27 de mar. de 2016

A beleza salvará o mundo

"A beleza salvará o mundo". Kiko Arguello, iniciador do Caminho Neocatemunal, cita esta frase muitas vezes em suas catequeses. Como artista é certo que o conceito de beleza lhe interessava, e, em algum momento, deve ter se deparado com esta frase. Mesmo após ouvi-la muitas vezes no Caminho, sempre pensei sobre seu significado, afinal, num pensamento simplista, a salvação é Jesus Cristo, não a beleza. Então, o que está por trás desta frase?
Dostoiévski (1821-1881)

Para começar, vamos às origens da frase. Ela é do escritor russo Dostoievski, no livro O idiota; é uma fala do personagem principal, Princípe Myskin, um nobre russo que sofre de epilepsia, atormentado pela doença, mas ainda capaz de ver além das aparências.  Do seu sofrimento, ele afirma que a beleza salvará o mundo, não a riqueza ou a ciência.

1. A beleza da criação pode conduzir a Deus

A frase é muito conhecida, apenas para citar um exemplo atual, na homília desta Sexta-Feira Santa (2016), Frei Cantalamessa, o pregador do Vaticano, a utilizou para falar de Jesus Cristo. Para ele, a salvação é a misericórdia de Deus que resgata a humanidade do sofrimento.

O Papa Bento XVI, em um encontro com artistas (21/Nov/2009), comentou:  A expressão de Dostoievsky que estou para citar é sem dúvida ousada e paradoxal, mas convida a refletir: "A humanidade pode viver – diz ele – sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo. Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto". Faz-lhe eco o pintor Georges Braque: "A arte existe para perturbar, enquanto a ciência tranquiliza". A beleza chama a atenção, mas precisamente assim recorda ao homem o seu destino último, volta a pô-lo em marcha, enche-o de nova esperança, dá-lhe a coragem de viver até ao fim o dom único da existência.  

Então temos a afirmação que o ser humano precisa da beleza para ordenar o mundo, até mesmo acima do alimento. Viver sem beleza é viver sem esperança, uma espécie de não-vida. É a beleza que dá esperança, faz o o homem viver. 

Nesta afirmação Dostoiévski e o Papa Bento XVI não estão sozinhos. Também São Basílio Magno afirmou que "Por sua natureza, o homem deseja a beleza, e a deseja imensamente. Platão disse que a beleza é o esplendor da verdade" (Veritatis Splendor). Jesus Cristo completa: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Se a beleza salvará o mundo, Jesus Cristo, o Verbo incarnado, será sua face visível". Santo Agostinho, no livro As Confissões, referindo-se a Cristo, escreveu: "Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova".     

Ainda mais surpreendente é reler o primeiro capítulo do livro do Gênesis, quando a criação é relatada. A cada passo, repete-se que Deus viu que a criação era boa, e Ele pode proceder para o passo (dia) seguinte. Pois bem, a palavra hebraica empregada nos originais poderia ser muito bem traduzida por "belo"; a cada momento da criação, Deus via que estava criando formas belas. E sim, contemplando a natureza, a vastidão do mar, as montanhas, os rios, o ser humano é capaz de compreender que uma força superior à humanidade o criou, e que o mundo é belo.

2.  A beleza não estaria em Jesus Cristo

A imagem mais conhecida de Cristo é na Cruz, torturado e morrendo, coberto de sangue. Certamente não é uma imagem bela, quem assistiu ao filme a Paixão de Cristo deve recordar bem da aparência nada inspiradora de Cristo.

Mesmo na Bíblia, o profeta Isaías assim se refere ao Messias: As multidões ficaram pasmadas diante dele, pois ele não tinha mais figura humana e sua aparência não era mais de homem (Is 52, 14). E também: não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formusura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens (Is 53, 2b-3a).
O corpo de Cristo morto na tumba, de Hans Holbein (1521)

Também recorrendo a Dostoiésvki, na Encíclica Lumen Fidei, o Papa Francisco afirmou: Na sua obra O Idiota, Dostoiévski faz o protagonista — o príncipe Myskin — dizer, à vista do quadro de Cristo morto no sepulcro, pintado por Hans Holbein: "Aquele quadro poderia mesmo fazer perder a fé a alguém"; de fato, o quadro representa, de forma muito crua, os efeitos destruidores da morte no corpo de Cristo. E todavia é precisamente na contemplação da morte de Jesus que a fé se reforça e recebe uma luz fulgurante, é quando ela se revela como fé no seu amor inabalável por nós, que é capaz de penetrar na morte para nos salvar. Neste amor que não se subtraiu à morte para manifestar quanto me ama, é possível crer; a sua totalidade vence toda e qualquer suspeita e permite confiar-nos plenamente a Cristo.

Mas se a beleza salvará o mundo e Cristo não era belo, pode-se concluir que Cristo não salvará o mundo! Mas a afirmação claríssima dos Evangelhos, dos santos e de toda Igreja é que Cristo é a Salvação. E é óbvio que aqui não se afirmará nada diferente.

3. A beleza de Cristo, salvação do mundo

No dia da Ressurreição, dois discípulos estavam a caminho de Emaús. Segundo São Lucas, "o próprio Jesus aproximou-se e pos-se a caminhar com eles; seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhecê-los" (Lc 24, 15). Apenas muito tempo depois, quando Cristo abençoou o pão, seus "olhos se abriram e o reconheceram; ele porém ficou invisível diante deles" (Lc24, 31). Como discípulos que haviam convivido anos com Ele por anos não o reconheceram?

Na aparição aos discípulos, exceto Tomé, também parece haver uma dúvida sobre quem se tratava. O Evangelho de São João (Jo 20, 19-20) narra que "Jesus veio e, pondo-se no meio deles, lhes disse: "A paz esteja convosco!" Tendo dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado, Os discípulos então ficaram cheios de alegria por verem o Senhor." Ou seja, os discípulos se alegram não no momento da saudação inicial, como se nem mesmo a voz tivessem reconhecido. Foi preciso mostrar mãos e lado onde a lança penetrou para que vissem ser mesmo Cristo. Só então se alegraram. 

Por que esta dificuldade em reconhecer a Cristo? Segundo a Bíblia de Jerusalém, a razão disso é que permanecendo inteiramente idêntico a si mesmo, o corpo do Ressuscitado encontra-se num estado novo, que modifica sua forma exterior e o liberta das aparências deste mundo. 

Aparição de Cristo para Maria Madalena após a Ressurreição, pintado por
Alexander Ivanov (1835) 
Em 1Cor 15,44, afirma-se: Semeado corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. São Paulo explica que o corpo natural, terrestre, será revestido de um novo corpo, o corpo espiritual. Os mortos surgiram renovados, em um corpo coberto pela glória. É este corpo renovado, espiritual, que os discípulos tem dificuldade de reconhecer. 

Do corpo glorioso de Jesus Cristo Ressuscitado não há repulsa; pelo contrário, com sua visão os discípulos se alegram, como se alegra quem contempla a beleza. O corpo renovado de Cristo ainda pode ter as marcas de seu sofrimento, mas já é sinal da vitória sobre a morte. Após testemunhar Cristo Ressuscitado que os apóstolos partem a anunciá-lo, que podem ousar dizer: ó morte onde está tua vitória, onde está teu aguilhão? 

O corpo ressuscitado e glorioso é a beleza que traz a salvação, Cristo não terminou na cruz, mas subiu aos céus e está sentado a direita de Deus Pai. Como disse o Papa Bento XVI, é esta beleza que recorda ao homem o seu destino final e o enche-o de esperança. Cristo é a beleza a ser amada, Ele é a face visível da vida eterna.

No Cântico dos Cânticos, a amada Igreja assim descreve se refere a Cristo: Como és belo, meu amado, e que doçura! (Ct 1,16); por ti, estou doente de amor (Ct 2,5b); sua cabeça é ouro puro, uma copa de palmeira seus cabelos, negros como o corvo. Seus olhos são pombas à beira de águas correntes: banham-se no leite e repousam na margem. Suas faces são canteiros de bálsamo, colinas perfumadas; seus lábios são lírios com mirra, que flui e se derrama. Seus braços são torneados em ouro, incrustado com pedras preciosas. Seu ventre é blobo de marfim cravejado com safiras. Suas pernas, colunas de mármore firmados em bases de ouro puro. Seu aspecto é o do Líbano altaneiro, como um cedro. Sua boca é muito doce... Ele todo é uma delícia! (Ct 5,10-16). 

É a beleza deste Cristo Ressuscitado, corpo glorioso, que a Igreja deve anunciar, tanto esteticamente quanto através da palavra, é o Cristo que venceu a morte que deve ser destacado, Toda liturgia, cantos, arquitetura e estética de uma igreja deve colocar a Salvação do mundo no centro, as leituras, homília e catequeses devem sempre falar do mistério pascal, da beleza de Cristo Ressuscitado que nos traz a salvação.

-- autoria própria, na Páscoa de 2016

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