23 de jul. de 2016

A vocação da família

Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o primeiro anúncio (da Ressurreição), que é o mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário e deve ocupar o centro da atividade evangelizadora. O nosso ensinamento sobre o matrimônio e a família não pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de amor e ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem vida.

Jesus recupera e realiza plenamente o projeto divino
O Novo Testamento ensina que “tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado” (1Tim 4, 4). O matrim6onio é um dom do Senhor (1 Cor 7, 7). Ao mesmo tempo que se dá esta avaliação positiva, acentua-se fortemente a obrigação de cuidar deste dom divino: “Seja o matrimônio honrado por todos e imaculado o leito conjugal” (Heb 13, 4). Este dom de Deus inclui a sexualidade: “Não vos recuseis um ao outro” (1Cor 7, 5).
Jesus inaugurou a sua vida pública com o sinal de Caná, realizado num banquete de núpcias (Jo 2, 1-11). Compartilhou momentos diários de amizade com a família de Lázaro e suas irmãs (Lc10, 38) e com a família de Pedro (Mt 8, 14). Escutou o pranto dos pais pelos seus filhos, restituindo-os à vida (Mc 5, 41;Lc 7, 14-15) e mostrando assim o verdadeiro significado da misericórdia, a qual implica a restauração da Aliança. Vê-se isto claramente nos encontros com a mulher samaritana (Jo 4, 1-30) e com a adúltera (Jo 8, 1-11), nos quais a noção do pecado é avivada perante o amor gratuito de Jesus.
A encarnação do Verbo numa família humana, em Nazaré, comove com a sua novidade a história do mundo. Precisamos mergulhar no mistério do nascimento de Jesus, no sim de Maria ao anúncio do anjo e no sim de José, que deu o nome a Jesus e cuidou de Maria; na festa dos pastores no presépio; na adoração dos Magos; na promessa que Simeão e Ana viram cumprida no templo; na fuga para o Egito; na admiração dos doutores da lei ao escutarem a sabedoria de Jesus adolescente. E, em seguida, penetrar nos trinta longos anos em que Jesus ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração do seu povo e formando-Se na fé dos seus pais, até fazê-la frutificar no mistério do Reino. A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. É o mistério que tanto fascinou São Francisco de Assis, Santa Teresa do Menino Jesus e Beato Charles de Foucauld, e do qual bebem também as famílias cristãs para renovar a sua esperança e alegria.
A família nos documentos da Igreja
O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-se, na Constituição pastoral Gaudium et spes, da promoção da dignidade do matrimônio e da família. Definiu como comunidade de vida e amor, colocando o amor no centro da família. O verdadeiro amor entre marido e mulher implica a mútua doação de si mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a afetividade, correspondendo ao desígnio divino.
Em seguida, o Beato Paulo VI com a Encíclica Humanae vitae, destacou o vínculo intrínseco entre amor conjugal e procriação: o amor conjugal requer nos esposos uma consciência da sua missão de ‘paternidade responsável’. O exercício responsável da paternidade implica que os cônjuges reconheçam plenamente os próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores.
Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est destaca que “o matrimônio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se um exemplo do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano”.
O sacramento do matrimônio
A família é imagem de Deus, é comunhão de pessoas. No batismo, a voz do Pai chamou a Jesus Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer o Espírito Santo (cf. Mc 1, 10-11). Jesus, que tudo reconciliou em Si mesmo e redimiu o homem do pecado, não só voltou a levar o matrimônio e a família à sua forma original, mas também elevou-o a sinal sacramental do seu amor pela Igreja (cf. Mt 19, 1-12; Mc 10, 1-12; Ef 5, 21-32). Na família humana, reunida em Cristo, é restaurada a imagem e semelhança da Santíssima Trindade (cf. Gn 1, 26), mistério donde brota todo o amor verdadeiro. A família recebe de Cristo, através da Igreja, a graça para testemunhar o Evangelho do amor de Deus.
O sacramento do matrimônio não é uma convenção social, um rito vazio ou o mero sinal externo dum compromisso. O sacramento é um dom para a santificação e a salvação dos esposos, porque a sua pertença recíproca é a representação real da mesma relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja, a lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar. O matrimônio é uma vocação, sendo uma resposta à chamada específica para viver o amor conjugal como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto dum discernimento vocacional.
No sacramento do matrimônio, segundo a tradição latina da Igreja, os ministros são o homem e a mulher que se casam, os quais, ao manifestar o seu consentimento e expressá-lo na sua entrega corpórea, recebem um grande dom. O seu consentimento e a união dos seus corpos são os instrumentos da ação divina que os torna uma só carne. No batismo ficou consagrada a sua capacidade de se unir em matrimônio para responder à vocação de Deus. A Igreja pode exigir que o ato seja público, a presença de testemunhas e outras condições que foram variando ao longo da história, mas isto não tira dos noivos o caráter de ministros do sacramento, nem diminui a centralidade do consentimento do homem e da mulher, que é aquilo que, de por si, estabelece o vínculo sacramental.

Vivida de modo humano e santificada pelo sacramento, a união sexual é, por sua vez, caminho de crescimento na vida da graça para os esposos. É o mistério nupcial. O valor da união dos corpos está expresso nas palavras do consentimento, pelas quais se acolheram e doaram reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas palavras conferem um significado à sexualidade, libertando-a de qualquer ambiguidade.
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
O Evangelho da família nutre também as sementes ainda à espera de desenvolver-se e deve cuidar das árvores que perderam vitalidade e necessitam que não as transcurem», de modo que, partindo do dom de Cristo no sacramento, sejam conduzidas pacientemente mais além, chegando a um conhecimento mais rico e uma integração mais plena deste mistério na sua vida.
O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o homem (cf. Jo 1, 9), inspira o cuidado pastoral da Igreja pelos fiéis que simplesmente vivem juntos, que contraíram matrimónio apenas civil ou são divorciados que voltaram a casar. Perante situações difíceis e famílias feridas, é preciso lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio, 84). Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações, e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição.
A transmissão da vida e a educação dos filhos
O matrimônio é, em primeiro lugar, uma íntima comunidade da vida e do amor conjugal, que constitui um bem para os próprios esposos; e a sexualidade ordena-se para o amor conjugal do homem e da mulher. Esta união está ordenada para a geração, por sua própria natureza. O bebê que chega surge no próprio coração deste dom mútuo, do qual é fruto e complemento. Não aparece como o final dum processo, mas está presente desde o início do amor como uma caraterística essencial que não pode ser negada sem mutilar o próprio amor. Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma fecundidade que o prolonga para além da sua própria existência. Assim nenhum ato sexual dos esposos pode negar este significado, embora, por várias razões, nem sempre possa efetivamente gerar uma nova vida.
O filho não é uma dívida, mas uma dádiva, é o fruto do ato de amor conjugal de seus pais. Com efeito, segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma mulher e a transmissão da vida estão ordenados reciprocamente (Gn 1, 27-28). Deste modo, o Criador tornou participantes da obra da sua criação o homem e a mulher e, ao mesmo tempo, fê-los instrumentos do seu amor, confiando à sua responsabilidade o futuro da humanidade através da transmissão da vida humana.
Não é difícil constatar que se está espalhando uma mentalidade que reduz a geração da vida a uma variável dos projetos individuais dos cônjuges. Não posso deixar de afirmar que, se a família é o santuário da vida, o lugar onde a vida é gerada e cuidada, constitui uma contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é negada e destruída. É tão grande o valor duma vida humana e inalienável o direito à vida do bebê inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo nenhum se pode afirmar como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de tomar decisões sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto de domínio doutro ser humano.
Parece-me muito importante lembrar que a educação integral dos filhos é dever gravíssimo e direito primário dos pais. Não é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pretender tirar-lhes. A escola não substitui os pais; serve-lhes de complemento. Este é um princípio básico: qualquer outro participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa media, até mesmo por seu encargo.
A família e a Igreja
Graças às famílias, torna-se credível a beleza do matrimônio indissolúvel e fiel para sempre. Na família, como numa igreja doméstica (Lumen gentium), amadurece a primeira experiência eclesial da comunhão entre as pessoas, na qual, por graça, se reflete o mistério da Santíssima Trindade. “É aqui que se aprende a tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado, e sobretudo o culto divino, pela oração e pelo oferecimento da própria vida” (Catecismo da Igreja Católica, 1657).
A Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida pela vida de todas as igrejas domésticas. Assim, em virtude do sacramento do matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a comunidade cristã. O amor vivido nas famílias é uma força permanente para a vida da Igreja. O fim unitivo do matrimónio é um apelo constante a crescer e aprofundar este amor. Na sua união de amor, os esposos experimentam a beleza da paternidade e da maternidade; partilham projetos e fadigas, anseios e preocupações; aprendem a cuidar um do outro e a perdoar-se mutuamente. Neste amor, celebram os seus momentos felizes e apoiam-se nos episódios difíceis da história da sua vida. 
-- resumo do capítulo 3 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

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