Queridos irmãos e irmãs:
Papa João Paulo II recebe as cinzas durante a celebração de Cinzas em 2004. |
A quarta-feira de cinzas está marcada tradicionalmente por duas práticas da piedade cristã: a imposição das cinzas e o jejum. São dois gestos que afetam o corpo, porém chegam ao espírito. Dois gestos significativos, que representam uma realidade interior. Jejuar de alimentos, jejuar de paixões, jejuar das vaidades do mundo que passa, para uma tomada de consciência mais clara de nossa condição de pecadores, de criaturas necessitadas de Deus; necessitadas de nos convertermos a Ele, que é nossa verdadeira alegria. Deus, bem infinito e permanente.
Este é, portanto, um "tempo saudável", no qual somos convidados a entrar novamente em nossas consciências, para descobrir os valores verdadeiros sobre os quais devemos apoiar nossa vida. É um tempo de reflexão e aprofundamento, no qual cada um deve comprometer-se a uma corajosa revisão da vida que lhe permita tomar consciência dos vários pontos em que sua conduta não está em sintonia com o Evangelho. O objetivo é dar a própria vida um sentido mais cristão, reafirmando o primado do espírito em relação a matéria que com frequência nos domina.
Em particular, a Quaresma que começa hoje nos convida a escutar humildemente estas palavras severas do Apóstolo Tiago: Aproximai-vos de Deus, e ele se aproximará de vós. Lavai as mãos, pecadores, e purificai os vossos corações, ó homens de dupla atitude. Reconhecei a vossa miséria, afligi-vos e chorai. Converta-se o vosso riso em pranto e a vossa alegria em tristeza. Humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará (Tiago 4,8-10). Não fujamos deste chamado, estamos todos implicados. E mais ainda, seremos tanto mais aceitos pelo Senhor, quanto mais sintamos esta chamada como dirigida a nós.
A Quaresma nos convida a refletir de modo especial em torno de nossa fragilidade, sobre o nosso "ser pobre" e sobre a precariedade de bens terrenos, sobre o que como resultaria vão querer basear nossa felicidade neles, quando, ao contrário, somente encontramos a felicidade numa relação sincera e amiga com Deus, bem verdadeiramente supremo e absoluto.
A Quaresma nos convida ao arrependimento por termos nos afastado de Deus. Nos exorta a retornarmos a Ele. Nos convida a tomar consciência dos efeitos dolorosos e trágicos deste distanciamento dEle.
A Quaresma nos sugere sentimentos de saudável aflição. Nos recorda que Jesus chama de "bem aventuados os aflitos"(Mt 5,4), e ameaça com a condenação os que agora estão saciados e alegres (Lc 6,25). Por que? Por que a dor, vivida como arrependimento e expiação, leva à salvação e bem-aventurança; pois a alegria néscia daquele que não sabe elevar a vista para além do mundo, levará ao pranto amargo e inconsolável da perdição eterna (cf. Mt 8, 12; 13, 42, etc.).
A Quaresma é ocasião propícia para nos interrogarmos sobre a qualidade e motivo de nossas alegrias; para esclarecer se nascem de uma conversão a Deus ou de um ilusório contentar-se com perspectivas secularistas e terrenas. Ela nos convida a contrição, esperando a misericórdia do Pai e fazendo nossa obra redentora do Filho. A dor do pecado se mitiga com a esperança de que escutando o Evangelho e fazendo obras de penitência, conseguiremos o perdão divino e aliviaremos os merecidos castigos. Aliviaremos os nossos e os do próximo.
O cristão, como nos exorta São Paulo (1 Tes 5, 16), deve estar sempre alegre. Porém a alegria cristã não é fugir das próprias responsabilidades. Não é um aturdir-se com prazeres fugazes do presente. A alegria cristão consiste em encontrar a própria dignidade perdida, após ter entrado novamente em nós mesmos e escutado as Palavras do Cristo. A Quaresma é o tempo apropriado para levar a cabo esta recuperação, este novo encontro com nosso "eu" autêntico. É um novo encontro que ocorre após uma séria escuta do convite evangélico a conversão. É um exercício fervoroso de obras de misericórdia, que nos dispõem a receber a misericórdia.
A tradição espiritual nos ensina que as principais obras do tempo quaresmal são três: a oração, a esmola e o jejum. A oração nos chama à uma relação mais intensa com Deus. A esmola significa uma atenção mais generosa aos irmãos necessitados. O jejum representa um firme propósito de disciplina moral e de purificação interior.
Tratam-se, evidentemente, dos aspectos essenciais da vida cristã e, como tais, necessários em todo momento. Há, sem dúvida, os tempos "fortes", apresentados no decorrer do ano litúrgico, momentos que nos exortam a um compromisso mais intenso e, com esta finalidade, os ritos e textos sagrados nos oferecem uma luz maior e uma graça mais abundante.
São tempos em que podemos, e devemos, acelerar o caminho, ou se o tivermos abandonado, retomá-lo, são tempos propícios para empreender um novo caminho com frutos e bons resultados. Aproveitemos, pois, este tempo favorável (cf. 2 Cor 6, 2). Este tempo de misericórdia.
-- Papa João Paulo II, audiência geral de 12 de Fevereirto de 1986, quarta-feira de cinzas (século XX)
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