Aqueles com quem vivemos trazem antiquíssimas inimizades com outros [índios] da mesma nação, e por isso de uma ou outra parte se declara e se aceita frequentemente a guerra, para a qual concorrem muitos de diversos lugares; assim, mesmo estando nós entre eles, partiram contra os inimigos.
Um dia antes de entrarem no combate, os que vinham de outros lugares, começaram a oferecer sacrifícios a seus feiticeiros, a quem chamam de pajés, interrogando-os sobre o que lhes sucederia no conflito. Não só os batizados, mas também outros a quem a palavra de Deus já fora semeada, perguntados se queriam dar créditos àquelas mentiras, responderam que não, e que traziam seu Deus no coração, em cujo auxílio confiavam que alcançariam vitória maior do que com sacrifícios imundos.
Tendo eles entrado em combate e aparecendo a imensa multidão de inimigos, muitos abalados pelo medo e terror, começaram a perder o ânimo. Vendo isso, uma mulher já batizada, que era esposa do chefe da aldeia e partira com ele para a guerra, aconselhou a todos que fizessem o sinal da cruz para perder o temor. Assim revigorados, os inimigos foram desbaratados e dispersos. Dos nossos catecúmenos, nenhum foi feito prisioneiro pelos inimigos, que costumam matá-los e comê-los.
Aqueles feiticeiros de que já falei são tidos por eles em grande estima, por que chupam os outros quando são acometidos de alguma dor e, assim, os livram das doenças e afirmam que tem poder sobre a vida e a morte. Nenhum deles comparece diante de nós, por que descobrimos seus embustes e mentiras. Ocorreu que um destes feiticeiros foi convidado pelo filho de um dos cristãos à sua casa para que o curasse. Ao saber o que fizera seu filho, o pai o repreendeu asperamente, dizendo que não poderia entrar novamente na Igreja e seria assado pelo demônio por dar crédito aos feiticeiros.
Outra criança de quatro ou cinco anos, assaltada de grave enfermidade, rogava muitas vezes em prantos à sua mãe que a levasse ao templo, e gemendo em frente ao altar, pedia em sua própria língua: "Ó Padre curai-me!". Interrogada pelo seu pai se queria que chamassem um dos feiticeiros para aplicar os remédios da tribo, chorando com grande lamentos lançou-se por terra, dizendo que não, que com o auxílio de Deus recuperaria a saúde. O Senhor operou um certo remédio, que aplicado pelos irmãos da Companhia [de Jesus], recobrou a tão esperado saúde do menino.
Esperamos que ainda se colherão muitas graças e favores divinos, frutos dos obreiros de Deus que enviaste para esta tão fecunda vinha, para o maior benefício de Deus. Aqui habitamos presentemente com o Reverendo em Cristo Padre Manuel da Nóbrega, sete irmãos separados da convivência dos portugueses, aplicados tão somente à doutrina dos índios. Temos também conosco alguns índios que abominam os costumes da tribo, pondo em tudo amor ao Pai. Louvor e glória a Deus, de quem todo bem procede.
-- trechos de uma carta de São José de Anchieta escrita em setembro de 1554, quando estava em Piratininga, no atual estado de São Paulo
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