Parábola do Homem Rico, por Rembrandt. |
Dupla é a espécie
da tentação: de um lado, as tribulações que põem à prova o
coração como o ouro no crisol (cf. Sb 3,6) mostram quanto há nelas
de bom na prática da paciência; de outro lado, a própria
prosperidade da vida, que para a maior parte das pessoas se torna
freqüentemente uma prova, dado que é igualmente difícil manter-se
seguro o ânimo nas adversidades e não se deixar dominar pelo
orgulho e pela arrogância no meio das dificuldades. Exemplo da
primeira espécie de tentação é o grande Jó, campeão
imbatível, que suportou os violentos assaltos do demônio,
semelhantes ao ímpeto de uma torrente, com ânimo imperturbável e
com propósito irremovível; e nas tentações tanto se mostrou
superior, quanto maiores e árduas apareciam as lutas que em-
preendeu com o adversário.
Das tentações que
derivam da prosperidade da vida, temos muitíssimos exemplos: entre
outros, aquele rico cuja história acabamos de ler. Este homem, além
das riquezas que possuía, desejava ainda outras. A misericórdia de
Deus, ao invés de condená-lo imediatamente por sua ingratidão, às
riquezas de antes ajuntava sempre novas, querendo com isso convidá-lo
a ser liberal e benigno, uma vez saciado abundantemente. As
terras de um rico - diz, o Evangelho - deram uma abundante
colheita. E ele refletia consigo mesmo: Que farei? Demolirei meus
celeiros e construirei outros maiores (Lc 12,16-18).
Por que deram tão
abundante colheita as terras daquele homem que, na abundância, não
soubera tirar nenhum proveito? Para que melhor aparecesse a
longanimidade de Deus, a bondade daquele que se estende também a
este. Deus, de fato, "faz chover sobre justos e injustos e faz
nascer o sol sobre os bons e os maus" (Mt 5,45). Tal bondade de
Deus, porém, acumula sobre a cabeça dos maus maiores castigos. Ela
faz cair a chuva sobre o campo cultivado por mãos avaras e dá o
sol que aquece a semente e multiplica abundantemente os frutos.
A generosidade de Deus
Eis quanto provém de
Deus: fertilidade do solo, condições atmosféricas propícias,
abundância das sementes, a ajuda dos bois e outros elementos que
contribuem para o incremento da agricultura.
E da parte do homem?
Dureza de coração, misantropia e avareza: é dessa maneira que o
homem agradece ao próprio benfeitor. Não se recordou da comunhão
de natureza, não pensou que precisava dividir o supérfluo entre os
indigentes, não levou em conta o mandamento: Não negues um
benefício ao necessitado (Pr 3,27). A caridade e a
confiança não te abandonem (Pr 3,3). Reparte o pão com
o faminto (Is 58,7). Permaneceu surdo ao grito de todos os
profetas e de todos os mestres.
A avareza do homem
Os celeiros, pequenos
demais para abrigar tanta abundância, são destruídos, mas o
coração avaro não estava satisfeito. Com o advento de novas
riquezas às antigas e com os proventos de cada ano, aumentava a
abundância. Estava o homem rico neste dilema, do qual não sabia
como desembaraçar-se: não queria desfazer-se dos velhos, por
avareza; não podia recolher o novo, por causa da abundância. Por
isso, atormentava-se sem chegar a nenhuma conclusão: "Que
farei?". Quem não se comoveria por um homem assim atormentado?
Consternado pela prosperidade, é um mísero pelos bens que possui;
mais mísero ainda pelos que viriam.
Se a terra não lhe
produz os proventos, cai em gemidos constantes. Se se acumulam frutos
abundantes? Aflições, penas, angústias cruéis! Lamenta-se como um
pobre. Não exclama, talvez, da mesma maneira de quem está na
indigência? "Que farei? O que comerei? Como me vestirei?".
Assim vai repetindo, em
alta voz, o rico. Leva no coração o tormento, a ansiedade o aflige,
porque aquilo que a outros torna alegres, consome pela preocupação
o ávaro. A casa está abarrotada de tudo, porém, ele não se alegra.
Pelo contrário, aqueles bens que afluem de todas as partes e que
transbordam os celeiros torturam-lhe a alma por temor de que,
escapando para fora alguma migalha, os necessitados possam se
aproveitar delas. Parece-me que a paixão
destes se assemelha à dos glutões, que preferem arrebentar-se pela
voracidade antes que deixar alguma sobra aos necessitados.
O homem é administrador
dos dons divinos
Reconhece, ó homem, o
teu doador. Recorda-te de ti mesmo: quem sou, que coisa administra,
de quem recebeste, porque foste preferido entre muitos. És servidor
da bondade de Deus, administrador dos teus companheiros de servidão.
Não creias que tudo seja destinado a teu ventre. Considera os bens
que estão nas tuas mãos como coisa de outros: por breve tempo
alegram-te, depois deslizam e desaparecem rapidamente; àeles deverás
prestar contas pormenorizadas.
Embora tenhas tudo bem
fechado com portas trancadas, amarrado e selado, todavia, as
preocupações te impedem o sono. Ruminas dentro de ti, estulto
conselheiro de ti mesmo: "Que farei?". Seria, ao invés,
ocasião de dizer: saciarei quem tem fome, abrirei meus celeiros e
chamarei todos os indigentes. Imitarei o benéfico edito de José:
Quantos não tenham pão, vinde a mim; tome cada um o
suficiente do dom concedido por Deus, como de uma fonte comum (Gn 47,13-26).
Por que não és assim
também tu? Tens medo de que outros tirem proveito destes bens e,
ruminando na alma sentimentos maus, meditas, não tanto como
distribuir a cada um segundo a necessidade, mas como ajuntar ainda
mais bens e tirar de todos os proventos para ti.
Já haviam chegado
aqueles que lhe pediriam a alma (Lc 12,20) e ele confabulava
consigo sobre alimentação; naquela mesma noite o levariam deste
mundo e ele fantasiava gozar ainda por muitos anos.
Foi-lhe deixado desejar tudo, expressar seu pensamento, para que seu
propósito sofresse a sentença que merecia.
Exortação aos ricos
Toma cuidado para que
não te aconteça o mesmo! Estas coisas foram escritas para que
evitemos semelhante destino.
Imita a terra, ó homem,
e produz frutos à sua semelhança: não sejas pior que a criatura
inanimada. A terra produz frutos não para o proveito próprio, antes
para tua sustentação. Tu, no entanto, qualquer fruto de bondade que
produzires, recolherás para teu proveito, dado que o mérito das
boas obras se reverte para os doadores. Deste ao faminto? O dom se
volta para ti e te é restituído com juros. Como o trigo lançado à
terra transforma-se em lucro para aquele que o semeou, assim o pão
dado ao faminto te renderá, a seu tempo, lucro abundante. Põe
fim, pois, ao cultivo dos campos e começa a semear para o céu,
porque está escrito: Semeai para vós sementes de justiça (Os 10,12).
A generosidade é uma
glória para o homem
Muito melhor um
nome bom que grandes riquezas (Pr 22,1). Se, pois, as riquezas
te parecerem uma grande coisa pela honra que delas deriva, reflete
quanto é mais vantajosamente honrável ser chamado pai de inumeráveis filhos do que ter dinheiro na bolsa. Esta a deixarás aqui, quer
queiras quer não; ao invés, a honra conquistada com as boas obras a
levarás contigo à face do Senhor, quando todo o povo reunido em
torno de ti diante do juiz comum te aclamará provedor, benfeitor e
te dará todos os títulos da caridade. Não vês aqueles que gastam
o dinheiro nos teatros, nos pugilatos, nas cenas burlescas, nas lutas
com as feras -gente que ninguém deveria olhar no rosto? -e tu és
tão mesquinho em distribuir, enquanto uma glória bem mais elevada
te espera? Deus saberá te acolher, os anjos te louvarão, os homens,
todos quantos existiram desde a criação, te aclamarão
bem-aventurado. Uma glória eterna, uma coroa de justiça, o reino
dos céus serão para ti o prêmio pela distribuição destes bens
caducos. Não mais te ocuparás com eles: substitui o empenho pelos
bens presentes, por aqueles que esperamos. Coragem, pois! Dispõe
generosamente das tuas riquezas, sê ambicioso e generoso no
dispensar a quem tem necessidade. Que se possa dizer de ti: É
generoso, distribui de boa vontade aos pobres, a sua justiça
permanece para sempre (Sl 111,9). Não vendas a preço muito
alto aproveitando da necessidade, não esperes a carestia para abrir
os celeiros, porque o povo maldiz quem retém o trigo (Pr
11,26). Não socorrer os famintos por causa do ouro, nem a penúria
geral para poderes estar na abundância é inadmissível; não te
faças desfrutador das desgraças humanas. Não faças da ira de Deus
uma ocasião para aumentar tuas riquezas. Não tornes mais dolorosas
as chagas de quem foi golpeado pelos flagelos.
Tu, ao invés, fixas os
olhos no ouro, mas não olhas em face o irmão. Sabes reconhecer a
marca da moeda e distinguir a falsa da verdadeira, porém ignoras
completamente o irmão necessitado.
-- Das Homílias sobre o Evangelho de São Lucas, por São Basílio (século IV)
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