21 de out. de 2013

Salmo 81: Solene convite a renovar a Aliança

Queridos irmãos e irmãs,

"Tocai a trombeta pelo novo mês, na luz cheia, dia da nossa festa" (Sl 81 [80], 4). Estas palavras do Salmo 80, agora proclamado, remetem para uma celebração litúrgica segundo o calendário lunar do antigo Israel. É difícil definir com exatidão a festividade a que o Salmo se refere; é certo que o calendário litúrgico bíblico, embora comece com o fluxo das estações e portanto da natureza, se apresenta firmemente ancorado na história da salvação e, em particular, no principal acontecimento do êxodo da escravidão egípcia, ligado à lua cheia do primeiro mês (cf. Êx 12, 2-6;Lv 23, 5). Com efeito, foi ali que se revelou o Deus libertador e salvador.

Páscoa;
do Altar da Igreja da Ordem Dominicana em Friesach
Como afirma poeticamente o versículo 7 desse mesmo Salmo, foi Deus que tirou dos ombros do hebreu escravo no Egito, a cesta repleta de tijolos, necessários para a construção da cidade de Pitom e Ramsés (cf. Êx 1, 11.14). O próprio Deus pôs-se ao lado do povo oprimido e, com o seu poder, tirou e cancelou o sinal amargo da escravidão, a cesta dos tijolos cozidos ao sol, expressão dos trabalhos forçados a que eram obrigados os filhos de Israel.

Agora, sigamos a evolução deste cântico da liturgia de Israel. Ele abre-se com um convite à festa, ao cântico, à música:  trata-se da convocação oficial da assembleia litúrgica, segundo o antigo preceito do culto, nascido já na terra do Egipto, com a celebração da Páscoa (cf. Sl 81 [80], 2-6). Depois deste apelo, ergue-se a voz do próprio Senhor, através do oráculo do sacerdote no templo de  Sião,  e  estas  palavras  divinas  hão-de  ocupar  todo  o  resto  do  Salmo (cf. vv. 6-17).

O tema que se desenvolve é simples e inclui dois pólos ideais. Por um lado, há o dom divino da liberdade que foi oferecida a Israel oprimido e infeliz:  "Clamaste na opressão, e Eu libertei-te" (v. 8). Existe uma referência também ao apoio que o Senhor ofereceu a Israel, a caminho no deserto, ou seja, ao dom da água em Meriba, num contexto de dificuldade e de provação.

Por outro lado, porém, juntamente com o dom divino, o Salmista introduz outro elemento significativo. A religião bíblica não é um monólogo solitário de Deus, uma sua ação destinada a ficar inerte. Pelo contrário, é um diálogo, uma palavra acompanhada de uma resposta, um gesto de amor que exige adesão.  Por  isso,  reserva-se  um  amplo espaço aos convites que Deus dirige a Israel.

O Senhor convida, em primeiro lugar, à observância do primeiro mandamento, fundamento de todo o Decálogo, ou seja, a fé no único Senhor e Salvador, e a rejeição dos ídolos (cf. Êx 20, 3-5). O discurso do sacerdote em nome de Deus é cadenciado pelo verbo "escutar", querido ao livro do Deuteronómio, que exprime a adesão obediente à Lei do Sinai e constitui um sinal da resposta de Israel ao dom da liberdade. Com efeito, no nosso Salmo ouve-se repetir:  "Escuta, meu povo... Oxalá me ouvisses, Israel! (...) E o meu povo não escutou a minha voz, Israel não quis obedecer-me... Ah, se o meu povo me escutasse! (...) (vv. 9.12 e 14).

É somente através da fidelidade à escuta e à obediência que o povo pode receber plenamente os dons do Senhor. Infelizmente, é com amargura que Deus deve dar-se conta das numerosas infidelidades de Israel. O caminho no deserto, a que o Salmo faz alusão, está totalmente constelado de tais atos de rebelião e de idolatria, que alcançarão o seu ápice na  configuração  do  bezerro  de  ouro (cf. Êx 32, 1-4).

A última parte do Salmo (cf. vv. 14-17) tem uma tonalidade melancólica. Efetivamente, nele Deus exprime um desejo que até agora não foi satisfeito:  "Ah, se o meu povo me escutasse, se Israel  andasse  pelos  meus  caminhos!" (v. 14).

Porém, esta melancolia inspira-se no amor e está ligada a um profundo desejo de cumular de bens o povo eleito. Se Israel caminhasse pelas sendas do Senhor, eles poderiam dar imediatamente a vitória sobre os seus inimigos (cf. v. 15) e nutri-lo "com a flor do trigo" e saciá-lo "com o mel do rochedo" (v. 17). Seria um alegre banquete de pão fresquíssimo, acompanhado do mel que parece correr das rochas da terra prometida, representando a prosperidade e o completo bem-estar, como não raro se repete na Bíblia (cf. Dt 6, 3; 11, 9; 26, 9 e 15; 27, 3; e 31, 20). Com a apresentação desta maravilhosa perspectiva, evidentemente o Senhor procura obter a conversão do seu povo, uma resposta de amor sincero e efectivo ao seu amor, mais generoso do que nunca.

Na leitura cristã, a oferta divina revela a sua amplitude. Com efeito, Orígenes oferece-nos esta interpretação:  o Senhor "fê-los entrar na terra prometida; não os nutriu com o maná, como no deserto, mas com a semente que caiu na terra (cf. Jo 12, 24-25), que renasceu... Cristo é a semente; Ele é também a rocha que, no deserto, saciou o povo de Israel com a água. Em sentido espiritual, saciou-o com o mel, e não com a água, a fim de que quantos acreditarem e receberem este alimento, sintam o mel na sua boca" (Homilia sobre o Salmo 80, n. 17, em: Orígenes-Jerónimo, 74 Homilias sobre o Livro dos Salmos).

Como sempre na história da salvação, a última palavra no contraste entre Deus e o povo pecador nunca é o juízo e o castigo, mas o amor e o perdão. Deus não deseja julgar nem condenar, mas salvar e libertar a humanidade do mal. Ele continua a repetir-nos as palavras que lemos no livro do Profeta Ezequiel:  "Porventura sentirei prazer com a morte do injusto... O que eu quero é ele se converta dos seus maus caminhos, e viva (...) Por que motivo deveríeis  morrer,  casa  de  Israel?  Eu não sinto prazer com a morte de ninguém.  Palavra    oráculo  do  Senhor Deus.  Convertei-vos  e  tereis  a  vida" (18, 23 e 31-32).


A liturgia torna-se o lugar privilegiado onde escutar o apelo divino à conversão e voltar ao abraço do Deus "misericordioso e clemente, lento a encolerizar-se, mas cheio de bondade e de fidelidade" (Êx 34, 6).

-- Papa João Paulo II, na udiência de 24 de Abril de 2002

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