Tu falas contigo mesmo em
segredo, porém, tuas palavras são examinadas no céu; na verdade,
de ti mesmo vem a resposta. Que disseste? Alma minha, tens uma
grande reserva de bens: come e bebe e regala-te cada dia (Lc
12,19). Que estultícia! Se tivesses alma de porco, seria diferente o
que te proponho? És assim como um animal, inconsciente dos bens da
alma, que só aceita os alimentos da carne e dás à tua alma
aquilo que será expelido fora? Se uma alma possui a virtude, se está
repleta de boas obras e habita junto de Deus, então, sim, tem muitos
bens e pode se regozijar com a mais bela alegria. Mas como aprecias
as coisas terrenas, tens por Deus o ventre e és todo carnal, escravo
das paixões, escuta o nome que te é bem apropriado, não dado por
nenhum homem, mas pelo próprio Senhor: Estúpido, nesta mesma
noite, tua alma te será pedida; aquilo que guardaste, para quem
irá? (Lc 12,20). O ridículo da estultícia é muito maior do
que o castigo eterno.
Renuncia aos bens mundanos, obra de Giotto de Bodonne. Afresco na Basílica de São Francisco em Assis. |
Quem irá ser arrebatado dentro em pouco, que é
que projeta? Destruirei meus celeiros e construirei outros
maiores (Lc 12,18). Fazes bem, eu te diria. Pois bem
merecem ser destruídos os depósitos da iniqüidade. Destrói com
tuas próprias mãos aquilo que construíste para o mal. Desmancha os
celeiros de trigo donde jamais alguém saiu levando auxílio. Faze
desaparecer a casa toda inteira, guarda da avareza; arranca os
telhados, derruba os muros ao redor, expõe ao solo trigo bolorento,
retira da prisão as riquezas agrilhoadas, mostra triunfalmente em
público as tenebrosas moradas de Mamon. Destruirei meus
celeiros e construirei maiores. E quando os terás enchido de
novo, o que estarás projetando? Provavelmente de novo os destruirás
e de novo construirás? Há coisa mais insensata que isto: trabalhar
sem fim, construir às pressas e às pressas destruir? Já tens
celeiros, se quiseres, as casas dos famintos. Entesourarás para ti
um tesouro no céu. Aquele que, guardado lá, as traças não
devoram, os ladrões não roubam (cf. Mt 6,20).
Retardar a esmola é
culpável e perigoso
Previstes uma longa vida.
Quem sabe se não virá antes algo de urgente contra tua previsão.
De fato, esta tua promessa não é sinal de virtude; antes, é de
malícia: tu prometes não para dar, mas só para
enganar. O que te impede de distribuir agora? Não está presente o
necessitado? Acaso não estão repletos os celeiros? Preparada a
recompensa? Não é claro o preceito? O faminto desfalece, o nu está
gelado; quem reclama é sufocado. E tu adias para o dia seguinte a
esmola. Escuta Salomão: Não digas: 'Vai e volta, amanhã te
darei' (Pr 3,28). Porque sabes o que te trará o dia de
amanhã (cf. Pr 27,1).
Desprezas tais preceitos por que a avareza já te tapou os ouvidos. Quanta gratidão deverias ter para
com o Benfeitor, estar radiante de alegria e célebre pela estima de
todos, porque não és tu que importunas portas alheias, mas outros
que vêm bater às tuas! Agora, no entanto, estás confuso, pouco
acessível, esquivando-te dos encontros, não aconteça que algo,
mesmo pequeno, obrigue a estender as mãos, sabes uma palavra: "Não
tenho nem darei, também sou pobre".
És pobre, realmente;
careces de todo o bem. Pobre de bondade, pobre de fé em Deus, pobre
da esperança de eternidade. Reparte os víveres com os irmãos,
amanhã apodrecerão; dá hoje aos indigentes. A idéia da avareza é
a mais detestável de todas; nem mesmo aquilo que vai corromper-se
não quer distribuir com os necessitados.
O que faço de
errado, diz ele, guardando o que é meu?
Dize-me, de que modo é
teu? Donde tiraste, tomando-o para teu sustento? É como alguém que,
indo ao teatro, se apoderasse do espetáculo e quisesse excluir os
que entrassem depois, pretendendo ser só seu aquilo que é comum a
todos os que se apresentam, conforme lhes parece bem. Assim são os
ricos. Pois, apoderando-se primeiro do que é de todos, tudo tomam
para si por uma falsa idéia. Se cada um tirasse para si o que lhe é
necessário.e entregasse ao indigente o que sobra, ninguém seria
rico, ninguém pobre.
Não saíste nu do útero e não retornarás nu para a terra (cf. Jó 1,21)? Os bens que possuis, de onde vêm? Se
dizes que provêm do acaso, és ímpio, não reconhecendo o Criador e
não dando graças ao doador. Se, ao invés, admites que são de
Deus, dize-me por que os recebeste. É talvez injusto Deus, que nos
distribui os meios de subsistência de modo desigual? Por que tu és
rico e aquele é pobre? Certamente para que tu pudesses receber a
recompensa da bondade da fiel administração e aquele pudesse
conseguir o magnífico prêmio da paciência. E tu, quando procuras
abarcar tudo nos insaciáveis ventres da avareza, julgas não fazer
injustiça a ninguém, privando tanta gente do necessário? Quem é o
avarento? Aquele que não se contenta com aquilo que lhe é
suficiente. Quem é o ladrão? Quem tira aquilo que é de outro. Não
és avaro? Não és ladrão, tu que fazes tua a propriedade que
recebeste para administrar? Quem espolia alguém que está vestido é
tido como ladrão; e quem, podendo fazê-lo, não reveste quem está
nu merecerá outro nome? O pão que tu reténs pertence ao faminto,
o manto que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que
apodrecem em tua casa pertencem ao descalço; o dinheiro que tens
enterrado é do necessitado. Porque tantos são aqueles aos quais
fazes injustiças, quantos aqueles que poderias socorrer.
Juízo de Deus
"Belas palavras,
dirás, mas o ouro é ainda mais belo!" Como quando se discute
sobre a castidade com os libertinos. Estes, de fato, despachada a
amiga do coração, queimam-se de paixão pela lembrança. De que
modo te porei sob os olhos os sofrimentos do pobre, para que te
convenças com quantos gemidos acumulas riquezas? Como te parecerá
justa, no dia do juízo, esta bela frase: Vinde, benditos de
meu Pai, tomai posse do Reino preparado para vós desde a criação
do mundo: porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me
destes de beber, estava nu e me vestistes. (Mt 25,34-36).
Quanto terror para ti,
quanto suor! Quais trevas te envolverão, se ouvires a condenação:
Afastai-vos de mim, malditos, nas trevas exteriores, preparadas
para o diabo e para os seus anjos: porque tive fome e não me destes
de comer, tive sede e não me destes de beber, estive nu e não me
vestistes (Mt 25,41-42.30). Naquele momento não é julgado o
ladrão, mas é condenado o egoísta.
Disse tudo quanto julgo
útil. Se me deres razão, é evidente que, segundo as promessas, te
são reservados tais bens; se, ao contrário, ignora-os, está
escrita para ti a condenação, que te desejo não experimentá-Ia,
para que tuas riquezas te sejam preço de resgate e tu estejas segu-
ro de alcançar os bens celestes, por graça daquele que nos chamou
todos ao seu Reino.
A ele a glória e o poder
pelos séculos dos séculos.
Amém.
- Das Homílias sobre o Evangelho de São Lucas, por São Basílio (século IV)
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