5 de nov. de 2012

Capítulo 22 - Da consideração da miséria humana


A volta do filho pródigo - Rembrandt

  1. Miserável serás, onde quer que estejas e para onde quer que te voltes, se não te voltares para Deus. Por que te afliges, quando não te correm as coisas a teu gosto e vontade? Quem é que tem tudo à medida de seu desejo? Nem eu, nem tu, nem homem algum sobre a terra. Ninguém há no mundo sem nenhuma tribulação ou angústia, quer seja rei quer Papa. Quem é que vive mais feliz? Aquele, de certo, que sabe sofrer alguma coisa por Deus.
  2. Dizem muitos mesquinhos e tíbios: Olhai, que boa vida tem este homem: quão rico é, quão grande e poderoso, de que alta posição! Olha tu para os bens do céu, e verás que nada são os bens corporais, mas muito incertos e onerosos, pois nunca vive sem temor e cuidado quem os possui. Não consiste a felicidade do homem na abundância dos bens temporais; basta-lhe a mediania. O viver na terra é verdadeira miséria. Quanto mais espiritual quer ser o homem, mais amarga lhe será a vida presente, porque conhece melhor e mais claramente vê os defeitos da humana corrupção. Porque o comer, beber, velar, dormir, descansar, trabalhar e estar sujeito a todas as demais grandes misérias e aflições para o homem espiritual que deseja estar isento disto e livre de todo pecado.
  3. Sim, muito oprimido se sente o homem interior com as necessidades corporais neste mundo. Por isto roga o profeta a Deus, devotamente, que o livre delas, dizendo: Livrai-me, Senhor, das minhas necessidades (Sl 24,17). Mas, ai daqueles que não conhecem a sua miséria, e, outra vez, ai daqueles que amam esta miserável e corruptível vida! Porque há alguns tão apegados a ela - posto que mal arranjem o necessário com o trabalho ou com a esmola - que, se pudessem viver aqui sempre, nada se lhes daria do reino de Deus.
  4. Ó insensatos e duros de coração, que tão profundamente jazem apegados à terra, que não gostam senão das coisas carnais. Infelizes! Lá virá o tempo em que hão de sentir, muito a seu custo, como era vil e nulo aquilo que amaram. Os santos de Deus, e todos os fiéis amigos de Cristo, não tinham em conta o que agradava à carne nem o que neste mundo brilhava, mas toda a sua esperança e intenção se fixavam nos bens eternos. Todo o seu desejo se elevava para as coisas invisíveis e perenes, para que o amor do visível não se arrasta a desejar as coisas inferiores. Não percas, irmão meu, a confiança de fazer progressos na vida espiritual; ainda tens tempo e ocasião. 
  5. Por que queres adiar tua resolução? Levanta-te, começa já e dize: Agora é tempo de agir, agora é tempo de pelejar, agora é tempo próprio para me emendar. Quando estás atribulado e aflito, é tempo de merecer. Importa que passes por fogo e água, antes que chegues ao refrigério (Sl 65,12). Se não te fizeres violência, não vencerás os vícios. Enquanto estamos neste frágil corpo, não podemos estar sem pecado, nem viver sem enfado e dor. Bem quiséramos descanso de toda miséria; mas como pelo pecado perdemos a inocência, perdemos também a verdadeira felicidade. Por isso devemos ter paciência, e confiar na divina misericórdia, até que passe a iniqüidade (Sl 52,6), e a vida absorva esta mortalidade (2Cor 5,4).
  6. Como é grande a fragilidade humana, inclinada sempre ao mal! Hoje confessas os teus pecados, e amanhã cometes outra vez os mesmos que confessaste. Resolves agora te acautelar, e daqui a uma hora de portas como quem nada se propôs. Com muita razão nos devemos humilhar e não nos ter em grande conta, já que tão frágeis somos e tão inconstantes. Assim, facilmente se pode perder pela negligência o que tanto nos custou a adquirir com a divina graça.
  7. Que será de nós no fim, se já tão cedo somos tíbios? Ai de nós, se assim procuramos repouso, como se já estivéssemos em paz e segurança, quando nem sinal aparece em nossa vida de verdadeira santidade. Bem necessário nos fora que nos intruíssemos de novo, como bons noviços, nos bons costumes; talvez que assim houvesse esperança de alguma emenda futura e maior progresso espiritual.

-- Do livro "Imitação de Cristo"(século XV)

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