Sofrimento do pobre
A bela cor do ouro te alegra extremamente, mas não pensas quantos e quais gemidos do indigente te acompanham.
Como poderei pôr sob teus olhos os sofrimentos do pobre? Eles, olhando ao redor, vêem que não há ouro nem haverá jamais: os utensílios e as vestes, que costumam ser os bens dos pobres, são todos de valor insignificante. Que fará? Olha para os filhos e decide conduzi-los ao mercado para se livrar da morte. Imagina tu o conflito entre a miséria da fome e o sentimento paterno: a fome ameaça de morte deplorável, a natureza, ao invés, o induz a morrer juntamente com os filhos. Mais vezes se decide, mais vezes desiste: finalmente sucumbe oprimido pela necessidade e pela inelutável penúria.
Como raciocina o pai? "Quem venderei primeiro? Qual será preferido pelo mercador? Decidir-me-ei pelo primogênito? Mas sua idade me envergonha. Pelo mais jovem? Tenho muita compaixão pela sua juventude sem experiência das desgraças. Este conserva bem a fisionomia dos pais, aquele a boa inclinação para os estudos. Terrível angústia! Que será de mim? Qual deles irei ofender? De qual fera tomarei o coração? Como esquecerei a natureza? Se conservo a todos, vê-los-ei se consumir por este flagelo. Se não vendo um, com que olhos olharei aqueles que me restaram? Esses, doravante suspeitos, me considerarão traidor. Como habitarei em minha casa, privado pela minha culpa dos filhos? Como poderei me sentar a uma mesa posta com tal preço?"
Finalmente ele parte, chorando lágrimas quentes, para vender seu filho mais querido. A dor não te comove e não levas em consideração a sua natureza. A fome mantém prisioneiro o infeliz e tu temporizas e te fazes de surdo, agravando desse modo a dilaceração. Tu não só não sentes paralisar a mão ao aceitar o preço de tal infortúnio, mas ainda regateias sobre o preço; e disputas como, recebendo muito, poderias dar ainda menos, agravando ainda mais a desgraça do infeliz. Suas lágrimas não te comovem, seu gemido não amolece teu coração, ao contrário, permaneces inflexível e implacável. Em tudo e por tudo, só vês ouro: imaginas o ouro; dormindo, sonhas com ouro; desperto, o cobiças. Como quem está atacado pela febre não vê a realidade, mas delira por causa do mal, assim tua alma, possuída pela cobiça das riquezas, vê, em tudo, ouro e prata. A vista do ouro te é mais importante do que a do sol. Fazes voto para que tudo se trans- forme em ouro para que possas obtê-lo.
Insaciável fome de ouro
O que não fazes pelo ouro? Para ti o trigo se torna ouro, o vinho se solidifica em ouro, a lã se transforma em ouro; todas as mercadorias, em suma, e todos os projetos te levam ao ouro. O ouro se reproduz por si mesmo, multiplicando-se com os lucros. E não estás jamais saciado e tuas ambições não têm limites.
Estultícia do rico
Por vezes, condescendemos com as crianças gulosas permitindo que se fartem à vontade daquilo que desejam, para que a saciedade exagerada lhes provoque a náusea. Nada disso acontece com o avaro; quanto mais- se enche, mais deseja. "Quando vossa riqueza prospera, não ponhais nela vosso coração" (Sl 61,11).
Tu, ao contrário, seguras o que te escapa e fechas com muros as saídas. Bloqueado, estagnado desta maneira, que coisa te fazem? Arrebentará os obstáculos e, porque até agora trancado com violência e a transbordar, arrasará os armazéns, esvaziará os celeiros do rico, como se ali entrasse um inimigo que avança. Não há garantia de que os deixará assim destruídos ao seu herdeiro. De fato, muito mais depressa será ele levado para outro lugar do que construídos aqueles celeiros, conforme seu projeto ambicioso. Ele, portanto, por seus pensamentos iníquos, teve um fim conveniente. Vós, porém, dai-me ouvidos: escancarai todas as portas dos depósitos, com toda a liberalidade permiti que a riqueza saia livremente. Como um grande rio irriga e fecunda a terra por milhares de canais, assim vós dai livre curso às riquezas para que possam chegar à casa dos pobres.
Os poços, donde se extrai com freqüência a água, jorram água mais fácil e copiosa; deixados sem uso, as águas se corrompem. Da mesma maneira, a riqueza trancada é inútil e prejudicial, mas a que se movimenta e passa de um a outro é benéfica para todos e frutuosa. Oh! quantos louvores receberão daqueles que foram beneficiados! Que tu não o desprezes! Que éopiosa recompensa terás do justo juiz! Dela não duvides tu! De todos os lados vêm a teu encontro exemplos de ricos acusados diante do tribunal. Aqueles que guardam os bens que já possuem e se angustiam pelos futuros, sem saberem se estarão vivos no dia de amanhã; o amanhã lhes fará perder o hoje. Ainda não chegara nenhum suplicante, e ele já se antecipa com ferocidade. Não recolhera ainda os frutos, e ele já recebe a condenação pela avareza. A terra prometia seus frutos pondo à mostra a messe luxuriante: nos campos lavrados, anuncia-se abundante o trigo; muitos cachos se mostram nos sarmentos.
Carregada de frutos, a oliveira se oferece, junto com todas as espécies de delícias. Inábil e estéril era aquele rico, porque, sem ter ainda alguma coi- sa, já augurava o mal aos necessitados. E, no entanto, quantos perigos antes da colheita! De fato, ora o granizo quebra, ora o calor ardente rouba das mãos, ora a chuva, fora do tempo, precipitando-se, estraga os frutos. Por que então não pedes ao Senhor que leve a termo o seu dom? Mas, apoderando-te dele antecipadamente, tu te tornas-te indigno de receber o prometido.
-- parte II da Homília sobre a riqueza e a avareza, São Basílio (século IV)
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