3 de ago. de 2011

A vida de São João Maria Vianney, o Cura d'Ars

* trechos da encíclica Sacerdotii Nostri Primordia, dada no centenário da morte do santo padre São João Maria Vianney pelo Papa João XXIII

Falar de São João Maria Vianney ‚ evocar a figura de um padre excepcionalmente mortificado que, por amor de Deus e pela conversão dos pecadores, se privava de alimento e sono, se impunha rudes penitências e, sobretudo, levava a renúncia de si mesmo a um grau heróico. Se é certo que comumente não é pedido a todos os féis que sigam este caminho, a divina Providência dispôs que nunca faltem no mundo pastores de almas que, levados pelo Espírito Santo, não hesitem em encaminhar-se por estas vias, porque tais homens operam com este exemplo o regresso de muitos, que se convertem da sedução dos erros e dos vícios para o bom caminho e a prática da vida cristã! A todos, o exemplo admirável de renúncia do cura de Ars, "severo para consigo e bondoso para com os outros",  lembra de forma eloqüente e urgente o lugar primordial da ascese na vida sacerdotal. 

Primeiramente tendes o exemplo de pobreza, virtude pela qual o humilde cura d'Ars, se tornou digno êmulo do patriarca de Assis, de quem foi, na Ordem Terceira, discípulo fiel. Rico para dar aos outros, mas pobre para si mesmo, viveu num total desprendimento dos bens deste mundo, e o seu coração verdadeiramente livre abria-se com generosidade a todos os que, afligidos por misérias materiais ou espirituais vinham até ele de toda a parte em busca de remédio. "O meu segredo é bem simples, dizia ele, é dar tudo e nada guardar". O seu desinteresse fazia-o atender a todos os pobres, sobretudo os da sua paróquia, aos quais testemunhava extrema delicadeza, tratando-os "com verdadeira ternura, com os maiores cuidados e até com respeito". Recomendava que nunca deixassem de ter atenções para com os pobres, porque tal falta recai sobre Deus; e, quando um miserável batia à sua porta, sentia-se feliz, ao recebê-lo, com bondade, por lhe poder dizer: "Sou pobre como vós; hoje sou um dos vossos!". No fim da sua vida, comprazia-se em repetir: "Estou muito satisfeito; já não tenho nada de meu; Deus pode chamar-me quando quiser".


Foi dito do cura d'Ars: "A castidade brilhava no seu olhar". Na verdade, quem estuda a sua personalidade fica surpreendido, não só pelo heroísmo com que este padre subjugava seu corpo (cf. 1Cor 9,27), mas ainda pela força da convicção com que conseguia que a multidão dos seus penitentes o seguisse. É que ele sabia, por uma longa prática do confessionário, os males causados pelos pecados da carne. Por isso de seu peito saíam estes gemidos: "Se não houvesse almas puras que aplacassem a Deus ofendido pelos nossos pecados, quantos e quão terríveis castigos teríamos nós que suportar!". E, falando com experiência, juntava ao seu apelo um estímulo fraterno: "A mortificação tem um bálsamo e um sabor de que não podem prescindir os que alguma vez os conheceram... Neste caminho, o que custa ‚ o primeiro passo".


São numerosos os testemunhos sobre o espírito de obediência do santo, podendo afirmar-se que para ele a exata fidelidade ao "prometo" da ordenação foi motivo para uma permanente renúncia de quarenta anos. Durante toda a sua vida, com efeito, aspirou à solidão de um santo retiro, e as responsabilidades pastorais foram para ele pesado fardo, do qual por várias vezes tentou libertar-se. Mas sua obediência total ao Bispo foi mais admirável. Por isso, veneráveis irmãos, temos o prazer de relatar algumas testemunhas da sua vida: "Desde a idade de quinze anos este desejo (da solidão) estava no seu coração para o atormentar e tirar-lhe a felicidade de que poderia gozar na sua posição".  Mas "Deus não permitiu que pudesse realizar tal desígnio. A divina Providência queria sem dúvida que, sacrificando o seu gosto à obediência, o prazer ao dever, João M. Vianney tivesse constantemente ocasião de se vencer". Vianney continuou cura d'Ars com obediência cega e assim ficou até à morte.

Esta total adesão à vontade dos superiores era, convém afirmá-lo, inteiramente sobrenatural no seu motivo: era um ato de fé na palavra de Cristo que dizia aos seus apóstolos: "Quem vos ouve, ouve a mim" (Lc 10,16), e, para ser-lhe fiel costumava habitualmente renunciar à sua própria vontade na aceitação do seu pesado encargo do confessionário e em todas as tarefas cotidianas onde a colaboração entre confrades torna o apostolado mais frutuoso.

Basilica de Ars, onde encontra-se o corpo do santo.

Aos padres deste século, que costumam exagerar a eficácia da ação e que tão facilmente se entregam ao mesmo dinamismo exterior do ministério sacerdotal, com prejuízo do seu aproveitamento espiritual, como é oportuno e salutar este modelo de oração assídua numa vida inteiramente votada às necessidades das almas! "O que impede a nós padres de ser santos, é a falta de reflexão. Não entramos em nós mesmos; não sabemos o que fazemos. Precisamos da reflexão, da oração, da união com Deus". Ele próprio vivia, segundo testemunham os contemporâneos, num estado de contínua oração, do qual não conseguiram distraí-lo, nem o peso extenuante das confissões, nem os outros trabalhos pastorais. "Mantinha uma união constante com Deus no meio da sua vida excessivamente ocupada". Mas escutemo-lo, porque ele ‚ incansável, quando fala das alegrias e dos benefícios da oração: "O homem é um pobre, que tudo precisa pedir a Deus". "Quantas almas podemos converter com nossas orações!" E repetia: "A oração, eis toda a felicidade do homem sobre a terra".  Esta felicidade, gozou-a ele; longamente, enquanto o seu olhar iluminado pela fé contemplava os mistérios divinos e, pela adoração do Verbo encarnado elevava sua alma simples e pura para a Santíssima Trindade, supremo objetivo do seu amor. E os peregrinos, que enchiam a igreja de Ars, compreendiam que o humilde padre lhes confiava alguma coisa do segredo da sua vida interior por esta exclamação freqüente, que lhe era tão querida: "Ser amado por Deus, estar unido a Deus, viver na presença de Deus, viver para Deus: oh! que bela vida e que bela morte!" 

A oração do cura d'Ars, que passou por assim dizer os trinta últimos anos de vida na igreja onde o retinham os seus inúmeros penitentes, era sobretudo uma oração eucarística. A sua devoção para com nosso Senhor, presente no Santíssimo Sacramento do altar, era verdadeiramente extraordinária. "Está ali - dizia - aquele que tanto nos ama; por que nós não havemos de amá-lo?" E, por certo, ele amava-o e sentia-se como que irresistivelmente atraído para o sacrário. Explicava ele aos seus paroquianos: "Para bem rezar não há necessidade de falar tanto! Sabemos pela fé que Deus está ali, no sacrário; abrimos-lhe o nosso coração e sentimo-nos felizes por ser admitidos à sua presença. É a melhor maneira de rezar". Não perdia ocasião de inculcar aos fiéis o respeito e o amor à divina presença na Eucaristia, convidando-os a aproximarem-se com freqüência da Sagrada mesa; e dava-lhes exemplo desta profunda piedade: "Para se convencerem disso, referiram as testemunhas, bastaria vê-lo celebrando a missa, e fazendo a genuflexão ao passar diante do sacrário". 

"Sempre pronto a corresponder às necessidades das almas",(74)  João Maria Vianney, como bom pastor, primou em procurar-lhes com abundância o alimento primordial da verdade religiosa. Durante toda a sua vida, foi pregador e catequista.
 
Conhece-se o trabalho solícito e perseverante a que se obrigou para bem cumprir este dom do seu cargo, "primeiro e máximo dever", segundo o Concílio de Trento. Seus estudos, tardiamente feitos, foram laboriosos, e os sermões custaram-lhe no começo não poucas vigílias. Mas que exemplo para os ministros da palavras de Deus! Alguns não hesitam em desculpar, sem razão, a falta de zelo nos estudos, invocando a pouca erudição do Santo. Deveriam antes imitar a coragem com que se tornou apto para tão grande ministério, segundo a medida dos dons que lhe foram repartidos, estes, aliás, não eram tão poucos como por vezes se afirma, porque "tinha uma inteligência límpida e clara".


Dificilmente se podem imaginar as contrariedades e os sofrimentos físicos destas intermináveis horas no confessionário, para um homem já esgotado pelos jejuns, macerações, enfermidades, e falta de sono... Mas, acima de tudo, ele sentia-se como moralmente esmagado pela dor. Escutai a sua lamentação: "Ofende-se tanto a Deus, que quase nos sentimos tentados a pedir o fim do mundo!..É preciso vir a Ars para se saber o que é o pecado e a sua multidão quase infinita... Não se sabe o que se deve fazer: só se pode chorar e rezar". O santo esquecia-se de acrescentar que tomava também sobre si uma parte da expiação: "Pela minha parte - contava ele a quem lhe pedia conselho - dou-lhes uma penitência pequena e o resto faço-a eu por eles".

Na verdade, o cura d'Ars não vivia senão para os "pobres pecadores", como ele dizia, na esperança de os ver converter-se e chorar. A sua conversão era "o fim para o qual convergiam todos os seus pensamentos e a obra em que dispendia todo o tempo e todas as forças". É que, com efeito, ele sabia, pela experiência do confessionário, toda a malícia do pecado e as suas horrorosas devastações no mundo das almas. Falou disso em termos terríveis: "Se tivéssemos fé e víssemos uma alma em estado de pecado mortal, morreríamos de pavor!"


Com a mais viva esperança de que este centenário da morte de s. João Maria Vianney possa despertar, em todo o mundo, uma renovação de fervor nos padres e nos jovens chamados ao sacerdócio, e também que possa suscitar por parte de todos os fiéis uma atenção maior e mais ativa para os problemas da vida e do ministério dos padres, nós de todo o coração concedemos a todos, e em primeiro lugar a vós, veneráveis irmãos, como penhor das graças celestes e da nossa benevolência, a bênção apostólica.

Dada em Roma, junto de S. Pedro, no dia 1° de agosto do ano de 1959, ano I do nosso Pontificado.
 
 

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