Os dois primeiros capítulos do Génesis falam da
criação do mundo e apresentam o casal humano na sua forma
fundamental. Naquele trecho sobressai uma afirmação decisiva: Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus;
Ele os criou homem e mulher (Gn 1, 27).
O casal que ama e gera a vida manifesta Deus criador e salvador. Por
isso, o amor fecundo é símbolo das realidades íntimas
de Deus (Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48,
3-4) e concreatamente refletido em várias
sequências genealógicas (Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10;
11, 10-32; 25, 1-4.12-17.19-26; 36): de fato, a capacidade que o
casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a
história da salvação.
Jesus, ao falar sobre o matrimônio, cita o capítulo 2 do Génesis,
onde aparece um retrato admirável do casal com dois detalhes. O primeiro é a inquietação vivida pelo homem, que
busca “uma auxiliar semelhante” (vv. 18.20), capaz de resolver
esta solidão que o perturba e que não encontra remédio na
proximidade dos animais e da criação inteira. Como exclamará a
mulher do Cântico dos Cânticos, “o meu amado é para mim e eu
para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim”
(2, 16; 6, 3).
Deste encontro, que cura a solidão, surge a família.
Este é um segundo detalhe: Adão, que é também o homem de todos os
tempos e lugares, juntamente com Eva, dá origem a uma nova família, como afirma Jesus: “Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só”
(Mt 19, 5; Gn 2, 24). No original hebraico, o
verbo “unir-se” indica uma estreita sintonia, uma adesão física
e interior, a ponto de se utilizar para descrever a união com Deus,
como canta o salmista: “A minha alma está unida a Ti” (Sl 63/62,
9). Deste modo, define-se a união matrimonial não apenas na sua
dimensão sexual e corpórea, mas também como doação voluntária
de amor. O fruto desta união é “tornar-se uma só carne", quer no
abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e,
porventura, no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de
levar as duas “carnes”, unindo-as genética e espiritualmente.
O Salmo 128 fala que um homem e a sua esposa estão sentados à mesa,
ali aparecem os filhos que os acompanham “como rebentos de
oliveira” (Sl 128/127, 3), cheios de energia e
vitalidade. Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos
constituem as “pedras vivas” da família (1Ped 2,
5). Por isso, outro Salmo exalta o dom dos filhos com imagens
que compara à edificação duma casa: “Se o Senhor não
edificar a casa, em vão trabalham os construtores. (...) Olhai: os
filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das entranhas, uma
verdadeira dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim são
os filhos nascidos na juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua
aljava! Não será envergonhado pelos seus inimigos, quando com eles
discutir às portas da cidade” (Sl 127/126, 1.3-5).
Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família. Sabemos que o Novo Testamento fala da “igreja que se reúne em casa”
(1Cor 16,19; Rm 16,5; Col 4,15). A casa da família pode transformar-se em
igreja doméstica, em local da Eucaristia, da presença de Cristo
sentado à mesma mesa, como descreve o Apocalipse: “Olha que Eu
estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta,
Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3,20).
Assim a família também é o local da catequese dos filhos. Eis
como um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: “O que ouvimos e
aprendemos e os nossos antepassados nos transmitiram, não o
ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos às gerações
vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que
Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacó, instituiu uma lei em
Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos,
para que as gerações futuras a conhecessem e os filhos que haviam
de nascer a contassem aos seus próprios filhos" (Sl 78/77,
3-6). A família é o lugar onde os pais se tornam os
primeiros mestres da fé para seus filhos. Os pais têm o dever de
cumprir, com seriedade, a sua missão educativa (Pr 3, 11-12;6,
20-22; 13, 1; 29, 17).
Mas ao falar da família, a Bíblia não nega a presença do
sofrimento, do mal e da violência que dilaceram a vida da família e
a sua comunhão íntima de vida e de amor. É um rastro de sofrimento
e sangue que começa pela
violência entre os irmãos Caim contra Abel, passa por vários litígios
entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e
Jacó, pelas tragédias que cobrem de sangue a família de
Davi, até às numerosas dificuldades familiares que regista a
história de Tobias. O próprio Jesus nasce numa família modesta, que às pressas tem de fugir para uma terra estrangeira. A Palavra de Deus não é
uma sequência de teses abstratas, mas é companheira de viagem,
mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas na tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus “enxugará todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem
luto, nem pranto, nem dor” (Ap 21, 4).
No início do Salmo 128, o pai é apresentado como um trabalhador que
pode, com a obra das suas mãos, manter o bem-estar físico e a
serenidade da sua família: “Comerás do fruto do teu próprio
trabalho: assim serás feliz e viverás contente” (Sl 128,2). O fato de
o trabalho ser uma parte fundamental da dignidade da vida humana
deduz-se das primeiras páginas da Bíblia, quando se afirma que Deus
“colocou [o homem] no Jardim do Éden, para o cultivar e, também,
para o guardar” (Gn2, 15). No livro dos Provérbios, realça-se também a
tarefa da mãe de família, cujo trabalho aparece descrito nas suas
múltiplas mansões diárias, merecendo o elogio do marido e dos
filhos (cf.31, 10-31).
Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs sobretudo a lei do
amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo13,
34), e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe costumam
testemunhar na sua própria vida: “Ninguém tem maior amor do que
quem dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13). Frutos do amor
são também a misericórdia e o perdão. Nesta linha, é importante
a cena que nos apresenta uma adúltera na explanada do templo de
Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores e, depois,
sozinha com Jesus, que não a condena mas convida a uma vida mais
digna (Jo 8, 1-11).
Com este olhar feito de fé e amor, de graça e compromisso, de
família humana e Trindade divina, contemplamos a família que a
Palavra de Deus confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos,
para que formem uma comunhão de pessoas que seja imagem da união
entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A família
é chamada a compartilhar a oração diária, a leitura da Palavra de
Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e
tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.
Cada família tenha diante de si o ícone da família de Nazaré, com
o seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando
teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes. Como os
Magos, as famílias são convidadas a contemplar o Menino com sua
Mãe, a prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11). Como Maria,
são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios
familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração
as maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). Isso pode
ajudar-nos a interpretar os contecimentos da vida e reconhecer a
mensagem de Deus na história familiar.
-- resumo do capítulo 1 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco
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