Tobit e Ana com o bode, Rembrandt, 1626. Rijksmuseum (Amsterdam) |
1. "De toda a minha alma louvarei o meu Deus, Rei do céu" (Tb 13, 9). Quem pronuncia estas palavras, no cântico agora proclamado, é o velho Tobit, do qual o Antigo Testamento traça uma breve história edificante, no livro que toma o nome do filho, Tobias.
Para compreender plenamente o sentido deste hino, é preciso considerar as páginas narrativas que o precedem. A história passa-se entre os israelitas exilados em Nínive. O autor sagrado olha para eles, escrevendo muitos séculos depois, para os apontar aos irmãos e irmãs de fé, dispersos no meio de um povo estrangeiro e tentados a abandonar as tradições de seus pais. O retrato de Tobit e da sua família é oferecido como um programa de vida. Ele é o homem que, apesar de tudo, permanece fiel à lei e, em particular, à prática da esmola. Sobre ele se abate a infelicidade com a chegada inesperada da pobreza e da cegueira, mas não lhe falta a fé. E a resposta de Deus não tarda a chegar, através do anjo Rafael, que guia o jovem Tobias numa viagem perigosa, preparando-o para um matrimónio feliz e, enfim, curando o pai Tobit da cegueira.
A mensagem é clara: quem faz o bem, sobretudo abrindo o coração à necessidade do próximo, agradará ao Senhor e, ainda que seja posto à prova, experimentará, por fim, a Sua benevolência.
2. É sobre este fundo que tomam todo o seu realce as palavras do nosso hino. Ele convida a olhar para o alto, para "Deus que vive eternamente", para o seu reino que "dura por todos os séculos". A partir deste olhar voltado para Deus se desenvolve um breve esboço de teologia da história, em que o Autor sagrado procura responder à interrogação que o Povo de Deus, disperso e provado, apresenta a si mesmo: porque é que Deus nos trata assim? A resposta faz um apelo conjunto à justiça e à misericórdia divina: "castiga-vos por causa das vossas iniquidades, mas a seguir, compadece-se de vós" (cf v. 5). O castigo aparece assim como uma espécie de pedagogia divina, onde, todavia, a última palavra é sempre reservada à misericórdia: "Ele castiga e compadece-se, conduz ao sepulcro e dele faz sair; nada existe que escape à sua mão" (v. 2 ).
Podemos, pois, confiar de modo absoluto em Deus, que nunca abandona a sua criatura. Aliás, as palavras do hino conduzem-nos a uma perspectiva, que atribui um significado salvífico à própria situação de sofrimento, fazendo do exílio uma ocasião para testemunhar as obras de Deus: " louvai-O, filhos de Israel, diante dos gentios, porque Ele dispersou-vos no meio deles, para proclamar a sua grandeza" (vv. 3-4).
3. Deste convite a ler o exílio como chave providencial, a nossa meditação pode alargar-se na consideração do sentido misteriosamente positivo que assume a condição de sofrimento, quando é vivida no abandono à vontade de Deus. Algumas passagens no Antigo Testamento, esboçam já este tema. Basta pensar na história narrada pelo livro do Génesis, sobre José vendido pelos irmãos (cf. Gn 37, 2-36) e destinado a ser, no futuro, o seu salvador. E como esquecer o livro de Jó? Aqui, é verdadeiramente o homem inocente que sofre e não encontra explicação para o seu drama, senão confiando na grandeza e sabedoria de Deus (cf. Job 42, 1-6).
Para nós, que lemos cristãmente estas passagens do Antigo Testamento, o ponto de referência não pode deixar de ser a Cruz de Cristo, na qual se encontra uma resposta profunda para o mistério da dor no mundo.
4. Aos pecadores que são julgados pelas suas injustiças (cf. v. 5), o hino de Tobit dirige um apelo à conversão e abre a perspectiva maravilhosa de uma "recíproca" conversão de Deus e do homem: "Convertei-vos a Ele, com todo o vosso coração e com toda a vossa alma, para praticar a verdade na sua presença. Ele voltar-Se-á para vós e não vos ocultará a Sua face" (v. 6). É muito eloquente este uso da mesma palavra "conversão" para a criatura e para Deus, embora com significado diverso.
Se o autor do Cântico pensa, porventura, nos benefícios que acompanham o "regresso" de Deus, ou seja, o seu renovado favor para com o povo, nós devemos pensar sobretudo, à luz do mistério de Cristo, no dom que consiste no próprio Deus. O homem tem necessidade dele, mesmo mais do que dos seus dons. O pecado é uma tragédia não tanto porque nos atrai os castigos de Deus, mas porque O repele do nosso coração.
5. Por isso, é para o rosto de Deus considerado como Pai que o Cântico dirige o nosso olhar, convidando-nos à bênção e ao louvor: "Ele é o nosso Senhor e o nosso Deus, é o nosso Pai" (v. 4). Descobre-se que o sentido desta especial "filiação" que Israel experimenta como dom de aliança e que prepara o mistério da encarnação do Filho de Deus. Então, em Jesus, resplandecerá o rosto do Pai e será revelada a sua misericórdia sem limites.
Bastaria pensar na parábola do Pai misericordioso narrada pelo evangelista Lucas. À conversão do filho pródigo não corresponde só o perdão do Pai, mas um abraço de infinita ternura, acompanhado da alegria e da festa: "Ainda estava longe quando o pai o viu e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos" (Lc 15, 20). As expressões do nosso Cântico estão na linha desta comovente imagem evangélica. E dela nasce a necessidade de louvar e agradecer a Deus: "Contemplai, agora, o que fez por nós, rendei-lhe graças com a vossa boca: bendizei o Senhor da justiça e exaltai o Rei dos séculos" (v. 7).
-- Papa João Paulo II na audiência de 25 de Julho de 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário