Após o sentido da visão, temos a audição, que não deve ser guardado com menos atenção e diligência. E com os ouvidos, a língua também deve ser guardada, pois é o instrumento da fala: pois as palavras, boas ou más, não são ouvidas exceto após serem pronunciadas utilizando a língua. E esta, se não for cuidadosamente guardada, é a causa de muitos males, como diz São Tiago: Assim também a língua é um pequeno membro, mas pode gloriar-se de grandes coisas. Considerai como uma pequena chama pode incendiar uma grande floresta. Também a língua é um fogo, um mundo de iniqüidades (Tg 3,5).
Nesta passagem o apóstolo nos ensina três coisas: primeiro, que guardar a língua cuidadosamente é algo muito difícil; por isso muito poucos, senão apenas os perfeitos, podem efetivamente fazê-lo; segundo, que de uma língua má, as maiores injurias e maldades podem surgir em um curto período de tempo. Isto é explicado pela comparação com uma fagulha, que se não for imediatamente extinta, pode consumir a floresta inteira. Assim, uma palavra descuidada, pode provocar suspeitas de outras culpas, de onde podem surgir disputas, brigas, homicídios e a ruína de famílias. São Tiago, em verdade, ensina que a língua não é meramente algo ruim por si mesma, mas ela pode incluir uma multitude de problemas; ele até mesmo a chama de "mundo de iniquidades". Isto por que quase todos os crimes, como adultérios e assaltos, são planejados utilizando a língua; outros como perjúrios e falsos testemunhos, são perpetrados pela língua; e todos são defendidos, através de desculpas rotas ou falsas, também pela língua.
Assim, a língua pode ser chamada de "mundo de iniquidades", por que através dela muitos pecados contra Deus são cometidos, por blasfêmia e perjúrio; contra o próximo, por difamação e fofoca; e contra si mesmo, mentindo sobre boas obras que de fato não tenha realizado.
Em acréscimo ao testemunho de São Tiago, lembro o profeta Davi: Senhor, livrai minha alma dos lábios mentirosos e da língua pérfida (Sl 119,2). Se este rei tinha medo de uma língua pérfida e mentirosa, o que podem pessoas comuns fazer; e pior ainda, e se forem pessoas pobres, fracas e obscuras? Davi ainda diz: Que ganharás, qual será teu proveito, ó língua pérfida? (Sl 119,3) As palavras são obscuras devido a peculiaridade da estrutura da língua hebraica, mas o sentido parece ser este: não é sem sentido que eu temo uma língua pérfida e mentirosa, por que ela pode causar grande mal, de tal modo que nenhuma outra maldade pode ser acrescida. Davi continua: Flechas agudas de guerreiro, carvões ardentes de giesta (Sl 119,4). Nestas palavras, em elegante comparação, ele define quão grande mal uma língua pode ser, como uma flecha pontiaguda ns mãos de um guerreiro. Flechas são atiradas à distância, e com uma velocidade tão grande que é dificil desviar. E com tais flechas a língua é comparada, e dita que são enviadas por um forte guerreiro. E também, estas flechas são afiadas, ou seja, foram trabalho das mãos de um trabalhador hábil e dedicado. A língua é como um carvão ardente, com poder para queimar tudo, mesmo o que é forte. Portanto, uma língua pérfida e mentirosa é mais perigosa do que as flechas feitas pelo homem; em verdade, lembram as flechas enviadas pelo céu, raios aos quais ninguém pode resistir. Esta descrição de Davi, de uma língua pérfida e mentirosa, é tal que nenhum mal pode ser maior.
Para que esta verdade possa ser claramente compreendida, menciono dois exemplos da Escritura. O primeiro, a perfídia de Doeg, que acusou o sacerdote Aquimelec de ter conspirado com Davi para atingir o Rei Saul (1Sm 22). Era uma calunia e impostura. Mas como Saul, naquele tempo, estava perseguindo Davi, facilmente acreditou em Doeg e ordenou matar imediatamente não apenas Aquimelec, mas todos os outros sacerdotes, oitenta e cinco que não haviam cometido uma única ofensa ao rei. E Saul, não contente com esta matança, ordenou que fossem mortos também todos moradores da cidade de Nobe; e não apenas estendeu sua crueldade contra homens e mulheres, também às crianças, bebês e animais. Da língua pérfida de Doeg, é provável que seja sobre ela que Davi fala no Salmo 119. Deste exemplo podemos ver como pode ser produtiva para o mal uma língua pérfida e mentirosa.
Outro exemplo é do Evangelho segundo São Marcos: quando a filha de Herodíades dançou em frente a Herodes Tetrarca e sua corte, ela ganhou seus favores de tal modo que ele jurou em frente a todos que lhe daria o que pedisse, mesmo que fosse metade do seu reino. Mas a filha se aconselhou com a mãe, e esta lhe disse para pedir a cabeça de São João Batista. Feito o pedido, a cabeça logo lhe foi entregue em uma bandeja.
A cabeça de São João Batista é entregue em uma bandeja. |
Quantos crimes cometidos! A mãe pecou mais gravemente, pedindo a mais injusta coisa; Herodes pecou não menos gravemente, ao ordenar a morte de um homem inocente, que era o precursor de Jesus e mais que um simples profeta; sem que sua causa fosse ouvida, sem julgamento, o pedido de uma menina foi atendido durante um banquete festivo. Pouco tempo após, Herodes foi removido do seu governo pelo imperador romano, enviado para um perpétuo banimento. Aquele que jurou dar metade do seu reino, trocou aquele reino pelo banimento. Josefus menciona que a filha de Herodíades, cuja dança causou a morte de São João Batista, ao cruzar uma área congelada, o gelo quebrou sob seu peso e ela caiu com todo seu corpo, mas sua cabeça foi separada do corpo, rolando pelo gelo. Assim todos puderam ver a causa de tão miserável morte. Herodíades morreu pouco depois pela tristeza e a seguiu nos tormentos do inferno. Nicéforo Calisto Xantópulo relata os detalhes desta tragédia no seu livro História Eclesiástica, confirmando os crimes e punições que seguiram o juramento bobo do Tetrarca.
Agora mencionaremos os remédios que um homem prudente deve usar para evitar os pecados da língua. O Rei Davi, no início do Salmo 38, fala: Velarei sobre os meus atos, para não mais pecar com a língua (Sl 38,1). Isto significa que seu eu desejo me guardar dos pecados da língua, devo estar atento aos meus atos; pois não devo falar, nem pensar, nem fazer nada, sem antes examinar e pesar o que farei e direi.
Estes é o caminho pelo qual um homem deve caminhar em sua vida, que é o remédio contra más palavras, e não apenas contra elas, mas também contra más ações, pensamentos e desejos: é pensar antes o que fará, falará ou desejará. Isto define o caráter de um homem: não fazer nada de modo precipitado, mas sempre considerar o que deve ser feito, e se isto concordar com a razão, realizá-lo; se não concordar, deixar de fazê-lo. Assim como as ações devem ser pensadas, também as palavras, desejos e outras ações de uma inteligência. Mas se alguém não puder considerar previamente suas ações e palavras, certamente não é um homem prudente, desejoso da salvação eterna. Um homem que a cada manhã, todos os dias, antes de procurar seus negócios e interesses, se aproxima do seu Deus em oração e suplica para que Ele direcione suas decisões, ações, desejos e pensamentos para a grande glória de Deus e salvação de sua alma. E, ao final do dia, antes de repousar, o homem deve examinar sua consciência e perguntar se acaso ofendeu a Deus em pensamentos, palavras ou atos; e caso encontre máculas, especialmente pecados mortais, não deve fechar seus olhos antes de reconciliar-se com Deus e consigo, verdadeiramente arrepender-se, e fazer firme resolução de guardar seus modos e não cometer os mesmos pecados no dia seguinte.
Sobre o sentido da audição, algumas observações devem ser feitas. Quando uma língua é controlada pela razão, impedindo-a de falar palavras vãs, nada deve ofender o sentido da audição. Há quatro tipos de palavras, em especial, contras as quais nossa audição deve manter-se fechada, pois através de más palavras o pecado pode entrar no coração e corrompê-lo.
Por primeiro, as palavras contra a fé, que a curiosidade muitas vezes ouve com prazer: e se estas penetram no coração, retiram daí a fé, a raiz e o início de todas as boas ações. Nenhuma das palavras dos infiéis é mais perniciosa que aquelas que negam, seja a providência divina ou a imortalidade da alma. Estas afirmações tornam o homem não apenas herético, mas ateístas, abrindo a porta para todo tipo de maldades.
Outra classe de palavras é a difamação, muito ouvidas por todos, mas que destroem a caridade fraternal. Davi, que era um homem de acordo com a vontade de Deus, diz nos Salmos: Em resposta ao meu afeto me acusaram. Eu, porém, orava (Sl 108,4). E como a difamação é muitas vezes ouvida na mesa de refeições, Santo Agostinho mandou gravar estes versos sobre a mesa da sala de jantar:
"Quisquis amat dictis absentftm rodero vitam,
Hanc mensam iiidignam noverit esse sibi."
"Esta mesa não é lugar para detratores,
cuja língua ama os ausentes para causar desgraças".
A terceira espécie de palavras más consiste em bajulação, agradavelmente ouvidas pelos homens; e produzem orgulho e vaidade, a última delas é a rainha de todos os vícios e muito detestada por Deus.
O quarto tipo são aquelas palavras indecentes e canções lascivas; para os amantes deste mundo nada é mais doce, embora nada possa ser mais perigoso, que tais palavras e canções. Canções lascivas são como os cantos das sereias, que encantam os homens, os mergulham no mar e devoram-nos.
Contra todos estes perigos há um remédio salutar. Homens, quando na presença de pessoas que nunca tenham visto antes, ou que não lhe sejam familiares, não tenham a ousadia de difamar o próximo, utilizar palavras heréticas, bajuladoras ou expressões lascivas. Salomão, no início do Livro dos Provérbios, expressa assim este preceito: Ouve, meu filho, a instrução de teu pai: Meu filho, se pecadores te quiserem seduzir, não consintas; se te disserem: Vem conosco, faremos emboscadas, para (derramar) sangue, armaremos ciladas ao inocente, sem motivo, como a região dos mortos devoremo-lo vivo, inteiro, como aquele que desce à cova. Nós acharemos toda a sorte de coisas preciosas, nós encheremos nossas casas de despojos. Tu desfrutarás tua parte conosco, uma só será a bolsa comum de todos nós! Oh, não andes com eles, afasta teus passos de suas sendas, porque seus passos se dirigem para o mal, e se apressam a derramar sangue. Eles mesmos armam emboscadas contra seu próprio sangue e se enganam a si mesmos (Pv 1,8.10-16.18). Este conselho os homens sábios seguem para manter o sentido da audição longe de palavras corruptas; especialmente se estas palavras do Nosso Senhor forem acrescentadas: os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa (Mt 10,36).
-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)
-- como o capítulo é bastante longo, e a tradução demanda tempo, publiquei esta segunda parte enquanto trabalho no restante do texto.
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