Não se perderá um cabelo da vossa cabeça (Lc 21,8).

Quanto a afirmar que o corpo de Cristo não tinha carne nem ossos nem as demais partes naturais ao corpo humano, isso constitui o erro de Entíquio, bispo da cidade de Constantinopla. Dizia ele que o nosso corpo, na glória da ressurreição, será impalpável e mais leve que o vento e o ar. E que o Senhor, depois de ter confirmado o coração de seus discípulos, fazendo-os lhe apalpar o corpo, tornou então imaterial tudo o que antes nele podia ser tocado. 

São Gregório Magno refutou esta doutrina argumentando que o corpo de Cristo não sofreu depois da ressurreição nenhuma mudança, pois, se é inadmissível que Cristo tivesse recebido, na sua concepção, um corpo não-humano, digamos, celeste, como Valentiniano afirmava, muito mais inadmissível é que, na ressurreição, reassumisse um corpo de natureza diferente, pois que o corpo reassumido na ressurreição, para a vida imortal, foi o mesmo que assumiu, na concepção, para a vida mortal. Reconhecendo seu erro, Entíquio retratou-se antes de morrer.

Alguns persistem achando que Cristo ressuscitado era um espírito imaterial, sem carne nem ossos. Esta dúvida foi esclarecida pelo próprio Cristo: Observai as minhas mãos e meus pés e vede que Eu Sou o mesmo! Tocai-me e comprovai o que vos afirmo. Por que um espírito não tem carne nem ossos, como percebeis que Eu tenho (Lc 24, 39). Mas como a corpo de Cristo não sofreu a decadência natural, mas foi visto por cinquenta dias após sua morte? Para explicar este milagre, São Paulo afirma: Nem a corrupção herdará a incorruptibilidade (1Cor 15,50). É fato que Deus todo-poderoso, com relação às propriedades visíveis e palpáveis dos corpos, pode manter algumas e privar os corpos de outras, conforme quiser; de sorte que guardem a sua forma exterior sem nenhuma falha ou corrupção, o movimento sem a fadiga, o poder de comer sem a necessidade. de nutrir-se, como relatam os evangelistas.

Por fim, cabe dizer quanto ao sangue conservado por certas Igrejas como relíquias, esse não correu do lado de Cristo; mas é considerado como tendo jorrado milagrosamente de alguma imagem sua, objeto de qualquer violência, não afetando, portanto a integridade do corpo ressuscitado. 

-- adaptado da Suma Teológica, Tertia Pars, questão 54, artigo 2, de São Tomás de Aquino.

18 de abr. de 2017

Era necessário Cristo ressucitar?

Ressurreição de Cristo, de Rafael Sanzio (cc. 1500).
Acervo do MASP.

Era necessário que Cristo ressuscitasse, por cinco razões:


Para a manifestação da justiça divina, a qual compete exaltar aos que se humilham por amor de Deus, segundo aquilo do Evangelho: Depôs do trono os poderosos e elevou os humildes (Lc 1,52). Tendo, pois, Cristo, levado pela caridade e obediência, se humilhado até à morte da cruz, importava que  fosse exaltado por Deus até a ressurreição gloriosa. 

Para confirmação da nossa fé, pois, a sua ressurreição confirmou a nossa fé na divindade de Cristo. Como diz o Apóstolo: Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa pregação, é também vã a nossa fé (1Cor 15,14). E noutro lugar diz a Escritura: Que proveito há no meu sangue, i. é, na efusão do meu sangue, se desço à corrupção, como que por degraus de males?(Sl 29) Quase se respondesse: Nenhum. Pois, se não ressurgir logo e se me corromper o corpo, a ninguém anunciarei, ninguém seria beneficiado.

Para sustentar a nossa esperança, pois, vendo Cristo ressuscitar, ele que é nossa cabeça, esperamos que também nós ressuscitaremos. Donde o dizer o Apóstolo: Se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns entre vós outros que não há ressurreição de mortos? (1Cor 15,2) E noutro lugar da Escritura: Eu sei, isto é, pela certeza da fé, que o meu Redentor, isto é, Cristo vive, tendo ressurgido dos mortos, e portanto, eu no derradeiro dia surgirei da terra: esta minha esperança esta depositada no meu peito. (Jó 19,25-27)

Para nos dar um modelo pelo qual possamos regular a nossa vida, segundo fala o Apóstolo: Como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Padre, assim também nós levemos uma vida nova (Rm 6,4). E mais abaixo: Tendo Cristo ressurgido dos mortos, já não morre, nem a morte terá sobre ele mais domínio; assim também vós considerai-vos que estais certamente mortos ao pecado, porém vivos para Deus (Rm 9, 11)

Para complemento da nossa salvação, pois, assim como sofreu tantos males e morreu, para dos males nos livrar, assim também foi glorificado ressurgindo, para nos dar a posse do bem, segundo o Apóstolo: Foi entregue por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação. (Rm 4, 25)

-- adaptado da Suma Teológica (Tertia Pars, questão 53), São Tomás de Aquino

10 de set. de 2016

Renova os nossos dias como no princípio

Deus Verbo do excelso Pai não abandonou a natureza dos homens que descambava para a corrupção. Mas pela oblação do próprio corpo destruiu a morte em que haviam incorrido, corrigiu pela doutrina sua indignidade e tudo de humano restaurou.

Poderá confirmar tudo isto pela autoridade dos teólogos, discípulos de Cristo, quem quer que leia o que dizem: A caridade de Cristo nos urge, sabendo que se um morreu por todos, logo todos estão mortos; e por todos morreu ele para que não mais vivamos para nós mesmos, mas para aquele que por nós morreu e ressuscitou dos mortos, nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 2Cor 5,14-15). E de novo: Aquele que foi colocado por pouco tempo abaixo dos anjos, Jesus, nós o vemos coroado de glória e de honra, por causa dos sofrimentos da morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte em favor de todos (Hb 2,9). Mais adiante, dá a razão por que ao Deus Verbo e só a ele convinha fazer-se homem: Convinha que o autor da salvação, para quem tudo e por quem tudo foi feito, e que levaria muitos filhos à glória, chegasse à consumação pela paixão (Hb 2,10). Por estas palavras significa não competir a outro que não ao Deus Verbo, por quem foram criados no início, arrancar os homens da corrupção.

Foi este o motivo por que o Verbo aceitou um corpo, a fim de se tornar vítima em favor dos corpos semelhantes; também isto se afirma pelos seguintes dizeres: Os filhos têm em comum a carne e o sangue; ele de igual modo deles participou, para destruir por sua morte aquele que detinha o império da morte, isto é, o diabo, e libertar os que pelo temor da morte eram sujeitos à escravidão durante toda a vida (Hb 2,14-15). Na verdade, imolando o próprio corpo, pôs fim à lei decretada contra nós e para nós renovou o princípio da vida, dando a esperança de ressurgirmos. 

A morte recebera dos homens o poder contra os homens; pelo Verbo de Deus enviado aos homens, veio a destruição da morte e a ressurreição da vida, como disse o varão repleto de Cristo: Porque por um homem entrou a morte e por um homem, a ressurreição dos mortos. Pois como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos serão vivificados (1Cor 15,21-22) e o que se segue. Já não mais morremos para nosso castigo, mas como os que serão despertados dos mortos aguardamos a ressurreição comum a todos. Em seu tempo, Deus, o autor e doador destas coisas, o manifestará.

-- Dos Sermões de Santo Atanásio, bispo (século IV)

19 de jul. de 2016

Uma só oração, uma esperança na caridade, na santa alegria

Sto Inácio de Antioquia foi martirizado em Roma
no ano 107. Escreveu esta e outras cartas às
comunidades que era responsável quando estava
já prisioneiro, aguuardando a execução. Elas compõem
um conjunto importantíssimo sobre a fé das primeiras
comunidades cristãos.
Contemplando na fé e amando toda a comunidade, eu vos exorto a empregardes todo o empenho em fazer tudo na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, em lugar de Deus, e dos presbíteros em lugar do senado apostólico, bem como dos diáconos, meus caríssimos. A eles, com efeito, foi confiado o ministério de Jesus Cristo, que antes dos séculos era com o Pai e apareceu no fim dos tempos. Todos, então, recebida a mesma vida divina, respeitai-vos mutuamente e ninguém considere o próximo segundo a carne, mas amai-vos sempre uns aos outros em Jesus Cristo. Nada haja em vós que vos possa separar. Uni-vos ao bispo e aos que presidem, como uma figura e demonstração da imortalidade.

Da mesma forma que, sem o Pai unido a ele, o Senhor nada fez por si nem pelos apóstolos, assim também vós, sem o bispo e os presbíteros, nada executeis. Também não tenteis fazer passar por coisa boa o que se fizer em separado. Reunindo-vos, porém, seja uma só oração, uma só súplica, um só modo de pensar, uma só esperança na caridade, na santa alegria, pois um só é Jesus Cristo, mais excelente do que tudo. Acorrei todos como a um só templo de Deus, como a um só altar, a um só Jesus Cristo, que proveio de um só Pai, com ele só esteve e a ele voltou.

Não vos deixeis seduzir por doutrinas estranhas ou velhas e inúteis fábulas. Se ainda vivemos de acordo com a lei judaica, confessamos não ter ainda recebido a graça. Pois os santos profetas já viveram em conformidade com Jesus Cristo. Por este motivo, inspirados por sua graça, sofreram perseguição, a fim de incutir certeza nos incrédulos de que há um só Deus, que se manifestou por Jesus Cristo, seu Filho, seu Verbo brotado do silêncio, que em tudo agradou àquele que o enviara.

Há quem negue a ressurreição de Cristo. Como isto é possível, se por ela recebemos o mistério da fé e por sua causa nos constituímos discípulos de Cristo, nosso único doutor? Se, pois, os que viveram sob a antiga economia chegaram à nova esperança, e assim não mais respeitam o sábado, porém, o domingo, no qual nossa vida ressurgiu por Cristo e sua morte, como poderemos viver sem ele, a quem os profetas esperaram como mestre e de quem já eram discípulos pelo espírito? Por esta razão, ao vir aquele a quem esperavam com justiça, foram ressuscitados dos mortos.

-- Da Carta aos Magnésios, de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir (século I)

5 de abr. de 2016

Nosso Senhor Jesus Cristo inaugurou para nós um caminho novo e vivo

“Se junto de Deus, meu Pai, não houvesse muitas moradas", dizia o Senhor, "eu teria ido muito antes preparar o lugar para os santos. Mas como sei que há muitas esperando a chegada dos que amam a Deus, não é por este motivo” - disse – “que vou ausentar-me, mas porque vosso regresso pelo caminho outrora preparado estava inacessível e precisava ser aplainado".

De fato, o céu para os homens era absolutamente inatingível e a carne nunca penetrara antes no puro e santíssimo lugar dos anjos. Cristo foi o primeiro que inaugurou para nós aquela via de acesso. E ensinou aos homens a maneira de chegar ao céu, oferecendo-se a Deus Pai como primícia dos mortos e dos que jazem na terra e manifestando-se como primeiro homem aos que vivem no céu. 

Por isso os anjos, ignorando o grande e augusto mistério sobre a chegada corporal, admiravam atônitos o   homem   que  subia,  e   perturbados   com aquele novo e estranho espetáculo, estavam para perguntar: Quem é esse que vem de Edom? (Is 63,1), isto é, da terra? Mas o Espírito não permitiu que aquela celeste multidão ficasse a ignorar a admirável sabedoria de Deus Pai, mas ordenou que as portas celestes se abrissem ao Rei e Senhor do universo, exclamando: Levantai, ó príncipes, as vossas portas! Alçai-vos, portas eternas, e entrará o Rei da glória (Sl 23,7).

Inaugurou, pois, para nós, o Senhor Jesus um caminho novo e vivo, como diz São Paulo: Cristo não entrou num santuário feito por mãos humanas e sim no próprio céu, a fim decomparecer, agora, diante da face de Deus, em nosso favor (Hb 9,24). Pois Cristo não subiu para apresentar-se diante do Pai, já que ele estava, está e estará sempre no Pai e diante dos olhos daquele que o gerou. Ele é sempre o objeto de sua complacência. Mas o Verbo subiu, agora, como homem, deixando-se ver de uma maneira nova e insólita, já que antes não possuía condição humana. E isto por nós e para nós, a fim de ouvir, na plenitude da realidade, feito semelhante aos homens, em seu poder de Filho e como homem: Senta-te à minha direita (Sl 109,1), transmitindo a todo o gênero humano, adotado nele, a glória da filiação.

De fato é um de entre nós, enquanto apareceu como homem na presença de Deus Pai, embora esteja acima de todas as criaturas e seja consubstancial àquele que o gerou, sendo o seu esplendor, Deus de Deus e luz da verdadeira luz. Apareceu assim, por nós, diante de Deus Pai, para reapresentar-nos a nós que tínhamos sido afastados de diante de sua face, por causa do antigo pecado. Sentou-se como Filho para que também nós nos sentássemos como filhos e por ele fôssemos chamados filhos de Deus. 

Por isso é que São Paulo, que afirma ter em si a Cristo que fala por seu intermédio, ensina: o que aconteceu a Cristo por título especial se comunica à natureza humana. E escreve: Com ele nos ressuscitou e nosfez sentar no céu, em Cristo Jesus (Ef 2,6). Compete a Cristo propriamente e somente a ele, segundo sua natureza de Filho, a dignidade e a glória de se sentar ao lado de Deus. Mas, porque o que se senta é semelhante a nós, dado que apareceu como homem, e ao mesmo tempo é reconhecido como Deus de Deus, transmite-nos a nós de certo modo a graça dessa dignidade.

* Leitura para a Solenidade da Ascensão do Senhor

-- Do comentário ao Evangelho de São João, por São Cirilo de Alexandria, bispo (século IV)

30 de mar. de 2016

Cristo, autor da ressurreição e da vida


Lembrando a felicidade da salvação recuperada, Paulo exclama: assim como por Adão entrou a morte neste mundo, da mesma forma por Cristo foi restituída a salvação ao mundo. (cf. Rm 5,12). E ainda: O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem, que vem do céu, é celeste (1Cor 15,47).

E prossegue, dizendo: Como já refletimos a imagem do homem terreno, isto é, envelhecido pelo pecado, assim também refletimos a imagem do celeste (1Cor 15,49), ou seja, conservaremos a salvação do homem recuperado, redimido, renovado e purificado em Cristo. Segundo o mesmo Apóstolo, Cristo é o princípio, quer dizer, é o autor da ressurreição e da vida; em seguida, vêm os que são de Cristo, isto é, os que vivendo na imitação da sua santidade, podem considerar-se sempre seguros na esperança da sua ressurreição e receber com ele a glória da promessa celeste. É o próprio Senhor quem afirma no Evangelho: Quem me segue não perecerá, mas passará da morte para a vida (cf. Jo 5,24). 

Deste modo, a paixão do Salvador é a salvação da vida humana. Precisamente para isso ele quis morrer por nós, a fim de que, acreditando nele, vivamos para sempre. Ele quis, por algum tempo, tornar-se o que somos, para que, alcançando a sua promessa de eternidade, vivamos com ele para sempre. 

É esta a imensa graça dos mistérios celestes, é este o dom da Páscoa, é esta a grande festa anual tão esperada, é este o princípio da nova criação. 

Nesta solenidade, os novos filhos que são gerados nas águas vivificantes da santa Igreja, com a simplicidade de crianças recém-nascidas, fazem ouvir o balbuciar da sua consciência inocente. Nesta solenidade, os pais e mães cristãos obtêm, por meio da fé, uma nova e inumerável descendência. 

Nesta solenidade, à sombra da árvore da fé, brilha o esplendor dos círios com o fulgor que irradia da pura fonte batismal. Nesta solenidade, desce do céu o dom da graça que santifica os recém-nascidos e o sacramento espiritual do admirável mistério que os alimenta. 

Nesta solenidade, a assembleia dos fiéis, alimentada no regaço materno da santa Igreja, formando um só povo e uma só família, adorando a Unidade da natureza divina e o nome da Trindade, canta com o Profeta o salmo da grande festa anual: Este é o dia que o Senhor fez para nós, alegremo-nos e nele exultemos (Sl 117,24).

Mas, pergunto, que dia é este? Precisamente, aquele que nos trouxe o princípio da vida, a origem e o autor da luz, o próprio Senhor Jesus Cristo que de si mesmo afirma: Eu sou a luz. Se alguém caminha de dia, não tropeça (Jo 8,12; 11,9), quer dizer, aquele que em todas as coisas segue a Cristo, chegará, seguindo os seus passos, ao trono da eterna luz. Assim pedia ele ao Pai em nosso favor, quando ainda vivia em seu corpo mortal, ao dizer: Pai, quero que onde eu estou, aí estejam também os que acreditaram em mim; para que assim como tu estás em mim e eu em ti, assim também eles estejam em nós (cf. Jo 17,20s). 

-- Da Homilia pascal de um Autor antigo 

27 de mar. de 2016

A beleza salvará o mundo

"A beleza salvará o mundo". Kiko Arguello, iniciador do Caminho Neocatemunal, cita esta frase muitas vezes em suas catequeses. Como artista é certo que o conceito de beleza lhe interessava, e, em algum momento, deve ter se deparado com esta frase. Mesmo após ouvi-la muitas vezes no Caminho, sempre pensei sobre seu significado, afinal, num pensamento simplista, a salvação é Jesus Cristo, não a beleza. Então, o que está por trás desta frase?
Dostoiévski (1821-1881)

Para começar, vamos às origens da frase. Ela é do escritor russo Dostoievski, no livro O idiota; é uma fala do personagem principal, Princípe Myskin, um nobre russo que sofre de epilepsia, atormentado pela doença, mas ainda capaz de ver além das aparências.  Do seu sofrimento, ele afirma que a beleza salvará o mundo, não a riqueza ou a ciência.

1. A beleza da criação pode conduzir a Deus

A frase é muito conhecida, apenas para citar um exemplo atual, na homília desta Sexta-Feira Santa (2016), Frei Cantalamessa, o pregador do Vaticano, a utilizou para falar de Jesus Cristo. Para ele, a salvação é a misericórdia de Deus que resgata a humanidade do sofrimento.

O Papa Bento XVI, em um encontro com artistas (21/Nov/2009), comentou:  A expressão de Dostoievsky que estou para citar é sem dúvida ousada e paradoxal, mas convida a refletir: "A humanidade pode viver – diz ele – sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo. Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto". Faz-lhe eco o pintor Georges Braque: "A arte existe para perturbar, enquanto a ciência tranquiliza". A beleza chama a atenção, mas precisamente assim recorda ao homem o seu destino último, volta a pô-lo em marcha, enche-o de nova esperança, dá-lhe a coragem de viver até ao fim o dom único da existência.  

Então temos a afirmação que o ser humano precisa da beleza para ordenar o mundo, até mesmo acima do alimento. Viver sem beleza é viver sem esperança, uma espécie de não-vida. É a beleza que dá esperança, faz o o homem viver. 

Nesta afirmação Dostoiévski e o Papa Bento XVI não estão sozinhos. Também São Basílio Magno afirmou que "Por sua natureza, o homem deseja a beleza, e a deseja imensamente. Platão disse que a beleza é o esplendor da verdade" (Veritatis Splendor). Jesus Cristo completa: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Se a beleza salvará o mundo, Jesus Cristo, o Verbo incarnado, será sua face visível". Santo Agostinho, no livro As Confissões, referindo-se a Cristo, escreveu: "Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova".     

Ainda mais surpreendente é reler o primeiro capítulo do livro do Gênesis, quando a criação é relatada. A cada passo, repete-se que Deus viu que a criação era boa, e Ele pode proceder para o passo (dia) seguinte. Pois bem, a palavra hebraica empregada nos originais poderia ser muito bem traduzida por "belo"; a cada momento da criação, Deus via que estava criando formas belas. E sim, contemplando a natureza, a vastidão do mar, as montanhas, os rios, o ser humano é capaz de compreender que uma força superior à humanidade o criou, e que o mundo é belo.

2.  A beleza não estaria em Jesus Cristo

A imagem mais conhecida de Cristo é na Cruz, torturado e morrendo, coberto de sangue. Certamente não é uma imagem bela, quem assistiu ao filme a Paixão de Cristo deve recordar bem da aparência nada inspiradora de Cristo.

Mesmo na Bíblia, o profeta Isaías assim se refere ao Messias: As multidões ficaram pasmadas diante dele, pois ele não tinha mais figura humana e sua aparência não era mais de homem (Is 52, 14). E também: não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formusura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens (Is 53, 2b-3a).
O corpo de Cristo morto na tumba, de Hans Holbein (1521)

Também recorrendo a Dostoiésvki, na Encíclica Lumen Fidei, o Papa Francisco afirmou: Na sua obra O Idiota, Dostoiévski faz o protagonista — o príncipe Myskin — dizer, à vista do quadro de Cristo morto no sepulcro, pintado por Hans Holbein: "Aquele quadro poderia mesmo fazer perder a fé a alguém"; de fato, o quadro representa, de forma muito crua, os efeitos destruidores da morte no corpo de Cristo. E todavia é precisamente na contemplação da morte de Jesus que a fé se reforça e recebe uma luz fulgurante, é quando ela se revela como fé no seu amor inabalável por nós, que é capaz de penetrar na morte para nos salvar. Neste amor que não se subtraiu à morte para manifestar quanto me ama, é possível crer; a sua totalidade vence toda e qualquer suspeita e permite confiar-nos plenamente a Cristo.

Mas se a beleza salvará o mundo e Cristo não era belo, pode-se concluir que Cristo não salvará o mundo! Mas a afirmação claríssima dos Evangelhos, dos santos e de toda Igreja é que Cristo é a Salvação. E é óbvio que aqui não se afirmará nada diferente.

3. A beleza de Cristo, salvação do mundo

No dia da Ressurreição, dois discípulos estavam a caminho de Emaús. Segundo São Lucas, "o próprio Jesus aproximou-se e pos-se a caminhar com eles; seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhecê-los" (Lc 24, 15). Apenas muito tempo depois, quando Cristo abençoou o pão, seus "olhos se abriram e o reconheceram; ele porém ficou invisível diante deles" (Lc24, 31). Como discípulos que haviam convivido anos com Ele por anos não o reconheceram?

Na aparição aos discípulos, exceto Tomé, também parece haver uma dúvida sobre quem se tratava. O Evangelho de São João (Jo 20, 19-20) narra que "Jesus veio e, pondo-se no meio deles, lhes disse: "A paz esteja convosco!" Tendo dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado, Os discípulos então ficaram cheios de alegria por verem o Senhor." Ou seja, os discípulos se alegram não no momento da saudação inicial, como se nem mesmo a voz tivessem reconhecido. Foi preciso mostrar mãos e lado onde a lança penetrou para que vissem ser mesmo Cristo. Só então se alegraram. 

Por que esta dificuldade em reconhecer a Cristo? Segundo a Bíblia de Jerusalém, a razão disso é que permanecendo inteiramente idêntico a si mesmo, o corpo do Ressuscitado encontra-se num estado novo, que modifica sua forma exterior e o liberta das aparências deste mundo. 

Aparição de Cristo para Maria Madalena após a Ressurreição, pintado por
Alexander Ivanov (1835) 
Em 1Cor 15,44, afirma-se: Semeado corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. São Paulo explica que o corpo natural, terrestre, será revestido de um novo corpo, o corpo espiritual. Os mortos surgiram renovados, em um corpo coberto pela glória. É este corpo renovado, espiritual, que os discípulos tem dificuldade de reconhecer. 

Do corpo glorioso de Jesus Cristo Ressuscitado não há repulsa; pelo contrário, com sua visão os discípulos se alegram, como se alegra quem contempla a beleza. O corpo renovado de Cristo ainda pode ter as marcas de seu sofrimento, mas já é sinal da vitória sobre a morte. Após testemunhar Cristo Ressuscitado que os apóstolos partem a anunciá-lo, que podem ousar dizer: ó morte onde está tua vitória, onde está teu aguilhão? 

O corpo ressuscitado e glorioso é a beleza que traz a salvação, Cristo não terminou na cruz, mas subiu aos céus e está sentado a direita de Deus Pai. Como disse o Papa Bento XVI, é esta beleza que recorda ao homem o seu destino final e o enche-o de esperança. Cristo é a beleza a ser amada, Ele é a face visível da vida eterna.

No Cântico dos Cânticos, a amada Igreja assim descreve se refere a Cristo: Como és belo, meu amado, e que doçura! (Ct 1,16); por ti, estou doente de amor (Ct 2,5b); sua cabeça é ouro puro, uma copa de palmeira seus cabelos, negros como o corvo. Seus olhos são pombas à beira de águas correntes: banham-se no leite e repousam na margem. Suas faces são canteiros de bálsamo, colinas perfumadas; seus lábios são lírios com mirra, que flui e se derrama. Seus braços são torneados em ouro, incrustado com pedras preciosas. Seu ventre é blobo de marfim cravejado com safiras. Suas pernas, colunas de mármore firmados em bases de ouro puro. Seu aspecto é o do Líbano altaneiro, como um cedro. Sua boca é muito doce... Ele todo é uma delícia! (Ct 5,10-16). 

É a beleza deste Cristo Ressuscitado, corpo glorioso, que a Igreja deve anunciar, tanto esteticamente quanto através da palavra, é o Cristo que venceu a morte que deve ser destacado, Toda liturgia, cantos, arquitetura e estética de uma igreja deve colocar a Salvação do mundo no centro, as leituras, homília e catequeses devem sempre falar do mistério pascal, da beleza de Cristo Ressuscitado que nos traz a salvação.

-- autoria própria, na Páscoa de 2016

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