Tiveram vento tão violento de popa, que chegaram de Barcelona a Gaeta em cinco dias com as suas noites, ainda que com muito medo de todos, pela muita tempestade. Por toda aquela terra se temia a peste, mas ele, logo que desembarcou, começou a caminhar para Roma. Dos que vinham na nave, juntaram-se em sua compa-nhia, uma mãe, com uma filha que vestia roupas de rapaz, e um outro moço. Estes seguiam-no porque também mendigavam.
Chegados a uma herdade, encontraram uma grande fogueira e muitos soldados à volta dela, os quais lhes deram de comer e lhes davam muito vinho, convidando-os, de maneira que parecia quererem embebedá-los. Depois separaram-nos, pondo a mãe e a filha em cima, num quarto, e o peregrino com o moço, no estábulo. Mas quando chegou a meia noite, ouviu que lá em cima se davam grandes gritos: e levantando-se para ver o que era, encontrou a mãe e a filha em baixo, no pátio, muito chorosas, queixando-se que as queriam forçar. A ele [peregrino] veio-lhe, por causa disso, um ímpeto tão grande que se pôs a gritar: – Isto se há-de sofrer? – e queixas semelhantes, as quais dizia com tanta eficácia, que todos os da casa ficaram admirados, sem que nenhum lhe fizesse qualquer mal. O moço já tinha fugido, e os três começaram a caminhar assim de noite.
E chegados a uma cidade que estava perto, e não podendo entrar, os três passaram aquela noite, de muita chuva, numa igreja que ali havia. De manhã não quiseram abrir-lhes a cidade e por fora não encontravam esmola, nem sequer num castelo que parecia perto dali, no qual o peregrino se sentiu fraco4, tanto pela viagem por mar, como por tudo o mais, etc. E não podendo caminhar mais, ficou por ali e a mãe e a filha continuaram para Roma.
Aquele dia saiu muita gente da cidade, e sabendo que vinha ali a senhora da terra, pôs-se diante dela, dizendo-lhe que estava doente de pura fraqueza, e pedia-lhe que o deixasse entrar na cidade para buscar algum remédio. Ela concedeu-lho facilmente. E começando a mendigar pela cidade, encontrou muitos quatrins, e refazendo-se ali dois dias, voltou a prosseguir o seu caminho, e chegou a Roma no Domingo de Ramos.
Aqui, todos os que falavam com ele, sabendo que não levava dinheiro para ir a Jerusalém, começaram a dissuadi-lo da ida, afir-mando-lhe com muitas razões que era impossível arranjar passagem sem dinheiro. Mas ele tinha uma grande certeza na sua alma, de tal modo que não podia duvidar de que havia de encontrar modo de ir a Jerusalém.
E tendo recebido a bênção do papa Adriano VI, partiu para Ve-neza, oito ou nove dias depois da Páscoa da Ressurreição. Levava ainda seis ou sete ducados que lhe tinham dado para a passagem de Veneza a Jerusalém e que ele recebera, vencido um pouco pelos temores que lhe incutiam de não poder passar de outra maneira. Mas dois dias depois de ter saído de Roma, começou a ver que aquilo tinha sido desconfiança que tinha tido, e pesou-lhe muito ter aceite os ducados, e pensava se seria bom deixá-los. Mas por fim determinou-se a gastá-los generosamente com aqueles que lhe apareciam, que ordinariamente eram pobres. E fê-lo de tal maneira, que quando depois chegou a Veneza, não levava mais que alguns quatrins, que naquela noite lhe foram necessários.
Todavia, por este caminho até Veneza, por causa dos vigias contra a peste, dormia pelos pórticos. E aconteceu-lhe uma vez, ao levantar-se de manhã, topar com um homem, que ao vê-lo se pôs a correr cheio de medo, porque parece que o viu muito pálido.
Caminhando chegou a Choza e, com alguns companheiros que se lhe tinham juntado, soube que não os deixariam entrar em Veneza. Os companheiros determinaram ir a Pádua, para ali tomar a cédula de saúde, e assim partiu com eles; mas não pôde caminhar tanto, porque caminhavam muito depressa, e deixaram-no, quase de noite, num descampado, onde lhe apareceu Cristo da maneira que lhe costumava aparecer, como dissemos atrás, e confortou-o muito. E com esta consolação, no outro dia de manhã, sem apresentar cédula, como (creio) tinham feito os seus companheiros, chegou à porta de Pádua, e entrou sem que os guardas lhe pedissem nada, e o mesmo lhe aconteceu à saída. Disso se espantaram muito os seus companheiros que acabavam de tomar cédula para ir a Veneza, com a qual ele não se preocupou.
E chegados a Veneza, vieram os guardas ao barco para examinar, um por um, a todos os que ali estavam, e só a ele deixaram. Mantinha-se mendigando, e dormia na praça de São Marcos, e nunca quis ir a casa do embaixador do imperador, nem fazia diligência especial para buscar dinheiro para a passagem. Tinha uma grande certeza na sua alma de que Deus lhe havia de dar modo de ir a Jerusalém e esta certeza o confirmava tanto, que nenhumas razões e medos que lhe punham o faziam duvidar.
Um dia encontrou-o um homem rico, espanhol, e este pergun-tou-lhe o que fazia e onde queria ir, e sabendo da sua intenção, le-vou-o a comer em sua casa, e depois hospedou-o alguns dias até se preparar a partida. Tinha o peregrino este costume, já desde Manresa, que quando comia com outros, nunca falava à mesa, só respondendo brevemente; mas escutava o que se dizia, e retendo algumas coisas, das quais tomasse ocasião de falar de Deus, fazia-o no fim da refeição.
E foi esta causa pela qual o homem de bem, com toda a sua casa, tanto se afeiçoaram a ele, que o quiseram reter e obrigar a ficar em sua casa. E o mesmo hospedeiro levou-o ao duque de Veneza, para que lhe falasse, isto é, alcançou-lhe a entrada e a audiência. O duque, logo que ouviu o peregrino, mandou que lhe dessem embarcação no navio dos governadores que ia para Chipre.
Ainda que naquele ano tinham vindo muitos peregrinos [para ir] a Jerusalém, a maior parte deles tinham voltado para as suas terras, pelo novo caso sucedido da tomada de Rodes.Todavia havia treze na nau peregrina, que partiu primeiro, e oito ou nove ficaram para a dos governadores. Estando esta para partir, veio-lhe ao nosso peregrino uma doença de febres, que depois de o terem incomoda-do alguns dias o deixaram e a nave partia no dia em que ele tinha tomado uma purga. Os da casa perguntaram ao médico se podia embarcar para Jerusalém e o médico disse que para ser sepultado lá, podia embarcar. Mas ele embarcou e partiu aquele dia; e vomitou tanto que ficou aliviado e começou a sarar completamente. Nesta nau cometiam-se algumas indecências e torpezas manifestas, que ele repreendia com severidade.
Os espanhóis que ali iam avisavam-no que não fizesse aquilo, porque os da nau tratavam de o deixar nalguma ilha. Mas quis Deus Nosso Senhor que chegassem depressa a Chipre, onde deixada aquela nave, foram por terra a outro porto que se chama Las Salinas, que estava a dez léguas dali, e entraram na nau peregrina, na qual também não meteu mais para seu mantimento, que a esperança que levava em Deus, como tinha feito na outra. Em todo este tempo aparecia-lhe muitas vezes Nosso Senhor, que lhe dava muita conso-lação e ânimo; mas parecia-lhe que via uma coisa redonda e grande, como se fosse de ouro, que se lhe representava. Depois de partidos de Chipre, chegaram a Jafa.
E caminhando para Jerusalém nos seus burrinhos, como é costume, duas milhas antes de chegar a Jerusalém, um espanhol, nobre, segundo parecia, chamado Diego Manes, disse, com muita devoção, a todos os peregrinos que já que dali a pouco haviam de chegar ao lugar donde se podia ver a cidade santa, seria bom que todos se pre-parassem em suas consciências, e que fossem em silêncio.
E parecendo bem a todos, começou cada um a recolher-se; e um pouco antes de chegar ao lugar donde se via [a cidade], apearam-se, porque viram os frades, com a cruz, que os estavam esperando. E vendo a cidade, teve o peregrino grande consolação; e segundo os outros diziam, foi universal em todos, com uma alegria que não parecia natural; e a mesma devoção sentiu sempre nas visitas dos lugares santos.
-- Da Autobiografia de Santo Inácio de Loyola
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