19 de jan. de 2022

A Providência divina é admirável na variedade de graças que distribui aos homens


A Providência eterna agiu com incomparável benevolência para com a Rainha das rainhas, a Mãe do amor puro (Eclo 24,24), a única perfeita.

Dispensou também especiais benefícios, graças e bençãos aos homens e anjos, de cuja abundância todos foram orvalhados como de uma chuva que cai sobre os justos e injustos (Mt 5, 45); todos foram esclarecidos, como de uma luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo (Jo 1,9), todos receberam a sua parte, como de uma semente que cai não só sobre a boa terra, mas no meio dos caminhos, entre os espinhos e sobre as pedras (Mt 13, 38), de modo que todos fossem sem excusa (5) perante o Redentor, se não aproveitassem esta abundantíssima redenção para sua salvação. 

Porém, Teótimo [1], ainda que estas graças sejam assim derramadas sobre toda natureza humana, e nisto sejamos todos iguais, pois tantas bençãos nos são oferecidas a todos, é certo que a variedade destes favores é tão grande, que não se pode dizer o que é mais admirável, se a grandeza de todas as graças numa tal diversidade, ou a sua diversidade em tantas grandezas.

Quen não vê que os meios de salvação entre os cristãos são maiores e mais poderosos que entre os bárbaros, e que entre cristãos há povos e cidades onde os pastores são prestativos e hábeis?

Ora, negar que estes meios exteriores são favores da Providência divina, ou pôe em dúvida que contribuam à salvação e à perfeição das almas, seria ser ingrato para com a celeste Bondade e desmentir a verdadeira experiência que nos ensina que, de ordinário, onde abundam estes meios exteriores, os interiores tem mais eficácia e produzem melhor resultado.

Assim como não se encontra nunca dois homens perfeitamente parecidos nos dons naturais, também não se encontra iguais nos sobrenaturais. 

Santo Agostinho e São Tomás de Aquino asseguram que os anjos receberam a graça segundo a variedade de suas condições naturais. Ora eles são todos, ou de diferente espécie, ou pelo menos de diferentes condições, porque se distinguem uns dos outros; por conseguinte há tantas graças diferentes quantos são so anjos.

Com respeito aos homens, ainda que a graça lhes não seja dada segunda as suas condições naturais, todavia a divina Bondade, comprazendo-se, e para assim dizer, recreando-se na produção de graças, diversifica-as por infinitas formas, para que esta variedade se faça o formoso esmalte da sua redenção e misericórdia, como a Igreja canta na festa de cada Confessor Pontífice: Não se achou outro semelhante a ele (Eclo 44,20). E como no céu ninguém conhece o novo nome senão que o recebe (Ap 2,17), porque cada um dos bem-aventurados tem o seu nome particular, conforme o novo estado de glória que adquire, assim também na terra, cada um recebe uma graça particular, que todas são diversas.

Por isso o nosso Salvador compara a sua graça às pérolas (Mt 13, 44.46), que, como diz Plínio, nunca são perfeitamente iguais; e como as estrelas diferem umas das outras em claridade (1Cor 15,41), do mesmo modo serão os homens diferentes uns dos outros na glória, sinal evidente de o terem sido na graça.

Ora esta variedade na graça, ou essa graça na variedade, produz uma beleza e harmonia, que regozija a santa cidade, a Jerusalém celeste.

Mas importa muito não procurar investigar por que motivo a suprema Sabedoria distribuiu uma graça a uma graça a um antes que a outro, nem por que razão transbordou os seus favores mais num lugar que em outros.

Não, Teótimo, não tenhais nunca esta curiosidade, porque se todos recebem suficiente e abundandamente o que é necessário para a salvação, que razão de quixa pode ter o homem por Deus distribuir as suas graças com mais liberalidade a uns que a outros?

Se alguém perguntasse qual a causa porque Deus fez os lírios maiores que as violetas, porque o alecrim não é uma rosa e cravo não é um malmequer, porque motivo o pavão é mais belo que um morcego, ou porque é o figo doce e o limão ácido, escarneceriam de suas perguntas e dir-lhe-iam: "Pobre homem, já que a beleza do mundo requer variedade, é preciso que haja diferentes e desiguais perfeições nas coisas, e que não seja a outra; eis porque umas são pequenas, outras são grandes; umas acres, outras doces; umas mais e outras menos belas".

Dá-se o mesmo com as coisas sobrenaturais: cada pessoa tem o seu dom; um dum modo e outro doutro, diz o Espírito Santo (1Cor 7,7).

É, pois, um disparate querer investigar porque razão São Paulo não teve a graça de São Pedro, nem São Pedro a de São Paulo, porque motivo Santo Antão não foi Snato Atanásio, nem Santo Atanásio não foi São Jerônimo.

A Igreja é um jardim matizado de flores, e é preciso que as haja de diversos tamanhos, de diversas cores, de diversos aromas, numa palavra, de diferentes perfeições; todas tem o seu valor, a sua graça, o seu esmalte; e todas, no conjunto de suas variedades, produzem a beleza.


-- São Francisco de Sales, Tratado do Amor Divino, livro 2, capítulo 7.

[1]: S. Francisco explica no prefácio do livro que Teótimo não é uma pessoa que ele conhecia, mas a alma do leitor. Teótimo combina duas palavras gregas, Theos, que significa Deus, e Timé, um presente especial, ou seja, para o santo, todas pessoas recebem de Deus um presente especial, sua alma. O santo escolheu esta forma porque escreve não apenas para  o intelecto, como a maioria dos livros, mas para a alma.


 

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