25 de set. de 2017

Homília sobre a avareza e o rico (Lc 12,16-21)

Dupla é a espécie da tentação: de um lado, as tribulações que põem à prova o coração como o ouro no crisol (cf. Sb 3,6) mostram quanto há nelas de bom na prática da paciência; de outro lado, a própria prosperidade da vida, que para a maior parte das pessoas se torna freqüentemente uma prova, dado que é igualmente difícil manter-se seguro o ânimo nas adversidades e não se deixar dominar pelo orgulho e pela arrogância no meio das dificuldades. Exemplo da primeira espécie de tentação é o grande Jó, campeão imbatível, que suportou os violentos assaltos do demônio, semelhantes ao ímpeto de uma torrente, com ânimo imperturbável e com propósito irremovível; e nas tentações tanto se mostrou superior, quanto maiores e árduas apareciam as lutas que empreendeu com o adversário.

Das tentações que derivam da prosperidade da vida, temos muitíssimos exemplos: entre outros, aquele rico cuja história acabamos de ler. Este homem, além das riquezas que possuía, desejava ainda outras. A misericórdia de Deus, ao invés de condená-lo imediatamente por sua ingratidão, às riquezas de antes ajuntava sempre novas, querendo com isso convidá-lo a ser liberal e benigno, uma vez saciado abundantemente. "As terras de um rico - diz, de o Evangelho - deram uma abundante colheita. E ele refletia consigo mesmo: Que farei? Demolirei meus celeiros e construirei outros maiores" (Lc 12,16-18). 

Por que deram tão abundante colheita as terras daquele homem que, na abundância, não soubera tirar nenhum proveito? Para que melhor aparecesse a longanimidade de Deus, a bondade daquele que se estende também a este. Deus, de fato, "faz chover sobre justos e injustos e faz nascer o sol sobre os bons e os maus" (Mt 5,45). Tal bondade de Deus, porém, acumula sobre a cabeça dos maus maiores castigos. Ela faz cair a chuva sobre o campo cultivado por mãos avaras e dá o sol que aquece a semente e multiplica abundantemente os frutos. 

A generosidade de Deus 
Eis quanto provém de Deus: fertilidade do solo, condições atmosféricas propícias, abundância das sementes, a ajuda dos bois e outros elementos que contribuem para o incremento da agricultura. 

E da parte do homem? Dureza de coração, misantropia e avareza: é dessa maneira que o homem agradece ao próprio benfeitor. Não se recordou da comunhão de natureza, não pensou que precisava dividir o supérfluo entre os indigentes, não levou em conta o mandamento: "Não negues um benefício ao necessitado" (Pr 3,27). "A caridade e a confiança não te abandonem" (Pr 3,3). "Reparte o pão com o faminto" (Is 58,7). Permaneceu surdo ao grito de todos os profetas e de todos os mestres. 

A avareza do homem 
Os celeiros, pequenos demais para abrigar tanta abundância, são destruídos, mas o coração avaro não estava satisfeito. Com o advento de novas riquezas às antigas e com os proventos de cada ano, aumentava a abundância. Estava o homem rico neste dilema, do qual não sabia como desembaraçar-se: não queria desfazer-se dos velhos, por avareza; não podia recolher o novo, por causa da abundância. Por isso, atormentava-se sem chegar a nenhuma conclusão: "Que farei?". Quem não se comoveria por um homem assim atormentado? Consternado pela prosperidade, é um mísero pelos bens que possui; mais mísero ainda pelos que viriam. 

Se a terra não lhe produz os proventos, cai em gemidos constantes. Se se acumulam frutos abundantes? Aflições, penas, angústias cruéis! Lamenta-se como um pobre. Não exclama, talvez, da mesma maneira de quem está na indigência? "Que farei? O que comerei? Como me vestirei?"

Assim vai repetindo, em alta voz, o rico. Leva no coração o tormento, a ansiedade o aflige, porque aquilo que a outros torna alegres, consome pela preocupação o avaro. A casa está abarrotada de tudo, porém, ele não se alegra. Pelo contrário, aqueles bens que afluem de todas as partes e que transbordam os celeiros torturam-lhe a alma por temor de que, escapando para fora alguma migalha, os necessitados possam se aproveitar delas. 

Parece-me que a paixão destes se assemelha à dos glutões, que preferem arrebentar-se pela voracidade antes que deixar alguma sobra aos necessitados. 

O homem é administrador dos dons divinos 
Reconhece, ó homem, o teu doador. Recorda-te de ti mesmo: quem sou, que coisa administra, de quem recebeste, porque foste preferido entre muitos. És servidor da bondade de Deus, administrador dos teus companheiros de servidão. Não creias que tudo seja destinado a teu ventre. Considera os bens que estão nas tuas mãos como coisa de outros: por breve tempo alegram-te, depois deslizam e desaparecem rapidamente; àeles deverás prestar contas pormenorizadas. 

Embora tenhas tudo bem fechado com portas trancadas, amarrado e selado, todavia, as preocupações te impedem o sono. Ruminas dentro de ti, estulto conselheiro de ti mesmo: "Que farei?". Seria, ao invés, ocasião de dizer: saciarei quem tem fome, abrirei meus celeiros e chamarei todos os indigentes. Imitarei o benéfico edito de José: "Quantos não tenham pão, vinde a mim; tome cada um o suficiente do dom concedido por Deus, como de uma fonte comum" (Gn 47,13-26).

Por que não és assim também tu? Tens medo de que outros tirem proveito destes bens e, ruminando na alma sentimentos maus, meditas, não tanto como distribuir a cada um segundo a necessidade, mas como ajuntar ainda mais bens e tirar de todos os proventos para ti. 

Já haviam chegado aqueles que lhe pediriam a alma (cf. Lc 12,20) e ele confabulava consigo sobre alimentação; naquela mesma noite o levariam deste mundo (cf. Lc 12,20) e ele fantasiava gozar ainda por muitos anos. Foi-lhe deixado desejar tudo, expressar seu pensamento, para que seu propósito sofresse a sentença que merecia. 

Exortação aos ricos 
Toma cuidado para que não te aconteça o mesmo! Estas coisas foram escritas para que evitemos semelhante destino. Imita a terra, ó homem, e produz frutos à sua semelhança: não sejas pior que a criatura inanimada. A terra produz frutos não para o proveito próprio, antes para tua sustentação. Tu, no entanto, qualquer fruto de bondade que produzires, recolherás para teu proveito, dado que o mérito das boas obras se reverte para os doadores. Deste ao faminto? O dom se volta para ti e te é restituído com juros. Como o trigo lançado à terra transforma-se em lucro para aquele que o semeou, assim o pão dado ao fa- minto te renderá, a seu tempo, lucro abundante. Põe fim, pois, ao cultivo dos campos e começa a semear para o céu, porque está escrito: "Semeai para vós sementes de justiça" (Os 10,12). 

A generosidade é uma glória para o homem 
"Muito melhor um nome bom que grandes riquezas" (Pr 22,1). Se, pois, as riquezas te parecerem uma grande coisa pela honra que delas deriva, reflete quanto é mais vantajosamente honrável ser chamado pai de inumerá- veis filhos do que ter dinheiro na bolsa. Esta a deixarás aqui, quer queiras quer não; ao invés, a honra conquistada com as boas obras a levarás contigo à face do Senhor, quando todo o povo reunido em torno de ti diante do juiz comum te aclamará provedor, benfeitor e te dará todos os títulos da caridade. Não vês aqueles que gastam o dinheiro nos teatros, nos pugilatos, nas cenas burlescas, nas lutas com as feras -gente que ninguém deveria olhar no rosto? -e tu és tão mesquinho em distribuir, enquanto uma glória bem mais elevada te espera? Deus saberá te acolher, os anjos te louvarão, os homens, todos quantos existiram desde a criação, te aclamarão bem-aventurado. Uma glória eterna, uma coroa de justiça, o reino dos céus serão para ti o prêmio pela distribuição destes bens caducos. Não mais te ocuparás com eles: substitui o empenho pelos bens presentes, por aqueles que esperamos. Coragem, pois! Dispõe generosamente das tuas riquezas, sê ambicioso e generoso no dispensar a quem tem necessidade. Que se possa dizer de ti: "É generoso, distribui de boa vontade aos pobres, a sua justiça permanece para sempre" (Sl 111,9). Não vendas a preço muito alto aproveitando da necessidade, não esperes a carestia para abrir os celeiros, porque "o povo maldiz quem retém o trigo" (Pr 11,26). Não socorrer os famintos por causa do ouro, nem a penúria geral para poderes estar na abundância é inadmissível; não te faças desfrutador das desgraças humanas. Não faças da ira de Deus uma ocasião para aumentar tuas riquezas. Não tornes mais dolorosas as chagas de quem foi golpeado pelos flagelos. 

Tu, ao invés, fixas os olhos no ouro, mas não olhas em face o irmão. Sabes reconhecer a marca da moeda e distinguir a falsa da verdadeira, porém ignoras completamente o irmão necessitado.  

-- parte I da Homília sobre a riqueza e a avareza,  São Basílio (século IV)

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