Dupla é a espécie da tentação: de um lado, as tribulações que põem à prova o coração como o
ouro no crisol (cf. Sb 3,6) mostram quanto há nelas de bom na prática da paciência; de outro lado, a
própria prosperidade da vida, que para a maior parte das pessoas se torna freqüentemente uma
prova, dado que é igualmente difícil manter-se seguro o ânimo nas adversidades e não se deixar
dominar pelo orgulho e pela arrogância no meio das dificuldades. Exemplo da primeira espécie de
tentação é o grande Jó, campeão imbatível, que suportou os violentos assaltos do demônio,
semelhantes ao ímpeto de uma torrente, com ânimo imperturbável e com propósito irremovível; e
nas tentações tanto se mostrou superior, quanto maiores e árduas apareciam as lutas que empreendeu
com o adversário.
Das tentações que derivam da prosperidade da vida, temos muitíssimos exemplos: entre outros,
aquele rico cuja história acabamos de ler. Este homem, além das riquezas que possuía, desejava
ainda outras. A misericórdia de Deus, ao invés de condená-lo imediatamente por sua ingratidão, às
riquezas de antes ajuntava sempre novas, querendo com isso convidá-lo a ser liberal e benigno,
uma vez saciado abundantemente. "As terras de um rico - diz, de o Evangelho - deram uma
abundante colheita. E ele refletia consigo mesmo: Que farei? Demolirei meus celeiros e construirei
outros maiores" (Lc 12,16-18).
Por que deram tão abundante colheita as terras daquele homem que, na abundância, não soubera
tirar nenhum proveito? Para que melhor aparecesse a longanimidade de Deus, a bondade daquele
que se estende também a este. Deus, de fato, "faz chover sobre justos e injustos e faz nascer o sol sobre os bons e os maus" (Mt 5,45). Tal bondade de Deus, porém, acumula sobre a cabeça dos maus
maiores castigos. Ela faz cair a chuva sobre o campo cultivado por mãos avaras e dá o sol que
aquece a semente e multiplica abundantemente os frutos.
A generosidade de Deus
Eis quanto provém de Deus: fertilidade do solo, condições atmosféricas propícias, abundância das
sementes, a ajuda dos bois e outros elementos que contribuem para o incremento da agricultura.
E da parte do homem? Dureza de coração, misantropia e avareza: é dessa maneira que o homem
agradece ao próprio benfeitor. Não se recordou da comunhão de natureza, não pensou que precisava
dividir o supérfluo entre os indigentes, não levou em conta o mandamento: "Não negues um
benefício ao necessitado" (Pr 3,27). "A caridade e a confiança não te abandonem" (Pr 3,3). "Reparte
o pão com o faminto" (Is 58,7). Permaneceu surdo ao grito de todos os profetas e de todos os
mestres.
A avareza do homem
Os celeiros, pequenos demais para abrigar tanta abundância, são destruídos, mas o coração avaro
não estava satisfeito. Com o advento de novas riquezas às antigas e com os proventos de cada ano,
aumentava a abundância. Estava o homem rico neste dilema, do qual não sabia como desembaraçar-se:
não queria desfazer-se dos velhos, por avareza; não podia recolher o novo, por causa da
abundância. Por isso, atormentava-se sem chegar a nenhuma conclusão: "Que farei?". Quem não se
comoveria por um homem assim atormentado? Consternado pela prosperidade, é um mísero pelos
bens que possui; mais mísero ainda pelos que viriam.
Se a terra não lhe produz os proventos, cai em gemidos constantes. Se se acumulam frutos
abundantes? Aflições, penas, angústias cruéis! Lamenta-se como um pobre. Não exclama, talvez, da
mesma maneira de quem está na indigência? "Que farei? O que comerei? Como me vestirei?".
Assim vai repetindo, em alta voz, o rico. Leva no coração o tormento, a ansiedade o aflige, porque
aquilo que a outros torna alegres, consome pela preocupação o avaro. A casa está abarrotada de
tudo, porém, ele não se alegra. Pelo contrário, aqueles bens que afluem de todas as partes e que
transbordam os celeiros torturam-lhe a alma por temor de que, escapando para fora alguma migalha,
os necessitados possam se aproveitar delas.
Parece-me que a paixão destes se assemelha à dos glutões, que preferem arrebentar-se pela
voracidade antes que deixar alguma sobra aos necessitados.
O homem é administrador dos dons divinos
Reconhece, ó homem, o teu doador. Recorda-te de ti mesmo: quem sou, que coisa administra, de
quem recebeste, porque foste preferido entre muitos. És servidor da bondade de Deus,
administrador dos teus companheiros de servidão. Não creias que tudo seja destinado a teu ventre.
Considera os bens que estão nas tuas mãos como coisa de outros: por breve tempo alegram-te,
depois deslizam e desaparecem rapidamente; àeles deverás prestar contas pormenorizadas.
Embora tenhas tudo bem fechado com portas trancadas, amarrado e selado, todavia, as
preocupações te impedem o sono. Ruminas dentro de ti, estulto conselheiro de ti mesmo: "Que
farei?". Seria, ao invés, ocasião de dizer: saciarei quem tem fome, abrirei meus celeiros e chamarei
todos os indigentes. Imitarei o benéfico edito de José: "Quantos não tenham pão, vinde a mim; tome
cada um o suficiente do dom concedido por Deus, como de uma fonte comum" (Gn 47,13-26).
Por que não és assim também tu? Tens medo de que outros tirem proveito destes bens e, ruminando
na alma sentimentos maus, meditas, não tanto como distribuir a cada um segundo a necessidade,
mas como ajuntar ainda mais bens e tirar de todos os proventos para ti.
Já haviam chegado aqueles que lhe pediriam a alma (cf. Lc 12,20) e ele confabulava consigo sobre
alimentação; naquela mesma noite o levariam deste mundo (cf. Lc 12,20) e ele fantasiava gozar
ainda por muitos anos. Foi-lhe deixado desejar tudo, expressar seu pensamento, para que seu
propósito sofresse a sentença que merecia.
Exortação aos ricos
Toma cuidado para que não te aconteça o mesmo! Estas coisas foram escritas para que evitemos
semelhante destino.
Imita a terra, ó homem, e produz frutos à sua semelhança: não sejas pior que a criatura inanimada.
A terra produz frutos não para o proveito próprio, antes para tua sustentação. Tu, no entanto,
qualquer fruto de bondade que produzires, recolherás para teu proveito, dado que o mérito das boas
obras se reverte para os doadores. Deste ao faminto? O dom se volta para ti e te é restituído com
juros. Como o trigo lançado à terra transforma-se em lucro para aquele que o semeou, assim o pão
dado ao fa- minto te renderá, a seu tempo, lucro abundante. Põe fim, pois, ao cultivo dos campos e
começa a semear para o céu, porque está escrito: "Semeai para vós sementes de justiça" (Os 10,12).
A generosidade é uma glória para o homem
"Muito melhor um nome bom que grandes riquezas" (Pr 22,1). Se, pois, as riquezas te parecerem
uma grande coisa pela honra que delas deriva, reflete quanto é mais vantajosamente honrável ser
chamado pai de inumerá- veis filhos do que ter dinheiro na bolsa. Esta a deixarás aqui, quer queiras
quer não; ao invés, a honra conquistada com as boas obras a levarás contigo à face do Senhor,
quando todo o povo reunido em torno de ti diante do juiz comum te aclamará provedor, benfeitor e
te dará todos os títulos da caridade. Não vês aqueles que gastam o dinheiro nos teatros, nos
pugilatos, nas cenas burlescas, nas lutas com as feras -gente que ninguém deveria olhar no rosto? -e
tu és tão mesquinho em distribuir, enquanto uma glória bem mais elevada te espera? Deus saberá te
acolher, os anjos te louvarão, os homens, todos quantos existiram desde a criação, te aclamarão
bem-aventurado. Uma glória eterna, uma coroa de justiça, o reino dos céus serão para ti o prêmio
pela distribuição destes bens caducos. Não mais te ocuparás com eles: substitui o empenho pelos
bens presentes, por aqueles que esperamos. Coragem, pois! Dispõe generosamente das tuas
riquezas, sê ambicioso e generoso no dispensar a quem tem necessidade. Que se possa dizer de ti:
"É generoso, distribui de boa vontade aos pobres, a sua justiça permanece para sempre" (Sl 111,9).
Não vendas a preço muito alto aproveitando da necessidade, não esperes a carestia para abrir os
celeiros, porque "o povo maldiz quem retém o trigo" (Pr 11,26). Não socorrer os famintos por causa
do ouro, nem a penúria geral para poderes estar na abundância é inadmissível; não te faças
desfrutador das desgraças humanas. Não faças da ira de Deus uma ocasião para aumentar tuas
riquezas. Não tornes mais dolorosas as chagas de quem foi golpeado pelos flagelos.
Tu, ao invés, fixas os olhos no ouro, mas não olhas em face o irmão. Sabes reconhecer a marca da
moeda e distinguir a falsa da verdadeira, porém ignoras completamente o irmão necessitado.
-- parte I da Homília sobre a riqueza e a avareza, São Basílio (século IV)
Nenhum comentário:
Postar um comentário